Reflexão

AMIZADE

“O que faz um amigo confiar noutro é a consciência de sua integridade: suas garantias são a boa natureza, a fé e a constância”

“Não pode haver amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça; e, quando os perversos se reúnem, formam um complô, não um grupo de companheiros. Não têm afeto um pelo outro, mas medo; não são amigos, mas cúmplices”

La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

“Por mais raro que seja,

Ou mais antigo,

Só um vinho é deveras excelente:

Aquele que tu bebes calmamente

Com o teu mais velho

E silencioso amigo…”

Mário Quintana, do sabor das coisas

A condição da amizade é a semelhança, exclusiva entre seres humanos. Como diz Marilena Chaui em seu livro sobre “Discurso da servidão voluntária” de Étienne de La Boétie; “Virtude essencialmente humana, a amizade não pode existir em Deus, no rei e no tirano”.

Quando se refere ao tirano, a amizade não é possível já que ele busca seu próprio bem e não os dos outros, faltando ao respeito, marca natural entre amigos. Com Deus, sua impossibilidade é pela distância ou desproporção do homem para seu criador. Assim, a isonomia, condição fundamental para a amizade não está presente, afinal, Deus não precisa do homem, mas o homem, sempre carente e impotente diante do mundo que o cerca, precisa de Deus, cada vez mais. Quanto ao Rei, historicamente a amizade é impossível, por sua condição o elevar acima dos súditos, e mesmo que ele faça o bem, em nenhum momento haverá similaridade entre ele o súdito, estando, mais uma vez, ausente a isonomia entre os pares. Sofre o Rei, por não ter amigos (todos estão abaixo), e não poder ser Deus.

O caro leitor(a) poderá perguntar: “O que isso muda minha vida”?

A resposta é; reflita se você se submete a alguma tirania, coloca alguém em algum pedestal ou parece ou quer ser uma espécie de deus?

Se a resposta for não, o texto poderá ser útil para refletir sobre o que é ou pode ser uma amizade. Se for sim, avalie esse conceito e sua eventual submissão ou prepotência, que o leva a solidão da ausência de um verdadeiro amigo.

Qual a importância da amizade?

Se Deus tudo criou, existindo, portanto, antes de tudo, só ele se conhece verdadeiramente, ou usando uma expressão de Espinoza; é causa de si. Já os homens, precisam da mediação do outro, da comparação, afinidade ou antagonismo para tomar ciência de quem são. Como diz Aristóteles, “o amigo é um outro nós mesmos”. Assim, para homem mortal, são os amigos que suprem nossas carências de entendimentos, emoções e sonhos. Nessa relação de troca entre iguais é que uma espécie de autossuficiência divina pode ser metaforicamente alcançada. Dessa forma, não é possível o autoconhecimento sem o outro. É pelo outro que nos descobrimos!

A igualdade entre os amigos elimina a competição e não há hierarquia, motivo natural de afastamento por colocar o interesse e o poder como obstáculo a amizade verdadeira. Estar à vontade, não ter medo de dizer o que pensa ou sente, o amigo é uma espécie de “eu” que nos ouve, ou um espelho empático que pode, sem receio, deixar mostrarmos traços que não queremos ver em nós sem constrangimento. Diante de um amigo, nada temos a perder e ganhamos sempre a possibilidade de sermos verdadeiros, momento cada vez mais raro em um mundo competitivo, onde o medo é o combustível disponível pela sociedade para buscarmos o que necessitamos. Ninguém tem medo diante de si, ou do amigo. Em outras palavras, se sentirmos medo ou receio da expressar nossos pensamentos, não estamos diante de um amigo, mas de alguém que ainda não mostra a nós mesmos em seu espelho. A amizade relaxa, fora dela, a tensão. É fácil perceber!

Falar de si é sempre transferir ao ouvinte o que temos de mais valioso, o que está por trás dos nossos personagens cotidianos, que sempre estão se movendo necessariamente atrás de seus objetivos. Não existe medida para valorar o momento que nos desnuda, que nos torna humanos, frágeis e sonhadores. A Amizade é uma obra de arte delicada, produzida a duas ou mais mentes, próximas, mas nunca iguais. Essa diferença é que nos permite nos conhecermos, não só ao nos ouvirmos, mas vendo no reflexo diante de nós como nos sentimos pelo que pensamos e ansiamos.

A amizade supera as relações afetivas, já que essas, temperadas pelo desejo, apego e interesses diversos, ferem um dos primeiros estatutos da amizade; nada a temer, nada a perder! Os enamorados prometem relações sinceras e transparentes, impossível quando são dois desejos.

Amigo, artigo cada vez mais raro, em um mundo onde queremos mais (nem sabemos direito o quê), ação natural de afastamento. Temos tanta pressa           que não percebemos o que vai ficando pelo caminho. Lembranças juvenis do tempo em que éramos iguais aos amigos, uniformizados na escola, compartilhando o sofrimento pela disciplina imposta pelos pais com sonhos comuns. Não havia medo, não havia futuro, não havia doença. Contávamos sonhos com músicas que cantávamos juntos com bebida barata em dias em glamour não era preciso. Saudade dos tempos da amizade, ou como muito mais profundamente diz a Professora Marilena:

“A primeira vista, a amizade parece confinar-se ao momento em que a natureza, operando sozinha, cria e conserva os companheiros numa espécie de natural sociabilidade e, ao finda sua obra, com o advento as sociedade política, só restam alguns que guardam na lembrança o instante anterior, como se, no presente, a amizade fosse apenas memória do que precedeu a desnaturação”.

A palavra Philia, de origem grega que designa “amizade”, tem origem em isótes philótes, que significa o tratado de paz entre homens e grupos que sanciona a prestação de contas recíprocas, estar quites, ninguém tirou nada de ninguém ou ninguém deve nada. Difícil!

Em sua filosofia Espinoza atribui especial valor a amizade, quando afirma que só é possível entre homens livres, e que a amizade é condição da “alegria”, afeto que aumenta nossa potência de agir ou seja, nos traz mais vontade de viver;

E é impossível que o homem não seja parte da natureza e que não siga a ordem comum desta. Se, entretanto, vive entre indivíduos tais que combinam com sua natureza, a sua potência de agir será, por isso mesmo, estimulada e reforçada. Se, contrariamente, vive entre indivíduos tais que em nada combinam com sua natureza, dificilmente poderá ajustar-se a eles sem uma grande mudança de si mesmo”.

Isso não quer significar que pessoas diferentes não sejam estimulantes, nos ajudando a perceber quem somos hoje, nos instigando a pensar de forma diferente e descobrir que precisamos de novas ideias sobre nós mesmos. Amigos novos, são sempre possíveis. São as amizades que nos atualizam sobre quem somos. As antigas, mantém aquilo de nós que permanece ou ainda não está totalmente entendido e, portanto, pronto para mudar. Amigos alegram, nos ajudam a esquecer e a lembrar quem somos, já fomos ou queremos ser.

Amizades passam quando a vida afasta por suas estradas imprevisíveis ou quando “perdemos contato”, deixamos de ser semelhantes e a isonomia acaba. Isso faz parte em um mundo impermanente e tão imprevisível. Ficam na memória boa do vivido, não há que lamentar.

Amizades são raras, difíceis de encontrar em uma vida que nos dá menos tempo para cuidar de si. Precisamos de cada vez mais coisas, correr mais!

La Boétie em seu clássico texto, não entende como nos deixamos tiranizar, como transferimos tanto poder para alguém nos diminuindo, obedecendo cegamente a quem quer só seu bem à custa do nosso. Hoje o tirano está disfarçado, não tem mais um corpo como no tempo em que o texto foi escrito (1548). Hoje é uma ideia, um sistema cultural. Seu conselho é prático e simples; esse tirano só existe por obedecermos.

A servidão só terminará quando a obediência acabar. O tirano do nosso tempo vive de nos manter ocupados, angustiados, com pouco tempo para perceber que podemos estar contentes.

Aos poucos, obedeça menos. Não será necessária uma grande revolução, basta dar mais valor ao que importa para você. Aos poucos, como promete La Boétie, ele cai, afinal somos seu corpo e mente. Se mudamos, ele morre!

Uma verdadeira amizade é uma desobediência, uma revolução!

Quem se conhece, não se permite dominar, para isso cultive suas amizades!

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Para saber mais:

Contra a servidão voluntária – Marilena Chaui

Ética a Nicômaco – Aristóteles

Ética – Espinosa

Força ou Inteligência?

       “A natureza nunca nos engana; somos sempre nós que nos enganamos.”

                                                                                 Jean-Jacques Russeau

        “Há uma pergunta que me parece dever ser formulada e para a qual não creio que haja resposta: que motivo teria Deus para fazer o universo? Só para que num planeta pequeníssimo de uma galáxia pudesse ter nascido um animal determinado que iria ter um processo evolutivo que chegou a isto?”

                                                                                    José Saramago

Desde os primórdios, o homem se prostra diante da natureza pedindo clemência, por sentir-se fraco diante de tamanha potência do mundo, que, ainda hoje não consegue entender. Ventos, raios, trovões, infestações e tempestades eram vistos como punições divinas e, de joelhos, pedíamos, e ainda pedimos, perdão por sermos somente humanos, frágeis e impotentes.

Nossa incapacidade de entender a natureza nos encaminhou para um raciocínio simples para conter essa sensação de vulnerabilidade; “alguém” comanda tudo isso. Da época dos vários deuses com especialidades (assim como na medicina e no direito, por exemplo), a divindades únicas isso ainda vigora. Incrivelmente, o homem não percebe que a natureza não é inteligente, mas sim uma força que empurra a vida para frente em busca de mais vida, cada vez, mais vida!

A natureza vista com olhos desapaixonados é insana! Milhares ou milhões de espécies já desapareceram por vários motivos e novas vão surgindo. A humana, por exemplo, tem registro de atividade inteligente que datam de 300.000 anos, quando as primeiras pedras foram afiadas com objetivos de facilitar as atividades. Ou seja, começamos a usar nossas capacidades ontem!

Mesmo com toda tecnologia desenvolvida a vida nos parece um mistério, já que sua força não tem um sentido que possamos controlar ou antever o que sempre nos angustia cada vez mais.

Para que esse entendimento surja, mesmo que desesperadamente, precisamos criar figuras míticas com uma inteligência superior, não afetadas por essa natureza e para que isso seja possível, atribuímos a ele(s) sua criação. Das vontades misteriosas e incompreensíveis chamadas de “linhas tortas” em nosso tempo, continuamos a buscar o consolo de que por trás de tudo exista Alguém que tudo controle e comande por ter sido seu criador, estando, portanto, fora desse mundo onde tudo se move, parado, eterno e infalível.

Quando, antigamente, pela criação de técnicas de cultivo, conseguimos passar a ter tempo para pensar, observávamos as estrelas se moverem durante períodos de tempo cíclicos, percebemos a mudança que sua posição no céu poderia ser prevista, daí, chegamos à conclusão que tudo estava traçado não só para estrelas, mas também para nós com o nome de “destino”, acontecimentos previamente estipulado pela inteligência que tudo comanda, nos trazendo situações que estavam ali para nosso desenvolvimento, purificação ou aperfeiçoamento. A partir daí, começamos a tirar de nós muita das nossas responsabilidades sobre o que nos acontece, o que não deixa de ser uma espécie de entendimento ou aceitação confortável.

Não é fácil estarmos submetidos a uma vida sem sentido, imersos em um processo natural caótico e potente, portanto, imprevisível para nossos limitados sentidos. A inteligência de tudo não está por trás, está em nós e ela existe para aprendermos a conviver e lidar com a força que é a vida, essa força de impulso, criando sentido individual. Como essa força é mais forte e ininteligível, sobram deuses e fé para nos apegarmos a esperança, sempre carente, impotente e ignorante, como nos ensina a filosofia, de que tudo tem um porquê.

Vivemos tempos em que o Absurdo, como definiu Camus, é muito mais provocado pela nossa ignorância do que pela força natural, deixando claro que continuamos crianças, esperando que um pai venha nos tirar das enrascadas e que as forças naturais sejam clementes, “punindo” quem merece e preservando os de bom coração.

Na Vida, dos seres gigantes aos microscópicos, todos buscam mais vida, novas formas se criam e outras desaparecem nesse entrechoque constante desse caos cheio de possibilidades de sentido que nos é oferecido pela Natureza, sempre potente e furiosa em busca de preservação de todos que aqui vivem, excluindo outros, e a ciência buscando as respostas para que elas nos tragam alguma segurança e controle. Nós, humanos, somos desse mundo, temos inteligência que pode parecer que nos separa dele, mas, como podemos observar, ela também pode tornar-se destruição e medo.

Provavelmente, um dia também desapareceremos, e a vida continuará a se propagar pelo universo infinito que os cientistas dizem estar ainda se expandindo, fruto da grande explosão inicial, belo simbolismo dessa fúria que é o que chamamos de vida. Imaginar tudo isso nos traz a certeza do quanto não sabemos e estamos sempre por um fio, como uma formiga que pode ser esmagada simplesmente por estar sob um peso do que é mais forte que ela.

Quando precisamos acrescentar figuras divinas para a vida, quando precisamos que ela tenha algum sentido, mostra que continuamos a não entender o que se passa. Clamar por um deus, seja qual for, é um atestado de que a vida ainda nos dá mais medo que alegria e desfrute. Infelizmente, precisamos esquecer nossa condição, seja mergulhando nas rotinas ou nos desejos carentes para nos distrairmos do medo da morte e do sofrimento. Ainda vemos a vida como o copo meio vazio.

Nossa inteligência poderia estar a serviço da vida e a vida é força, potência e furor. Se Darwin defendia que sobreviver e perseverar está em nossa capacidade de adaptação, entendendo e sabendo reagir ao meio, Bergson via essa capacidade como criativa, sinal de inteligência superior. Seja como for, somos daqui e ainda não entendemos que a casa onde moramos não nos oferece segurança. Não estamos aqui para nos sentirmos seguros, mas para vivermos, olhando para a vida como um girassol, como ensina Fernando Pessoa*, e isso é sempre muito arriscado!

Olhar para o céu e se ajoelhar, clamar por auxílio e pedir proteção não difere do ursinho de pelúcia que as crianças precisam ter ao seu lado para poder enfrentar o escuro do quarto.

Elas fazem isso por temer o desconhecido e os adultos também, cada um a seu modo.

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Fernando Pessoa – O meu olhar (poema)

O Eu e o Devir

“É absolutamente necessário pular no real, atirar-se nele, mexer-se lá dentro, pois é a única maneira de mudar o mundo. A vida é apenas isso: mudar o mundo, transformá-lo, inventá-lo, revolucioná-lo”.

                          Antonio Negri – De volta, pg. 220

“Reconhecemos o escravo por suas paixões tristes e o homem livre por suas alegrias”.

                          Gilles Deleuze

Autoconhecimento nunca sai de moda desde Sócrates, e talvez valha à pena pensar um pouco de porque isso acontece. Não tenho essa resposta, aliás, perguntas como “quem sou eu”, subsistem há séculos, talvez por nunca existir uma resposta definitiva. Isso acontece não só por sermos diferentes, como prova a biologia, mas por nunca termos um Eu estável que possa ser definido assertivamente, já que isso anularia o princípio da impermanência.

Existimos por nós? Talvez não, já que desde que nos damos conta, precisamos uma diferenciação, uma identidade e ela seguirá os caminhos da comparação, afinidade, oposição e, sempre, da necessidade!

Começamos por ser uma cópia adaptativa de quem nos cria e da cultura em que estamos inseridos. Sobreviver é vital para qualquer mamífero, seja de nossa classe ou de outras com menos recursos. Aprendemos a levantar do chão por vermos os maiores em pé, assim como adquirimos a interpretação do mundo que eles nos transmitem, intencionalmente ou não. Daí elegemos a quem imitar e isso sempre vai longe, quase como um financiamento da casa própria, que carregamos por tanto tempo quanto os resultados nos obrigarem a mudar de “casa”.

Da mesma forma, muitas vezes antes de sermos alguém por si, somos uma oposição a outra pessoa. Construímos uma identidade em não ser quem outra pessoa é e isso é fácil de encontrar entre irmãos e na política. Quem se constrói assim, não é alguém por si, mas sua referência é ser quem um outro não é. Qual o problema? O problema é quando essa identidade negativa não consegue se sustentar por si. Mudar como, já que a base identitária é só uma oposição e nunca uma individualidade?

Vale também para cópias, com objetivo de conseguirmos os resultados que outro consegue. Fazer o que ele faz, usar a roupa, falar como, ter os mesmos adereços etc. Da mesma forma, uma ausência de resultados (inevitável), levará a um beco sem saída, também por não partir de algo próprio. Desse modelo vive o marketing com suas figuras de sucesso, que tem uma identidade reconhecida por todos, coisa que todos querem, já que também somos alguém quando somos reconhecidos pelo olhar do outro. A própria cultura cria seus modelos utópicos de como é o jeito “certo” de viver. Como isso é inatingível, mais insatisfação que nem nos permite perceber que tudo pode estar sendo da melhor forma possível. Precisa piorar para percebermos. Quem nos reconhece também é moldado por todo isso, e é desse olhar, onde sempre estamos “errados” de algum jeito é que constatamos que existimos.

A busca de um “ser”, portanto, precisa de uma referência, para termos os benefícios que precisamos, sempre nos comparando de alguma forma, afinal tudo vem de fora. Quando os prejuízos chegam, os primeiros culpados ou quem tem que mudar são os outros, o modelo cultural utópico que usamos ou o mundo. Aliás, mundo, vida, universo ou qualquer outra metáfora, serve para projetarmos as responsabilidades pela nossa expectativa frustrada de como tudo deveria ser. Quando se descobre que isso tudo nunca existiu, somente nos nossos sonhos herdados, nos deparamos com o que resta; precisamos encontrar em nós essa saída ou mudança. Tudo sempre reativamente, sendo empurrado por dificuldades, perdas e desilusões.

O que queremos descobrir com essa busca atrás de saber quem somos? Apenas uma maneira de voltar a sentir-se bem e, nesse caso, não importa a resposta a essa questão primeira, mas somente se os resultados voltaram a ser obtidos. Quando nos deparamos com a impermanência de tudo, principalmente a nossa, descobrimos que somos sempre algo que “está sendo”, na medida em que já não somos mais o que já passou e estamos sempre querendo ser alguma outra coisa.

E o agora? O poder do agora é a constatação desse vazio de insatisfação, de “não ser”, desse caminho até um horizonte que nunca existe para ser atingido e a caminhada já feita, condiciona, pela experiência, passos inéditos a seguir. Nem sempre o passado explica o futuro, já que não somos mais quem caminhou.

Somos esse transitório de uma identidade volúvel, em comparação com outros, em expectativa, angústia e desse desejo platônico da falta. Também somos, portanto, o que nos falta, o que esperamos encontrar em algum lugar, dentro ou fora de nós que possa trazer essa percepção que temos alguma previsibilidade, nem que seja um mínimo controle.

 Com tudo nos escapando pelas mãos de uma reflexão lúcida nos voltamos para nós em busca de algo que nos seja estável, algum “Eu” original, imaculado, não tocado pela experiência que possa na sua natureza pura e imóvel dizer, afinal, quem somos. Quando isso não é encontrado, partimos para a segunda busca; da “criança” que ficou congelada em algum canto da nossa psique. Aquela criança que só brincava, que não tinha medo (por não conhecer a morte), que se sentia livre e segura. Tudo isso porque tinha algum adulto oferecendo essas condições, claro! Mas será que essa ignorância em relação ao mundo é algo possível de reencontrarmos? Aquela criança já se desiludiu porque a vida a brigou a entrar no ritmo das responsabilidades, de atender por si suas necessidades e de temer o que o futuro possa estar guardando. Não penso que ela, caso exista, possa ajudar o adulto sofrido e preocupado.

A mobilidade de tudo nos assusta, daí alguns buscam na criação ou no seu autor algo que seja sempre imutável. É estranho que qualquer criação não seja parte de seu criador e se a realidade é instável, essa imagem e semelhança é negada, como os cegos o fazem com o sol, como diria Victor Hugo.

Quem sou eu?

Um Eu “que não é”, mas que “está” fluindo com o corpo em constante mudança, com pensamentos muitas vezes negando a ideia que se tem de si, suas inclinações, necessidades, dores e medos em uma vida imprevisível, com um sentido (se tiver) muito aquém de nossa capacidade. A vida nos afeta a todo momento não tendo, nem poderia, um futuro que se possa tocar ou ter a certeza de sua existência.

Quando tudo muda o tempo todo, as definições ou descrições são falhas e provisórias, portanto, é mais do que compreensível nossa necessidade de sanar a incerteza da impermanência com alguma palavra que nos descreva, para que a aflição termine.

Quem sabe, se souber quem sou, saberei o que é o mundo ou a vida, quem sabe o universo e seus deuses? Sócrates fez essa promessa e, como nunca parou de perguntar, ele também não encontrou.

Não há nada a ser encontrado, mas provavelmente para ser vivido pela experiência, vendo esse devir incerto pela sua própria natureza, motivo de preocupação, como algo misterioso em si mesmo, que nem ele mesmo saberia se descrever.

Afinal, como viver sem saber quem somos mergulhados nas improvisações de uma vida que é pura força, onde cada ser busca, movido pela sua natureza, sua afirmação e continuidade?

Abandonando essa busca de querer respostas que nos afastam do simples e ao mesmo tempo complexo processo da vida. O Eu será sempre esse vácuo, inserido na vida que nos molda como o vento faz com a areia da praia, mudando a paisagem constantemente.

O Eu nunca existiu como resposta possível e o autoconhecimento é esse caminhar em direção ao nada. A esse horizonte inalcançável por mais que se caminhe. Correr não adianta, parar nos é impossível já que a vida nos empurra.

Nada a fazer a não ser observar essa mudança constante que somos e, ao invés de se entregar ao medo, quem sabe aproveitar essa curiosidade pode ser mais divertido.

Nada está certo, garantido, estável ou pode ser previsto.

Emocionante, não é mesmo?

Eremita, solidão e descoberta

” A solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais!”

Arthur Shopenhauer

Existe um momento na vida que uma espécie de recolhimento se fará necessário. Isso sempre acontece depois de uma grande desilusão ou perda. Seja uma ideia, conceito ou mesmo uma pessoa, quando algo importante sai de nossa vida ela precisa ser refeita, recomposta de alguma forma. É como se um pedaço de nós fosse retirado e o corpo precisasse repor essa perda de alguma forma, voltarmos a ter uma identidade sem aquele pedaço. É sempre um luto, não são só pessoas que morrem, sentimentos, “verdades” e crenças também.

No Tarô, a carta do Eremita representa um ponto que talvez seja acessível a todos nós, já que viver é estar em constante regeneração. No caso dele, esse momento chega quando na sua jornada atrás do autoconhecimento, o personagem (que somos nós), sai de cena para assumir algumas desilusões. Primeiro, ele descobre que vive em um mundo que tem regras e limites, que intuição e agir por impulso normalmente não dão muito certo. Depois, ele descobre que poder e riqueza não só não eliminam sua angústia como não trazem respostas, mas sim problemas novos, aqueles em que a solução não tem preço monetário. Depois, busca nas religiões respostas para esse mundo que estão fora dele e descobre que o que está por trás é o controle não o paraíso. Se assim fosse, teriam surgido outros Cristos, mas a religião não os produz, apenas inibe que apareçam. A ideia não é formar, mas domar.

Depois, pensa que a resposta está nos relacionamentos, nessa tal incompletude que Platão nos legou e transformou pessoas em tampas de panelas e meias laranjas. O que vemos? Os relacionamentos não se sustentam, não por não serem ótimos de se ter, mas porque estão fracassando em cumprir uma missão que não lhe compete.

Nesse momento, não é difícil perceber que o programa cultural não tem nenhuma preocupação com o ser humano, mas só com sua capacidade de produzir e gastar. Suicídios em alta, psicotrópicos vendendo como nunca e cada vez mais pessoas sofrendo com ansiedade. Um mundo que ultrapassa sua imprevisibilidade natural e ruma ao absurdo.

O que sobra depois de tantas decepções? Com certeza a última esperança: a existência da justiça!

Mas, ela é fruto da ideia grega de um universo inteligente que funciona harmonicamente e finito, como uma máquina de um relógio antigo. Quando Zeus formou seu time no Olimpo, a ideia era que a justiça mantivesse o Cosmo em sua perfeita ordem, que ela se encarregaria de que nada destoasse do logos. Bastaram alguns séculos e algumas boas lentes para percebermos que ele é infinito e não tem nada de organizado, é o próprio caos em escala imensurável. Dessa forma, a justiça não é possível, salvo a individual, da própria consciência.

Depois de tantas constatações e pedaços arrancados, não tem outro jeito, a não ser se recolher, assimilar e voltar renovado. Expectativas e histórias da carochinha? Nunca mais!

Quando o Eremita se recolhe parece que abandona o mundo, de fato é o que faz temporariamente, porém, o que realmente abandona são todas as expectativas em relação ao mundo. A sua última desilusão foi a Justiça, a partir de agora desiludido, no bom sentido, porque somente a desilusão mostra a verdade (que não existe verdade), passa a se encontrar.

Desde que nascemos somos para fora e Ele descobriu que essa não é a melhor maneira de viver. Inclusive, já entendeu que nem o que está vendo é o que realmente acontece, é na verdade o que ele projeta no mundo com suas ilusões de como o mundo deveria ser.

 Para ver o mundo, precisará ver a si.

 Tudo é uma representação, vemos o mundo metaforicamente. Quando vemos o mundo, essa é uma visão védica, vemos a capa do mundo, quando usamos nossos sentidos vemos a superfície do mundo. A medida que vamos nos interiorizando, são quatro estados, primeiro é esse dos sentidos, estamos vendo a capa do mundo, depois vem o segundo estágio chamado “sono”, que é quando em uma interiorização maior, fazemos uma alegoria em relação ao sono mesmo, mas um sono de interiorização em que começamos a aumentar nossa realidade interna através até das nossas próprias imaginações, depois vem o terceiro estágio que é o “sono profundo” que é o sono de sonhos, nessa parte do sono não tem separação entre nós e o mundo, ou seja, quando mais vamos nos interiorizando mais iremos realmente vendo o mundo além da capa.

Para que realmente entendamos a realidade, precisamos entender a nossa interioridade, é a frase de Jung que se tornou famosa: “Quem olha para fora, sonha; quem olha para dentro, acorda”.

 O Eremita chega a essa conclusão, por isso foi necessário se retirar para conhecer a sua interioridade e quando volta, muda completamente porque volta outro, aquele que conhece seu mundo interior, que se completará na carta chamada “O Mundo”, que representa essa união final com a vida. No estágio do Eremita, alcançou um certo padrão de autoconhecimento, de uma visão completamente diferente da vida. A sua relação com o exterior termina na Justiça, a partir de então irá trabalhar outras coisas, as mudanças, os apegos, vai se aprofundando cada vez mais, até entender-se completamente. Se o “Eremita” é a nona etapa e “O Mundo” a vigésima primeira, ainda há o que aprender, sempre haverá!

Nós e o mundo estamos em caos, o mundo está sempre em nós e estamos junto dele e através dessa desordem nós nos recompomos em cada nova fase, por isso não tem como não passar pela desordem, ela é essa necessidade de arrancar pedaços que nada mais tem a ver conosco ou coisas que percebemos que nunca existiram, só na nossa fértil imaginação.

Cada momento de nossa vida tem um tempo e esses tempos não são regulares, a cada fase ganhamos conhecimento e ela tem começo, meio e fim. A ordem manda que quando terminarmos cada fase, que sigamos para outra, mas muitas vezes gostamos da fase em que estamos, porque já a dominamos e estamos seguros, então vamos para a próxima fase empurrados, saímos da zona de conforto na marra, naquilo que chamamos de crise.

O processo do mundo de impermanência nos empurra, ou vamos por vontade própria, o que ninguém faz, ou vamos no desespero, na crise, esse é o processo entrópico do cosmos e do caos. A cada crise quando bem vivida, ficamos mais elevados, mais maduros. A pergunta é: por que vamos no sofrimento? Porque somos mamíferos e para sobreviver preferimos o conhecido. Lembre-se que temos dois impulsos: de sobrevivência e de vida. O impulso de vida nos empurra para o novo e o impulso de sobrevivência (medo), quer fiquemos onde já conhecemos, sua preocupação não está se estamos felizes e sim se estamos sobrevivendo.

 Somos seres mamíferos, esquecemos isso com uma grande facilidade e não me canso de repetir. Será mais fácil quando nos vermos como mamíferos de grande potencial, ao invés de seres elevados, achamo-nos transcendentais, praticamente deuses, a fonte da criação divina, mas somos 1% diferentes dos macacos e isso é fato científico. Como mamíferos temos medo de mudar e perdemos esse medo quando não aguentamos mais, então não mudamos, somos levados pela “força do vento”.

O processo do caos é condição para a formação do eu, da individualidade, por isso que o mundo é caos, quando estamos bem, estamos em ordem no caos. Quem somos nós? Somos alguém que, quando está em ordem no caos, tem uma identidade. Estamos passando de fase, mas não queremos, é confortável ficar onde conhecemos. Vamos entrando em desordem, em processo de entropia, o que poderia acontecer de forma fácil, fazemos ser doído, porém iremos de qualquer jeito, por isso que toda crise sempre é uma mudança de processo evolutivo. Quanto mais a pessoa se mantém onde está, mais sofre.

Minha opinião é que mais de 95% das crises emocionais são processos evolutivos que não se confirmam, a pessoa precisa avançar, mas não está conseguindo fazer essa transposição. Isso acontece porque tem medo daquilo que aquela pessoa que será poderá fazer, tem medo dela mesma, não se conhece agora e tem medo de não conhecer o que ela será depois de mudada. Talvez também pense que terá que fazer outras coisas que hoje não quer fazer. O Eremita atingiu o primeiro passo da iluminação, que é perceber que é Ele e com Ele, não tem nada a ver com o mundo que sempre foi e será um conjunto de vários tipos de vida que se movem simultaneamente.

Estudar o Tarô é estudar as etapas de um caminho longo, cheio de descobertas, desilusões e perdas. Mas não se preocupe, tudo que você perderá nada mais é do que um excesso, como se estivéssemos, sem perceber, com 5 calças e 15 camisas.

O Eremita já retirou algumas peças desnecessárias, mas ele ainda tem muito que aprender, mas já é de longe um outro ser, que se tornou humano. Como dizia Joseph Campbell , humanidade é uma possibilidade, ninguém nasce com esse status. Só com esforço se transforma 1% em 10%. E o mais engraçado que é tirando, deixando mais leve que a mudança acontece.

Ele sempre aparecerá como um velho, que sempre representa quem aprendeu com o tempo, com uma luz na mão. Isso mostra que parte da escuridão acabou, mas essa luz não veio de fora, nunca vem, mas isso eu tenho certeza que você já percebeu.

Eternidade, para quê?

“O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel”.

                                              Platão

“Nós somos cidadãos da eternidade”.

                                           Fiódor Dostoiévski

Foi com a chegada do cristianismo que surgiu no ocidente a ideia de permanência da identidade após a morte. Na época, o que se acreditava, era que, ou éramos compostos de átomos e vazio (ler artigo “Demócrito, o quântico”), ou que nossa alma retornava ao mundo das ideias sugerido por Platão de onde viemos para esse mundo de formas e imperfeições.

Querer continuar a “viver”, mais que um desejo ou medo de desaparecer sempre foi resultado dos nossos apegos a coisas e pessoas que, por comporem nossa identidade, são a razão de existirmos. Em outras palavras, somos nossas relações. Continuar nossos relacionamentos em outro mundo nada mais é do que querer continuar a ser quem somos. Chega ser engraçado que pessoas com vidas sofridas e cheias de problemas de toda ordem, não querem ser outra pessoa nessa próxima vida. Sofrimento e dor também geram pego.

Na dúvida, como bem diz Saramago em seu ótimo livro “Todos os nomes”, escrevemos nomes em lápides, quase indestrutíveis a passagem do tempo. Tudo com objetivo de sermos, pelo menos, uma lembrança que teima em continuar.

Em muitos outros textos, lembrei que esse tipo de interesse em vidas futuras, tem um efeito colateral irrecuperável que é a perda de foco, interesse e vontade de melhorarmos ou vivermos melhor essa vida presente, inquestionavelmente verdadeira. Adiar planos ou realizações, também explica um pouco de preguiça e vontade de arredar algumas pedras pesadas, que preferimos atribuir ao carma ou outra fantasia. Mas, quando isso é uma escolha consciente, longe de ser um problema, é um exercício de decisão, de saber por que dissemos um sim ou um não. Fazer da vida, algo que estamos longe de entender pela sua complexidade, algo tão simples como sofrer agora e ter créditos depois, beira um pouco de irresponsabilidade existencial, mas o medo sempre é o pano de fundo desse triste enredo.

Se a vida são os encontros e troca de afetos, busca de crescimento, pensar, agir e ser diferente, então Viver é um ato subversivo em essência, já que a previsibilidade é o que se busca para que o rebanho não se disperse. Como bem disse Foucault, sempre teremos um padre, psiquiatra ou delegado para dar conta de nos trazer de novo para a obediência.

O ineditismo da vida, movida pelo verdadeiro desejo (ver texto anterior “Spinoza e o desejo”), não necessita que se precise viver novamente. Afinal, quer queiramos ou não, sempre que nos relacionamos com a vida, e isso acontece sempre, estamos alterando a realidade com a nossa presença. Seja o que fazemos, dizemos ou nos verem ou imaginarem, provocamos transformações na realidade que repercutirão eternamente, já que o mundo não será o mesmo depois de nós. Como todos, chegamos “in media rés”, ou seja, no meio do que já existe, que assumimos como verdadeiro e seguimos dali em frente com o tempero da nossa existência.

Ninguém passa em branco, mesmo que faça o melhor esforço para tal, já que sempre despertará, pelo menos, curiosidade sobre o motivo dessa pessoa ser tão ausente do mundo e, alguém sempre poderá achar que isso é uma boa política. Assim, mesmo a interpretação que as pessoas fazem de nós, que pode estar longe da realidade, já uma herança que deixamos. Somos então capazes de influenciar o mundo não só pelo que somos, mas pelo que se imagina que somos.

Nossas ações, aquilo que fizemos, vivemos, nos alegramos e mesmo o que nos entristece constrói essa jornada e, de alguma forma, a verdadeira eternidade (além dos genes) serão esses ecos que deixamos no mundo e nas pessoas voluntariamente ou não.

Quando passamos por ruas de cidades onde não moramos, quantos nomes e vidas que, de alguma forma, mudaram aquele lugar que a cidade se preocupou em não esquecer? Onde moramos, alguns são famosos e sabemos sua origem, e outros nem tanto. Muitas vezes, passamos pela rua que leva um nome que nos é indiferente, não temos ideia do que aquela pessoa fez que afetou esse lugar. A eternidade está em todos os lados! Já estamos nela, já que tudo que existiu antes, existe e existirá será o resultado da ação de pessoas. Na verdade, ninguém nunca morreu, já que sua marca, seja qual foi, ficou.

Nos preocupamos demais, perdemos tempo demais em querer saber se viveremos novamente, sobre a vida que já vivemos antes dessa e deixamos de perceber a realidade. Praticamos rituais e fazendo ações que buscam garantir essa possibilidade tão incerta em troca de avançarmos naquilo que é o mais verdadeiro de tudo.

Adoramos o mistério e o invisível, já que são ótimas telas onde podemos projetar o motivo de nossos medos e adiamentos. Queremos controlar o incontrolável, prever o imprevisível, subindo contra a força desse rio gigantesco chamado vida, quando poderíamos aproveitar a correnteza, fazendo sim nosso percurso, assinando a autoria da nossa existência naquilo que nos é possível. Para isso, simplesmente parar de brigar, de lutar uma luta que nem percebemos que estamos sós no ringue e que conseguimos, ainda assim, perder, nocauteados pela tristeza e a ansiedade. De uma lado, a tristeza, de sempre esperarmos que a vida deveria ser diferente, de outro, o medo que aconteça o que tememos, justamente por nunca ser como esperamos. Esse é o círculo vicioso do sofrimento.

A eternidade nunca foi um tempo contínuo, mas a ausência do que chamamos “tempo”, diferença entre o nascer e o morrer de cada um. Como bem diz o poeta Mário Quintana, a eternidade é um relógio sem ponteiros. Quando estamos “vivos”, exercitando nosso desejo, sendo causa de si mesmo, não lembramos do tempo, do passado ou futuro, já que tempo e vida são coisas muito diferentes.

Ser eterno é obrigatório por fazer parte do mundo, buscar permanecer além da vida já é desnecessário. Cuide das marcas que sua existência deixa, elas ficarão de qualquer jeito.

E depois?

Não importa!

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