Reflexão

O fim da Teleologia*

“A mente encontra mistérios porque busca por instinto um objetivo e uma finalidade para toda coisa. Parece que lhe é proibido conceber as coisas tais como são – pelo menos tais como se mostram.”

                                                                          Paul Valery

Para a Teleologia tudo tem um fim, tudo ruma para um fim e esse fim é resultado de uma trama inteligente, que sabe onde tudo vai terminar e por que, além de saber tudo que acontecerá. Discutir esse assunto é uma ofensa, afinal essa “inteligência” tem um nome e todos os predicados já citados. Mesmo que pareça óbvio que a Teleologia não se sustenta diante da realidade, dizer que ela não existe é atacar as religiões, é dizer que não há, nunca houve ou haverá alguém por nós. Em outras palavras, é destruir a raiz de todas as superstições.

Spinoza e Nietzsche enfrentaram essa questão com o preço que paga quem ousa discutir o estabelecido e, principalmente, a quem interessa que se pense assim. Para não deixar esse texto longo, me deterei nas razões de Spinoza para negar a tese Teleológica, deixando a visão de Nietzsche (que tem vários pontos comuns), para outro momento.

Ao aceitarmos que as coisas “são assim”, que tudo tem um fim ou propósito, mesmo que ininteligível, em primeiro lugar tendemos a não nos rebelarmos e a vermos acontecimentos contra quais deveríamos procurar suas causas para erradicá-los de nosso futuro, como algo que faz parte de um desígnio. Ao invés, curvamo-nos para não desobedecer a ordem divina que nos impôs o acontecimento e, logicamente, essa revolta teria um preço a ser pago, seja alguma punição nessa ou em alguma futura existência.

Pelo desconhecimento das causas (princípio spinozista da ignorância), desejamos preencher o vazio do não entendimento que gera agonia, para isso nos escondemos do enfrentamento, apoiados na causa na vontade divina, que sempre sabe o que faz, como o pai que nos protege dos riscos ignorados pela infância com suas ordens que, mesmo não fazendo sentido, trazem a ilusão da segurança pelo poder da autoridade.

Para assegurar que esse poder seja eterno e indiscutível, a construção teórica oferece uma explicação para todas as coisas, mesmo as mais absurdas, onde a fé aceita sem discutir linhas tortas ou desígnios que estão além do cognoscível. A inteligência e a razão são tratadas como falta de fé, ou desqualificadas pela nossa “pequenez” diante do poder do “absoluto”.

Assim, por exemplo, nos momentos de decisões sobre nossa vida, nos sentimos impotentes pela incerteza do que virá, afinal não temos essa “inteligência” que tudo sabe, principalmente o futuro. Sem saída, a ela entregamos nossas escolhas, e com medo do futuro incerto, ficamos dispostos a acreditar em qualquer coisa que nos explique que esse futuro está nas mãos dessa divindade que, hoje, gerencia oito bilhões e meio de destinos. Abrigar-se no poder divino, diz Spinoza, torna a ignorância o grande e real poder.

Toda crença, lembrando que a condição do credo é a ignorância, ou, só acreditamos no que não sabemos, acontece pelo medo diante do desconhecido, que é aplacado pela esperança de que tudo esteja sob controle dessa divindade a quem obedecemos e tememos. A razão é uma só; queremos uma segurança que é incompatível com a impermanência e devir de tudo que coexiste com naturezas e necessidades diferentes e antagônicas. Diante da mudança constante e imprevisível, facilmente constatáveis, verdades e seres eternos são um bálsamo e um abrigo seguro para quem permanece na infância da realidade. Antes de Deus ter criado o homem a sua semelhança, imaginar Deus semelhante ao homem foi o princípio de tudo, afinal quem escreveu essa “verdade” foi um homem, como eu e você, convém nunca esquecer.

Questionado sobre os milagres em uma correspondência, Spinoza responde com brevidade: milagre é o desconhecimento das causas! O que foi considerado milagre anos e séculos atrás hoje sabemos perfeitamente suas causas e ninguém mais usa esse nome para o que sabemos como acontece. Essa brecha pelo desconhecimento de como acontece tem no milagre o preenchimento dessa ignorância. Eclipses foram milagres, pessoas ditas mortas voltarem a vida também, pestes que dizimaram milhares foram vistas como punição etc. Hoje a ciência explica sem esforço as causas e nada disso é considerado intervenção divina e poderia dar centenas de outros exemplos. Citando Spinoza no Tratado Teológico Político: “um milagre[…]é um fato que não pode explicar-se pela causa, isto é, um fato que ultrapassa a compreensão humana…Estão completamente enganados os que invocam a vontade de Deus sempre que não sabem explicar uma coisa. Que maneira mais ridícula de confessar a ignorância!

A Natureza é imprevisível, uma força de vida destituída do que chamamos de inteligência, tendo a humana como parâmetro. Se furacões, pestes, enchentes e terremotos fazem parte, alguns com causas conhecidas e outras não, a vida em si mesma é uma potência onde cada ser singular, busca o que lhe é necessário dentro de sua natureza. Cada ser é irrepetível, mesmo dentro de sua espécie e age dentro de contextos que estão em constante impermanência e imprevisibilidade, sempre mais forte que cada um em particular, e isso torna o que chamamos de “vida”, acontecimentos que não respeitam nosso medo que sempre pede previsibilidade e controle para nos sentirmos seguros. Nunca saberemos as causas de tudo e conviver com isso seria a maneira melhor de vivermos o possível (aquilo que está a nosso alcance), juntamente com o necessário (aquilo que acontece pelas causas que tem, sendo, portanto, inevitável) e o contingente (aquilo que acontece movido por contextos externos, que podem ou não acontecer).

O que chamamos de “Deus” é, infelizmente, resultado do nosso medo e a “Fé” tem a mesma origem; acreditar que tudo tem um propósito inteligível, estando sob controle, que o improvável acontecerá e se não acontecer, isso será bom da mesma forma, que em algum momento fará sentido.  Não há como prever o futuro, já que tudo está imerso no possível, necessário e contingente.

  Spinoza via Deus sob outra ótica, Ele poderia ser alcançado pela razão, pela observação racional da vida. Somente Deus é causa de si mesmo e tudo que vive são modos desse Deus, suas expressões, sempre finitas e movidas por causas exteriores, não sendo, portanto, possível a teleologia assim como a vemos. Deus não está em algum lugar ele é tudo que existe e acontece. Não está fora observando e julgando, é a própria realidade, está acima do que chamamos bem, mal, certo, errado, justo ou injusto. Esses conceitos criamos pelo nosso medo de uma vida imprevisível, de quem se recusa a viver na instabilidade, infância que nunca termina e que sempre precisará de um “pai” protetor que nos diga o que devemos fazer para que ele nos proteja em troca de obediência cega e inquestionável.

Nada ruma para algum fim específico ou determinado. Não existe lugar para chegar ou terminar. Tudo é Vida, tudo são possibilidades, deliciosamente incertas. Estamos sós, por nossa conta, nada depende só de nós, tudo é sempre inédito na impermanência em circunstâncias ou contextos muito potentes. Nossas ações mudam a vida a vida nos muda a todo momento!

Somos mamíferos cientes da morte e isso explica nosso medo diante do imprevisível. A saída da maioria é sobreviver, obedecer e confiar que a recompensa chegará, uma troca. Para quem vive essa imprevisibilidade, viver é um mundo de oportunidades.

Queiramos ou não, estamos escolhendo e arcando com a decisão de como pensamos que seja viver!

Não há fim, tudo é percurso.

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*Teleologia, da palavra grega “télos”, que significa propósito ou fim, é o estudo dos objetivos, fins, propósitos e destinos. Na teleologia acredita-se que os seres humanos e outros organismos têm finalidades e objetivos que orientam seu comportamento .

  * [Filosofia] Capaz de relacionar um acontecimento com seu efeito final. Que diz respeito à teleologia, à ciência que tem a finalidade (causas finais) como essencial na explicação das modificações que ocorrem na realidade.

      Bibliografia:

Ética – Baruch Spinoza

A negação da Teleologia e das causas finais – Christophe Miqueu – O mais potente doa afetos: Spinoza e Nietzsche, André Martins (Org.)ed. Martins Fontes

FE.LI.CI.DA.DE

“O maior pecado que um homem pode cometer é não ter sido feliz!”

                                                       Jorge Luiz Borges

A proposta desse texto, não é, necessariamente, trazer uma definição única do que seja “Felicidade”, mas, antes de tudo, fazer uma reflexão sobre como entendemos essa palavra e sua íntima relação com uma série de ideias gerais e pré-definidas que trazem mais frustração do que a palavra em si promete e do que esperamos culturalmente que signifique “ser feliz”.

Ser feliz é individual, como o DNA.

Para começar, não é comum percebermos a felicidade quando ela acontece, justamente por não sabermos exatamente o que seja. Normalmente percebemos que tivemos um momento feliz ou fomos felizes, ou seja, depois que aconteceu. Nosso estado de insatisfação permanente obscurece o momento feliz quando está sendo vivenciado, pela nossa ideia de felicidade ser idealizada. Assim, é mais comum a felicidade ser lembrada como algo que ocorreu, temperada pela melancolia de não só ter passado sem que notássemos, mas por já não existir mais.

Buscando tentar uma primeira ideia simplista, a felicidade é um momento “puro” que não é atravessado ou contaminado pelos nossos medos, carências e angústias corriqueiras. Poderíamos dizer, portanto, que a felicidade é a ausência de sofrimento físico ou emocional, somada a um estado de presença, que pode estar ligado a situações prazerosas, intensas emocionalmente ou quando estamos sendo só o que podemos ser, sem restrições. Essa definição é a soma, por exemplo, do que pensam os filósofos Epicuro e Nietzsche, de forma, obviamente, simplificada. Por isso que, nas raras vezes, quando percebemos a felicidade acontecendo ela termina, por termos e medo de que aquele momento acabe, a contaminação acontece.

Analisando o conceito comum de felicidade, podemos vê-lo como egoísta; quando a vida atende tudo que sonhamos para nós, para as pessoas que são importantes e até mesmo no âmbito político, social etc. Por si só, isso já desmonta qualquer ideia de felicidade como algo que possa contemplar a todos simultaneamente é impossível. Lembrando que, muitas vezes, o que queremos para nós e para outras pessoas, por exemplo, necessariamente não é o que elas querem, assim, a minha felicidade pode ser a infelicidade do outro. A definição egoísta dessa maneira de pensar é inegável. Como também é praticamente impossível que todas nossas expectativas sejam atendidas (felicidade precisa ser completa, já que não aceitamos 80% de felicidade), a felicidade é como um fármaco ou droga, para onde nossa imaginação (vivenciando a felicidade 100%) foge para atenuar os problemas e insatisfações da vida real, onde tudo acontece sem que nossa expectativa seja levada em conta.  Como toda droga, seu efeito é curto e o custo da melancolia que vem depois, nossa frustração por não acontecer o que sonhamos é maior que o tempo de fuga. Podemos fazer uma analogia a Marx que dizia ser a religião o ópio do povo, esse tipo de fuga imaginária é o ópio particular de cada vida singular, ou nas suas próprias palavras: “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo. A abolição da religião, enquanto felicidade ilusória dos homens, é a exigência da sua felicidade real”. Assim, os pensamentos utópicos dessa felicidade perfeita é um tipo de sentimento religioso. A questão é que a “felicidade real” não é vista como tal, já que ela por nunca ser perfeita, só pode ser a possível e essa não aceitamos, queremos o impossível!

No âmbito afetivo, percebemos uma clara conexão entre felicidade e amor, ambos ligados a esperança. Como a felicidade sonhada nunca acontece na realidade concreta, da mesma forma, o amor sempre chegará um dia. O amor, normalmente confundido com paixão sempre será aquele imaginado, projetado. Da mesma forma que a realidade impede a felicidade total, quanto mais conhecemos uma pessoa verdadeiramente, menos poderemos imaginá-la como perfeita. Assim, a esperança sempre carente, nos tira o que é, pela ilusão do que um dia acontecerá. Novamente, nos enebriamos com idealizações e o amor se liga, como a felicidade a um conceito religioso, utópico e carente.

Em nossa cultura meritocrática religiosa, a felicidade é vista como uma consequência por cumprimos nossos deveres, metas ou termos atingido determinado propósito. Seguindo esse pensamento, toda felicidade é resultado, vem no final. A felicidade gratuita, que vem “do nada”, não só é vista como injusta, como terá um preço de dor a ser pago, assim que percebemos que não a merecemos.

Esse mundo é um “vale de lágrimas”, nascemos “em pecado” etc. Não é à toa, que todos já ouvimos ou dissemos “Eu mereço ser feliz”! Só que a vida em si, sem adornos de expectativa não é meritocrática, nem faz cálculo de que determinado sofrimento vale um tanto de felicidade, só o sistema cultural e religioso nos faz pensar assim. Mas a ideia por trás é óbvia; como o divertimento e alegria é permitido só depois de cumprir os deveres, a felicidade é sentir-se cumpridor, estar “em dia” com as tarefas. Felicidade, quem sabe, na próxima vida, como resultado de muito sofrimento nesse mundo. “O Paraíso é dos que sofrem”, diz no seu início um famoso discurso feito em uma montanha. Quando simplesmente temos momentos de felicidade gratuitos, esse jeito de pensar coloca duas pitadas de culpa e o gosto amarga. Quando o “toma lá dá cá” da felicidade não nos entrega o esperado, entramos na metafísica para encontrar a resposta, que sempre poderá estar em desígnios misteriosos, vidas passadas ou em nossas relações com algum antepassado que precisaremos descobrir quem foi. Quando todas as tentativas se esgotarem e vier aquela tristeza de injustiça sem explicação ou de algo que parece não merecermos, sempre teremos algum remédio que, se não resolver com uma dose de 100 miligramas, na de 200 fará seu efeito milagroso.

Se paramos para pensar, a felicidade nada mais é que um pacote de crenças, e um dos seus itens é a ideia de “missão”. Temos uma a cumprir e o primeiro grande problema é descobrir qual. A cultura nos diz que todos nascemos com uma e só seu cumprimento heroico trará sentido a nossa vida e a felicidade virá como recompensa. O problema é que a ideia de missão, encontra um pequeno obstáculo que é a impermanência. Tudo muda constantemente, portanto poderemos ter na vida várias “missões”, cada uma ligada a quem somos em cada etapa. Quantas pessoas encontraram sua “missão” aos 30, 50 ou 60 anos? Ela não estava escondida, simplesmente aconteceu da pessoa naquele momento de sua vida, sendo resultados das experiências que teve, encontrou algo que tem grande afinidade com seu momento. Existe missão que acompanha toda uma vida? Existe, tantas quanto as várias missões que se pode ter em uma vida, ou nenhuma missão particular. Mas, mesmo que a missão seja encontrada, cumprida e a felicidade finalmente chegue. E depois de algum tempo? Nos tornamos aquele que foi feliz por ter cumprido a tal missão, e essa pessoa agora parou de viver? Dá para repetir a missão e sentir a mesma felicidade? Precisará de outra? Provavelmente. Nos filmes dá tudo certo, mas é nos filmes, onde o roteiro é programado.

Perguntas demais para algo tão simples como estar feliz, vez por outra.

O que temos hoje é a ideia de felicidade ter sido cooptada pela auto ajuda e, obviamente, pelo consumo, que sempre são concepções culturais, com objetivo de resultado econômico e sempre generalizante, ou seja, impõe um “ser feliz” padronizado para pessoas diferentes entre si! Como isso gera frustração, a solução é o consumo como forma de atenuar essa falta de ser feliz.

Para quem teve uma infância sem sobressaltos ou traumas intensos, lembram ter experimentado um tipo de felicidade que não é mais possível depois que perdemos a inocência. A felicidade da criança não tem pré condições, não respeita valores culturais ou religiosos, muito menos precisa de materiais ou brinquedos caros para preencher faltas que se diluem rapidamente quando chega o novo modelo. Temos nostalgia dessa fase, pois não tínhamos o conceito imposto pela educação, o modelo a ser atingido. Não saber o que é felicidade talvez seja a primeira condição de ser experimentada. Depois são os outros, a vida, o universo ou seja quem escolhemos para culpar por nos sentirmos infelizes.

A felicidade não respeita métodos, méritos, pré-condições e outras formas de controle.

Ela simplesmente vem e vai, como tudo em um universo impermanente, incontrolável e imprevisível.

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Inspiração:

Dario Sztajnszrajber: Nadie puede ser feliz. Disponível em You Tube: https://youtu.be/N10AL_CcQfY

Livro: A ditadura do mérito – Michel Sandel

Heráclito

“A Natureza ama ocultar-se”

“Das coisas lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo”

    Heráclito, fragmentos

Tenho duas pequenas bibliotecas: uma no consultório, onde partilho livros com clientes sempre que eles decidem aprofundar seu entendimento sobre determinadas questões. Se é verdade que a terapia existe para ajudar a trazer compreensão onde os resultados terminaram, é também um espaço de autoconhecimento e desenvolvimento. Aqui no consultório, reina Epicuro. Do alto da estante ele lembra que tudo é mais simples que gostamos fazer parecer. Sua política de desejos simples de obter, da não interferência dos deuses em nossa vida, da importância da amizade e de como podemos lidar com a morte são mesmo “remédios para alma” como seus seguidores definiram sua filosofia.  Como bom atomista, ele não acreditava que a consciência sobreviva a morte, o que torna a vida mais intensa e valiosa. Mas, principalmente, para lembrar que ser feliz é apenas estar em paz consigo e estar livre de dores físicas. Um gênio da simplicidade, dono de um pensamento acessível e praticável por qualquer pessoa.

Já em casa, quem ocupa o lugar de destaque é Heráclito como mostra a foto ilustrativa desse post. Heráclito nasceu e viveu em Éfeso, território que hoje pertence a Turquia. Estima-se que tenha vivido entre 544 e 474 a.C.

 Sua figura sempre foi controversa, era um solitário e não fazia questão de ser conhecido nem admirado, mas foi um filósofo respeitado e influente até hoje. Escreveu um livro intitulado “Sobre a natureza”, que depois de pronto foi colocado no templo da deusa Artêmis (filha de Zeus, deusa da caça e da vida selvagem, irmã gêmea de Apolo) e lá se perdeu. O que temos da sua filosofia são citações de outros da sua época, como Aristóteles e Platão, para falar dos contemporâneos. Suas frases soltas já foram compiladas em livros, como a bibliografia do presente texto, mas seu pensamento ultrapassou séculos e inspirou os filósofos estoicos, como Imperador Marco Aurélio, Sêneca, Nietzsche, Espinoza e até mesmo Freud apenas para citar os mais conhecidos. Parou por aí, claro que não!

Suas máximas ainda ecoam no século XXI e podem nos ser úteis no presente texto, refletiremos sobre duas de suas ideias.

A primeira e talvez a mais conhecida:

 Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”. (Fragmento 49)

“Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”. (Fragmento 50)

Heráclito percebeu que não só a vida, mas no próprio Universo que nada está parado ou estável. O movimento ou mudança está intrínseco a tudo que está vivo, até os minerais. Quando entro no rio, mudo pela experiência, já não sou quem entrou, quando volto ao rio, nem eu nem o rio somos os mesmos que estavam lá na experiência anterior. Se não existe imobilidade, nada permanece e como bem observou Nietzsche, está inviabilizada qualquer “verdade”, assim como não existe nada que tenha uma “identidade” ou “essência”. Todos esses conceitos são ficções, já que precisariam que tudo esteja parado para que fossem possíveis. Podemos definir o que não muda, tudo que está na impermanência é indefinível!

Mudamos o tempo todo, não só biologicamente como a ciência já sabe há mais de século, mas mudamos nossa percepção da realidade pelo que vivemos ou pelos afetos a que estamos expostos como lembra Espinoza. O rio muda, quem nele entra também, ou seja, a vida é sempre inédita. Gostamos hoje, deixamos de gostar amanhã, não queremos hoje, passamos a desejar depois. Nada pode ser previsto, a mudança é a lei que nunca muda!

Nos desesperamos com isso, toda essa mudança nos deixa inseguros e os mamíferos medrosos que somos querem controle, sem ele só sobra a angústia. A mesma que nosso mais remoto antepassado sentiu quando se deparou com a primeira tempestade, como já citei em texto anterior. Fazemos promessas (prometer nunca mudar), um atentado contra a vida, que sempre são vencidos, inexoravelmente pela imprevisibilidade da mudança! Criamos muitos planos e depois de anos, descobrimos que fomos levados pela força da vida para caminhos que não imaginaríamos que um dia percorreríamos. Nos assombramos por termos pensamentos estranhos, pois a mudança, a vida, leva o corpo a pensar como resultado do que lhe afeta, sente e passa a cada instante. Somos um barco no oceano, que podemos ajustar as velas, aqui e ali, mas os ventos têm suas próprias razões inacessíveis ou necessárias na natureza.

Heráclito percebeu que tudo que acontecia era a manifestação, em cada ser, de algo chamado Vida! Tudo que existe é vida em milhares de manifestações diferentes e com características especiais para cada ser em todos os reinos. Não há como não perceber que o revolucionário “Deus” de Espinoza, que foi descrito no século XVI tem em Heráclito sua base teórica.

Aristóteles com sua lógica, dizia que Heráclito era “estranho”, que deveria ser evitado, mesmo tendo feito citações diretas de suas ideias em seus livros “Ética a Nicômaco” e no capítulo “Meteorologia” da sua Física.  A percepção profunda de Heráclito, sem nenhuma tecnologia ou aparelho, apenas a observação e o pensamento, o filosofar; descrever o que é a realidade em sua última instância! Se, para Aristóteles “A” e “B” são diferentes, para Heráclito são apenas versões de uma mesma coisa; a vida.

Séculos depois, os cientistas com seus telescópios e hoje com suas sondas e satélites mostram que Heráclito estava certo. Tudo se move, o universo inteiro é movimento (mesmo sendo infinito, o que não se sabia em sua época), construção e destruição, assim como em cada corpo, onde células nascem e morrem, lutam para manter a vida. Nada se repete na impermanência, a vida não repete uma folha, um fruto, um inseto, um mamífero, nada! Tudo é único e indefinível por mudar a todo instante.

A passividade diante daquilo que não pudemos mudar, lema estóico que voltou a moda, que existe beleza em tudo, mesmo na baba do Javali como dizia Marco Aurélio. Nós podemos achar feio ou belo, mas para a vida tudo é perfeito porque é necessário que seja assim naquele momento. Como um  pôr do sol que nos faz acreditar em um artista supremo, também o terremoto que mata milhares, a chuva que inunda e a seca que dizima a vida, a peste nos vegetais e espécies animais, tudo é vida! Nós criamos conceitos de belo, feio, certo, errado, justo e injusto, mas a Vida não leva em conta nossas opiniões, ela É! (caso se interesse por esse tema, convido a ler o texto anterior, “A vida que nos leva”.

Quando criamos esses conceitos, definições e a própria moralidade, a Vida já existia desde sempre e ela é necessariamente, ou seja, nada é moral ou imoral, a Vida é amoral. Como interpretamos, é problema nosso, da nossa necessidade de controle de atribuir um nome que possa oferecer entendimento e estabilidade diante do que se move a cada milionésimo de segundo.

A segunda:

“É necessário saber que a guerra é comum e a justiça, discórdia, e que todas as coisas vêm a ser segundo a discórdia e necessidade”. (Fragmento 20)

“De todos a guerra é o pai, de todos é rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros livres”. (Fragmento 21)

Séculos depois, Nietzsche se apropria do pensamento de Heráclito e diz: “Tudo é guerra, tudo é luta”! Para Heráclito tudo que acontece é resultado de conflito, e é! Dentro do nosso corpo, milhares de células nascem e morrem, lutam contra invasores o tempo todo, como já citei anteriormente. Do lado de fora, seres de todos os tipos com objetivos diferentes convivem no mesmo espaço e tempo, se entrechocando constantemente, já que tem formas de viver que se contradizem. Se a cobra pica com seu veneno para sobreviver, ou você foge ou mata para não morrer e isso vale para tudo, até para pessoas que disputam mesmos objetivos ou se cruzam atrás de sonhos diferentes, lutando por espaço ou até mesmo causando acidentes por estarem no mesmo lugar.

Se tudo é resultado dessa luta constante, Heráclito dirá que não existe injustiça, já que o mais forte sempre vencerá e tudo só poderá ser do jeito que é, como resultado necessário da luta empreendida. Em outras palavras, nada falta a vida! Ela é necessariamente só o que pode ser. Se pensamos ser boa ou má, se desejamos, se falta algo, isso é resultado do nosso medo da nossa falta de controle, chamamos isso de ansiedade.

E a segunda e mais revolucionária constatação; diferente dos que pensam que a natureza de tudo que vive é se preservar e propagar descendentes, nossa verdadeira natureza, como resultado da luta constante é muito mais do que simplesmente sobreviver, é ser mais forte e capaz! Nossa natureza é evoluir como resultado dos aprendizados das vitórias e derrotas que temos todos os dias. A Vida não pede que sobrevivamos, pede que vamos atrás de cada vez mais desenvolvimento, de mais Vida e mais vitórias. A isso Nietzsche chamará de “Vontade de Potência”, Espinoza de “Potência de agir” e Freud de “Libido”.

Heráclito chama os vitoriosos de livres e os derrotados de escravos. Claro que não podemos e conseguimos vencer todas as batalhas, mas a vida que vale a pena precisa de saldo positivo. A cada luta nos transformamos, nunca somos os mesmos depois de cada vitória ou derrota. Aprender com tudo nos tornas deuses, criadores da própria realidade e causa de si mesmo, objetivo último que ultrapassa o limite entre a liberdade e a escravidão.

Em algum lugar do que hoje é a Turquia, 2600 anos atrás Heráclito apenas observou, olhou em volta, para cima, para os lados e para baixo e teve tempo para pensar. Nós estamos sempre ocupados, buscando diminuir nossos medos, buscando uma estabilidade impossível, ou como diria Sidarta; tentando segurar o rio com as mãos.

Enquanto isso, a vida passa e acabará em algum momento para todos que nascem, mas continuará a ser como sempre foi antes e depois de cada um de nós.

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Para saber mais:

Heráclito, fragmentos contextualizados – Alexandre Costa, ed. Odysseus.

A Vida que nos move

“Um pensamento vem quando ele quer e não quando eu quero, de modo que um falseamento da realidade efetiva dizer, o sujeito “Eu” é condição do predicado “penso”. É nesse sentido que não procede a pergunta: Quem pensa, quem interpreta? Não há um autor por trás do pensamento, o pensamento é tudo, não é o homem que pensa, mas a vida!”

                                                 Viviane Mosé – Nietzsche e a grande política da linguagem

“Exigir a imortalidade do indivíduo é querer perpetuar um erro…O que ela contém a maior parte do tempo? Nada mais que uma torrente de pensamentos insignificantes, acanhados, terrestres, cuidados sem fim. Deixá-los, pois, de uma vez por todas, repousar em paz.”

                                                  Arthur Shopenhauer – As dores do mundo

Quem pensa em nós é a vida!

Em artigo anterior (https://eduardocarvalho.net/forca-e-inteligencia/) comentei que a vida é uma “força”, não inteligente ou seletiva que age somente pela sua própria natureza. Essa mesma força que habita tudo que é vivo, que impulsiona para o desenvolvimento de cada ser, animal, vegetal ou mineral recebeu de outro filósofo alemão, Schopenhauer, o nome de “Vontade”. A Vontade não é racional, é um instinto que leva tudo avante, da mesma forma que faz todas as bússolas apontarem para o norte, é a força que move tudo que vive em seus ciclos de nascimento e morte.

Essa força que nos transpassa a cada instante, se mistura com nosso corpo, crenças, medos e angústias se transforma em pensamentos, emoções e sentimentos. Por isso que Nietzsche é conhecido como o “filósofo do corpo”, foi ele quem percebeu que algo pensa em nós, que não é o que conhecemos como “Eu”. Para quem gosta de se observar, não é difícil notar ser tomado, vez por outra, por pensamentos contraditórios ao que pensamos que somos, perceber em si desejos inéditos, vontades disso ou daquilo que nos causam espanto. De onde veio esse pensamento, essa vontade ou desejo? Veio da força que é a vida que, naquele momento, misturando-se com o que estamos sendo, quer, pensa ou deseja.

Schopenhauer defende a ideia de que essa força se preocupa com a vida, com as espécies, nunca com as individualidades. Por isso que nunca conseguimos entender alguma acontecimentos que não fazem justiça a pessoas, como acidentes, doenças que afetam pessoas inocentes, que não mereciam que isso ou aquilo lhes acontecesse. Schopenhauer já tinha pensado sobre isso, e percebeu que o que chamamos de vida busca a manutenção evolução de cada espécie, indivíduos em particular não são relevantes diante de algo mais grandioso.

Nos percebemos, por exemplo, apaixonados por pessoas que a razão mostra que não seriam um bom caminho, da mesma forma que o inseto se joga a morte rumando para a luz, afinal, ele, em si, não importa. Mas a larva que ele deixou plantada em algum lugar vai fazê-lo, enquanto parte da vida, continuar a viver. Da mesma forma que o resultado de uma paixão, interessa a espécie, não aos amantes.

Claro que esse tipo de visão desmonta uma série de ídolos da nossa cultura, onde o “Eu” quer continuar a viver com sua identidade vida após vida, onde cada acontecimento de tragédia ou alegria é interpretado no âmbito da individualidade. Se os filósofos estiverem certos, as evidências os favorecem, quando falamos em “Deus”, não é alguém que se preocupe conosco, com meu futuro, sonhos e aprendizados.

Assim como quando estamos caminhando, sem perceber, matando insetos rasteiros, nunca de propósito, mas porque a vida se move com sua força irracional, nós somos devastados por “acidentes” inusitados, pestes, tempestades e terremotos. Nessas horas, somos as formigas que morreram sem saber o motivo.

Justamente por isso que, por pensarmos individualmente, por acharmos que temos autonomia, que existe algum destino ou que tudo acontece por estar programado nosso desenvolvimento, nos sentirmos inseguros, com medo diante da vida. Posso até ousar e dizer que nossa ansiedade, é a descoberta (na maioria das vezes inconsciente), que estamos desamparados individualmente diante da vida e de sua força que não leva em conta particularidades e desconhece o que chamamos de justiça.

Se não há para quem pedir, agradecer, só podemos contar com nossa própria força e ações para termos uma vida com mais alegria que dores. Nosso corpo não precisa de agentes externos para nos matar, muitas vezes ele mesmo cria suas próprias maneiras de nos deixar doentes. É quando essa força não encontra um bom ambiente ou simplesmente chegou a hora do corpo morrer. Nunca esqueça que a morte é o destino de tudo que nasce. Pode ser só isso!

Parece que não tem saída, estamos à deriva? Sim e não!

Sim, porque estamos a mercê de uma potência infinitamente maior e não, pois se estivermos lúcidos, compreendendo e sabendo do que acontece sem expectativas falsas, poderemos receber essa força que nos transpassa a todo momento com um corpo e pensamentos que podem transformá-la em alegria, conhecimento e vontade de viver cada vez mais!

Quando estamos com medo e preocupados, buscamos resolver esse sofrimento com todo tipo de desejos. Mas como já sabemos, nenhum desejo obtido resolve essa questão, já que a vida é mais forte e potente comparada a qualquer coisa deste ou de outro mundo!

Em seguida o medo volta, um novo desejo, a luta por obtê-lo para parar de ter medo, em seguida retorna o tédio quando percebemos que não resolveu e tudo recomeça em um círculo vicioso sem fim. Como dizem os budistas o samsara de vidas e vidas, sofrimento e medo em cada existência até, talvez, paremos de brigar com o obvio e sobre mais tempo para vivermos dentro do que é real. Talvez o “Nirvana” é só não sonharmos mais e vivermos o que está diante de nós.

Tudo pode acontecer a qualquer momento, sim, do que chamamos de bom e ruim! Como já citei em textos anteriores, nossas ações aumentam nossas chances em uma vida que não nos percebe individualmente, de conseguirmos o que queremos. Daqui a pouco, já queremos outra coisa e nem notamos que algum sonho de tempos atrás foi obtido. Esquecemos dos sonhos anteriores? Não, a vida nos mudou, nos modificou com sua força e sem nem perceber o motivo, viramos à direita ou esquerda quando nossa decisão de antes era ir sempre reto, em frente!

Assim, cada um experimenta uma realidade diferente, nunca estamos no mesmo mundo, já que os corpos e experiências são únicas e a vida toma contorno diferente em cada um.

A citação de Schopenhauer que abre o texto parece sombria, como sua filosofia, aliás, é vista. Porém interpreto de outra maneira; é assim que só pode viver quem espera da vida o que ela nunca foi!

Aproveite o momento sempre inédito, afinal daqui a pouco a vida nos muda, tenhamos planos e junto com eles a abertura de mudar a rota, não sabemos quem seremos daqui a pouco. Se Heráclito, Nietzsche e Shopenhauer nos ajudarem a perceber essa impermanência que nunca daremos conta de controlar e isso nos levar a nunca esquecer que tudo é sempre primeira vez, nada mais importa!

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Para saber mais:

Uma breve história da filosofia – Nigel Warburton

Nietzsche e a grande política da linguagem – Viviane Mosé

As dores do Mundo – Arthur Shopenhauer

Filosofia

“A filosofia é o melhor remédio para a mente”.

  Cícero

“A filosofia é a que nos distingue dos selvagens e bárbaros; as nações são tanto mais civilizadas e cultas quanto melhor filosofam seus homens”.

   René Descartes

” Se quiséssemos apenas ser felizes, seria fácil. Mas queremos ser mais felizes que os outros, então é difícil, pois achamos os outros mais felizes do que realmente são“.

Montesquieu

Um dia, há muito tempo, não se sabe quando, um homem (provavelmente, já que as mulheres cuidavam dos filhos), com tempo de sobra, resolveu pensar sobre a vida. Provavelmente estava inquieto, insatisfeito com uma estranha sensação de desconforto, já que não via razão concreta para tal. Quando temos um problema, ele nos move atrás de resolvê-lo ou de conviver com ele de alguma forma. Não era o caso do nosso precursor.

Tenho quase certeza, se é que é possível um pedaço de certeza, que tudo na sua vida estava bem, não tinha algo concreto para se preocupar. Como nós, começou a usar o que aprendeu no senso comum de seu tempo para responder essas questões difíceis da subjetividade; o que sou, para que ou da morte, essa de forma bem objetiva já que desde sempre queremos entende-la.

Tudo que sabia não dava conta de responder ou de entender a razão desse desconforto tão vago. Podemos até cogitar, que sua questão era saber se sua vida, o que fazia ou até mesmo seus objetivos (que naquela época ainda não se chamavam “metas”) faziam para ele algum sentido.

Especula-se que esse tenha sido o nascimento da filosofia; mãe das religiões, ciências, artes, psicologia, matemática e música.

Ele queria ser feliz? Não, queria entender. Por isso que a felicidade não é um assunto para a mãe de tudo. Compreender, buscar razões e dar sentido não é algo que possa almejar esse difuso conceito que chamamos de felicidade.

 Compreender só aumenta horizontes, traz mais dúvidas, infinitas variáveis. No fim, se tudo der certo, poderá encontrar a serenidade, que até poderia ser um nome de sopa, com seu conjunto de ingredientes que fervem na água, somando gostos, trazendo como resultado um sabor agradável, que esquenta e acolhe.

 Poderíamos até dizer que essa água é algo que todos compartilhamos ou temos condições de usar: bom senso ou razão, como nos lembra o filósofo Marcel Conche. Como a filosofia não almeja a felicidade, até por saber que não é sua função, busca somente a verdade, ou o mais próximo possível que possa chegar. Nietzsche, até diz que a verdade ou “verdades” é uma necessidade que temos, mas que não é possível, que nem deveríamos perder tempo com isso. Ele dizia que essa necessidade servia só para termos a sensação (sempre falsa), que temos algum controle. Como a vida de controlável nada tem, a verdade é uma ficção.

Conche lembra que a religião, de forma muito diferente da filosofia, está na categoria do útil, diz que a felicidade existe, mostra o que devemos fazer, ou como diria a autoajuda, quais os passos necessários para obtê-la. Mas, como ela depende da fé, muitas vezes precisamos afastar a razão para dar-lhe lugar, como diz Kant. Assim,  é a ilusão que pode trazer a felicidade, nunca a verdade. Bingo!

Vejamos o caso do Budismo, uma religião sui generis, já que não fala de nenhum Deus ou Deuses, mas que busca melhorar a vida de seus seguidores com argumentos desse mundo para que nele encontremos a paz. Epicuro já dizia que a felicidade possível é a ausência de perturbação da mente e de dores corporais. Ser feliz pode ser definido como não uma presença de algo, mas como ausência.

Então, o budismo dá mais valor ao que é útil em comparação ao verdadeiro, ou seja, para ser algo ser considerado uma verdade, precisa ser útil. Interessante não acha? Uma verdade que não serve para nada perde seu valor intrínseco, fica vazia e sem utilidade!

Assim, estar em paz ou feliz pode ser resultado de uma religião, mas nunca de uma filosofia, onde a vida imersa em sua multiplicidade e força descontrolada e ininteligível não nos traria paz, mas ao contrário, inquietação!

Sabemos que nenhuma metafísica pode ser demostrada, mas argumentada sempre contando com a fé ou esperança para fazer frente a razão que sempre faz as perguntas desconfortáveis. A metafísica sempre chega para continuar onde a razão por suas próprias condições não pode mais continuar. Parece que se tudo fosse apenas o razoável, todo o sentido da vida terminaria, já que, se algo pode ser eterno e imóvel, porque nós, em tese, fruto dessa eternidade terminaríamos simplesmente de existir, estando em um mundo imprevisível onde viver muito tempo é um acaso que pode ou não acontecer.

Conche lembra que vários “deístas” trazem, por exemplo, várias provas da existência de Deus que não passam de argumentos, já que se fossem realmente provas, apenas uma seria suficiente, da mesma forma que Lucrécio discorre trintas provas da mortalidade da alma, onde, também, se fossem realmente provas, uma bastaria.

Nunca saberemos. Podemos dizer que filosofar não é apenas uma argumentação, mas uma meditação sobre a vida e a morte, onde não encontraremos a resposta. Não morremos de forma igual, muito menos vivemos da mesma forma. Cada vida é uma experiência única, uma meditação particular de cada vivente.

Voltando a Lucrécio e sua frase célebre: “Filosofar é aprender a morrer!”

O espaço tempo de cada vida é compartilhado com todas as formas de vida, mas cada um de nós, vive seu próprio mundo, traduzindo essa particularidade que chamamos de “realidade” de forma subjetiva, lastreada na capacidade de pensar de cada um, com o contexto sempre móvel como inspiração e pré-condição de cada reflexão. Como pensar sobre a vida quando estamos tristes ou doentes? Seriam os mesmos pensamentos em momentos de exuberância? O mesmo vinho pode ser doce ou amargo, de acordo com o instante de cada um.

Como lembra Heidegger: “Mesmo que explicitamente, nada conheçamos de filosofia, já estamos na filosofia, porque a filosofia está em nós mesmos no sentido de que, desde sempre, filosofamos […]. Ser-aí como homem significa filosofar”. Em outras palavras, nenhum de nós consegue viver sem ter alguma reflexão sobre a vida e a morte.

Precisamos de crenças para de alguma forma darmos conta dessa vasta e incontrolável realidade, nem sempre a razão dá conta da angústia de nossa fragilidade. Não está errado, pode até fazer bem. Só deixo minha sugestão de lembrarmos e, quem sabe, criarmos um tipo de crença inovadora; aquela temperada pela dúvida, lembrando que, mesmo bons argumentos não provam nada de forma indubitável. Deixemos um espaço para o vazio do não-saber, será nele que vamos exercitar essa nossa qualidade única nesse mundo; filosofar!

Não precisa ser complicado, muito menos sofisticado, só pensar, começando pela razão, temperando com suas crenças prediletas. Veja se no final faz sentido ou fica estranho. Se ficar estranho, começe novamente, o que não faltam são temperos.

Para começar, siga de onde outros pararam, se achar que o caminho que eles percorreram faz sentido para você.

Para encerrar, vou compartilhar a aposta de Marcel Conche propõe a todos nós, não para deixarmos de crer, mas para dar a tudo o melhor tamanho possível:

“Você diz acreditar que Deus existe ou não existe, que a alma é imortal, ou não: você estaria disposto a pôr em jogo seus bens, ou melhor, sua saúde, ficando estabelecido, por exemplo, que se você estivesse enganado teria um câncer generalizado? Tal suposição ainda que puramente fictícia, basta para mostrar a pouca solidez de uma crença”.

Na verdade, como já disse nesse mesmo texto, nunca saberemos. Então, filosofemos, já que a felicidade, sabidamente, é só argumento!

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Para saber mais:

O Sentido da Filosofia – Marcel Conche. Editora Martins Fontes

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