Psicologia

 Fé: confiança, crédito. Crença nos dogmas de uma religião. Assegurar como verdadeiro.

                                                                 Dicionário Caldas Aulete

Fé (filosofia): É um sentimento de total de crença em algo ou alguém, ainda que não haja nenhum tipo de evidência que comprove a veracidade da proposição em causa.

 

 “A fé é uma conduta de obediência”.

                                                                   Spinoza

fé

Quem já não ouviu que precisa ter fé? Pessoas mais religiosas detectam que a falta de fé é não entregar a situação aflitiva a alguma divindade ou providência. Também aproveitam para dizer que seu coração está vazio, que deveria ter “alguém” morando lá. Aqui no ocidente, ou falta Deus ou Jesus no coração. Quando vejo pessoas famosas no mundo religioso passarem por crises de depressão ou de ansiedade, imagino como eles se sentem quando sua doença é associada a falta de fé. Afinal, se você tem fé, como algo assim poderia acontecer?

Não precisa ser muito entendido para saber que esses problemas não têm a ver com fé, mas fazem cada vez mais parte do mundo em que vivemos. Nossa fé não nos impede de adoecer em um mundo doente, assim como a fé não nos salva de sentir calor no verão, frio no inverno e muito menos transforma a fome em saciedade.

Se a definição da palavra nos fala em confiar, aceitar como verdadeiro algo que estamos longe de ter a comprovação, o que nos cabe perguntar é: qual a finalidade da fé?

Em vários textos anteriores, tenho mostrado, sob diferentes pontos de vista, uma análise dessa angústia que chamo de essencial, que temos desde que descobrimos o que realmente é morrer e a consequente percepção de nossa fragilidade diante da vida.

Somos seres de sentido, precisamos de um propósito, não só para nos esquecermos dessa situação angustiante, mas também para tenhamos a percepção que produzimos realidades que nos tragam uma identidade, ser alguém além da multidão ou rebanho. Mas, o que nunca podemos esquecer, é nossa condição biológica, de termos consciência da presença da morte em nossa vida, na das pessoas que amamos e de nossos apegos, afinal esse não é um mundo de Budas, mas de pessoas que lutam por coisas e, portanto, a elas atribuem valor,  justamente por lutarem para conquistá-las.

Essa condição vulnerável torna nossa mente muito insegura e é essa a origem de nossas preocupações e medos; tememos situações que, se ocorrerem, o sofrimento será tal que podemos não suportar. Um mundo tão complexo ou caótico, tão vasto que nossa capacidade está muito aquém de entendê-lo nos assusta, a insegurança é nossa companheira, como uma sombra que não nos dá folga nem a noite, pelo contrário.

Assim, essa mente insegura, precisa ter uma compreensão desse mundo vasto e sem sentido. Criamos conceitos de certo, errado, justiça e injustiça, dentre tantos, com objetivo de diminuir essa vasta ignorância sobre a realidade. Esse “Absurdo” como definiu Camus, precisa ser entendido (ter razões para as coisas serem como a realidade nos mostra), sem isso não suportaríamos tantas coisas que não fazem sentido. Aí entram, em primeiro lugar as religiões, oferecendo uma maneira de entender tudo que acontece ou deixa de acontecer. Nota-se um esforço hercúleo ou teimoso de fazer o mundo ter sentido, de dar uma lógica para o que chamamos de vida, nossa e dos que nos cercam mais proximamente ou de todo mundo, hoje globalizado.

Temos acesso a absurdos diários que chegam pela internet em incrível velocidade, somada a volatilização de quase tudo, inclusive das relações. A consequência é óbvia; uma superficialização de tudo e aumento da insegurança, como se não bastasse a que temos naturalmente. Não temos mais tempo para aprofundar nada, são tantas demandas que só as farmácias dão conta para alegria dos laboratórios e do mercado, cada vez mais sedento para que compremos coisas com o objetivo de nos sentirmos melhores. Essa reflexão, já consta de outros textos, mas como nem todos leem tudo,  o contexto precisa estar presente.

Esse mundo, que nunca nos levou em conta, se visto friamente, muito maior que nossa capacidade de entendê-lo, como já disse, torna a fé necessária. Necessária porque é justamente ela que nos preencherá os espaços de compreensão que não somos capazes de ter. É como fazer um quadro de um quebra-cabeças de 1500 peças, onde estão faltando várias para que figura tenha sentido e possamos ver a paisagem completa.

Não que essas peças não existam na realidade, não sei, talvez estejam bem diante dos nossos olhos, mas eles não são bons para ver tudo.  Não vemos o ar que respiramos, não cheiramos tão bem quanto qualquer cachorro vira latas e muito menos percebemos o básico do mundo pela perda de nossa conexão com a natureza, além de não paramos de imaginar o tempo todo.

A fé torna-se necessária para pensarmos: Ah! Agora entendi por que essas coisas acontecem…  Aí, como em um supermercado, dá para escolher entre a vontade, ira, sabedoria, amor divino, um carma de uma vida que você viveu e não lembra, dentre tantas outras opções disponíveis. Quando a vida mostra que não é assim, que a explicação se mostra falha ou fracassa rotundamente, trocamos de fé, afinal, a “verdade” pode estar em qualquer lugar, não é mesmo?

Ter fé é aceitar uma explicação que estamos muito longe de comprovar e algumas são tão incríveis, que precisamos  de muita fé para aceitar. O que importa é o resultado, deu certo, ou está dando certo, mantemos!

Eu sei que a razão, por si só, manterá o quebra cabeça incompleto eternamente e não pode ser diferente, já que ela usa o que os sentidos falhos trazem e o que cérebro acumulou de conhecimentos e experiências para chegar a alguma conclusão. A conclusão da razão é simples; não tem como entender, minha lógica não alcança e preciso conviver com essa falta de peças. Nunca vou saber como a paisagem do quebra cabeça é de verdade, então sigo, dando um sentido particular à minha vida, tendo os bons e maus momentos, não contando com nada além dela, sendo um fim em si mesma.

O problema da fé, é que, na grande maioria dos casos, por não ser comprovável e muitas vezes ilógica, o mamífero que somos fica com um “pé atrás”, com uma leve dúvida que só aumenta com os acontecimentos diários, além de nos culparmos por não conseguir essa fé convicta ou como se diz hoje em dia, “raiz”. Com isso a angústia não diminui, e percebemos que o exemplo de Jó não anima ninguém, faz tempo. Essa falta de bom senso de algumas superstições, faz com que muitas pessoas adicionem mais uma ou duas no seu carrinho de fé, totalmente diferentes e antagônicas entre si. O medo faz nos cercamos de possibilidades, se uma estiver errada, já tenho outra em uso ou prática.

A fé não precisa ser só religiosa ou metafísica, pode ser em nossa capacidade de encontrarmos melhores saídas, uma vida mais alegre e buscar seu propósito de fazer alguma diferença. Sermos mais fortes e tornar nosso destino uma necessidade imperiosa. Confiarmos que podemos aprender mais, sentir mais, conhecer mais e ir além de si, transcender! Quando estamos no caminho, “potentes” de vida como diria Nietzsche, a fé em nós, não só supera todas as outras, como as torna desnecessárias.

Como diz Spinoza, a fé cobra o preço da obediência e só fizemos isso esperando alguma coisa em troca, nada é de graça para quem luta para sobreviver.

A fé em si mesmo é de todas a mais possível de se tornar real, já que só precisa que mudemos de atitude e criemos um foco. Em outras palavras; sermos aquela pessoa que queremos ser e para isso precisamos agir, ter ações novas que mostrem que essa pessoa, que antes era fé, agora é real!

A fé em si é temperada por essa dura incompreensão natural desse mundo, grande demais para entender. A razão nunca é fria, como acusam seus detratores, ela é consciente de suas possibilidades e limitações e as aceita, serenamente.

As pessoas de fé, principalmente religiosas, acusam a razão de limitada e a tratam com o desdém de quem tem pena do pobre incauto de coração desabitado.  O que elas lutam para não ver é que estão assentadas em crenças, formas de poder e manipulação que normalmente cobram o preço da anulação de sua individualidade em troca dessa “proteção” que nunca existiu.

Se o caro leitor, durante o começo desse artigo pensou que não acredito na fé, pode perceber que defendo a fé naquilo que pode ser comprovado; em nós, afinal, existimos de verdade e se o Universo não é abundante, como tratei em um vídeo do nosso canal no YouTube ( https://www.youtube.com/watch?v=Nq0rWparpdw&t=81s ), ele é repleto de possibilidades e caminhos. Com certeza, tem um ou mais de um para todos poderem escolher e vivenciá-los!

Para encerrar, essa bela letra do músico Oswaldo Montenegro da canção “A lógica da criação” (https://www.youtube.com/watch?v=7W80ZCHfVKw ):

O mérito é todo dos santos

O erro e o pecado são meus

Mas onde está nossa vontade

Se tudo é vontade de Deus?

 

Apenas não sei ler direito

A lógica da criação

O que vem depois do infinito

E antes da tal explosão?

 

Por que que o tal ser humano

Já nasce sabendo do fim?

E a morte transforma em engano

As flores do seu jardim

 

Por que que Deus cria um filho

Que morre antes do pai?

E não pega em seu braço amoroso

O corpo daquele que cai

 

Se o sexo é tão proibido

Por que ele criou a paixão?

Se é ele que cria o destino

Eu não entendi a equação

 

Se Deus criou o desejo

Por que que é pecado o prazer?

Nos pôs mil palavras na boca

Mas que é proibido diz

 

Porque se existe outra vida

Não mostra pra gente de vez

Por que que nos deixa no escuro

Se a luz ele mesmo que fez?

 

Por que me fez tão errado

Se dele vem a perfeição?

Sabendo ali quieto, calado

Que eu ia criar confusão

 

E a mim que sou tão descuidado

Não resta mais nada a fazer

Apenas dizer que não entendo

Meu Deus, como eu amo você!

O salto de Kierkegaard

                                                     “A angústia é a vertigem da liberdade”.

 “A coisa crucial é encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar a ideia pela qual eu esteja disposto a viver e morrer”.

Kierkegaard

 

 

                                                                                                                                                                                salto 2

Kierkegaard viveu pouco, morreu com apenas 42 anos, mas deixou um pensamento marcante, sendo considerado o primeiro Existencialista. Além de filósofo, foi teólogo, poeta e crítico social. Uma vida voltada ao estudo e reflexão, mesmo com seus amores e aventuras de juventude, seu pensamento faz companhia para muita gente até hoje e persistirá. Tem vidas que ganham sentido após terminarem. Aliás, sobre o Existencialismo, já comentei sobre essa corrente de pensamentos em textos anteriores, bem como no meu canal no Youtube. Hoje, quero falar muito resumidamente da maneira como ele entendeu essa angústia, quase nossa natureza, enquanto seres conscientes da própria finitude e de sua fragilidade diante da vida.

Há quem possa pensar que a angústia tem uma saída que se chama “felicidade”. Em nossa cultura, a felicidade criou para si um problema, já que, para atender os interesses da máquina produtiva, ela está posta em modelos. Ser feliz, em regra geral, é poder adquirir alguns símbolos de sucesso, ter viajado para determinados lugares, já que ninguém demonstra seu sucesso em viagens para lugares que não possam ser “perfeitos” ao fundo de uma foto com um sorriso aberto, ou ter dias também “perfeitos” para compartilhar. Existe um modelo para como deve ser um corpo de alguém feliz, dentre tantas outras exigências que a tecnologia pode fornecer em até dez vezes sem juros.

Se existe um jeito da felicidade ser alcançada, que posso comprar, seja do corpo, passando pelo sorriso, casa, carro etc., ser infeliz é incompetência.

Mesmo com tantos exemplos de felicidade que desabam a cada dia para as drogas, as doenças emocionais e o suicídio de gente que tendo “tudo”, descobriu que a vida não tinha um sentido, mesmo assim os modelos ainda são metas para a maioria. Cartilha cultural atendida, e nada da tal felicidade, sobra o entorpecimento ou a via rápida.

 Kierkegaard percebeu isso desde cedo, até por ser muito introvertido, além dos problemas específicos de seu próprio contexto. Dizem que ele se achava feio, muito magro e desajeitado, deve ter passado o que hoje chamamos de bullying, o que, para um existencialista é um prato cheio para reflexões complexas sobre essa apreensão que nunca nos abandona. Por não ter um “rosto”, podemos projetá-la no próximo desejo de ter ou desfazer. Fora um ou outro momento de esquecimento, como já citei em textos anteriores, ela nos acompanha como uma sombra que não nos deixa mesmo quando a noite chega.

A vida nos traz repetições diárias que, muitas vezes colocam a necessidade antes do sentido, como bem lembra Sísifo, e ficamos ainda mais diminuídos por não conseguirmos sair disso sem um preço tão caro. Preferimos transferir essa luta para os super-heróis do cinema ou nas conquistas improváveis dos mais fracos nos esportes, por exemplo, que nos emocionam. Choramos o que gostaríamos de viver.

Foi então que Kierkegaard, fez em sua filosofia, uma profunda análise e percebeu que as pessoas buscam sua saída de três maneiras diferentes, a maioria passa pelos estágios que descreve e sua reflexão segue, atualíssima, mais de duzentos anos depois. Mas, não ficou só na constatação. Ofereceu uma solução, claro, dentro de sua crença cristã. Falarei resumidamente sobre elas, deixando de fora os exemplos e personagens que ele traz, com objetivo de ser mais conciso. Lembrando que essa é minha interpretação.

O primeiro é o que ele chama de Estágio Estético. São aqueles que buscam fugir da angústia através de sensações, desejos materiais e outras saídas mágicas. Para Kierkegaard a angústia sempre volta, cada vez mais rápido. Isso explica o motivo dos nossos desejos serem crescentes. Quanto mais difícil de ser obtido, ter gerado mais sofrimento ou custado mais caro, a “anestesia” dura um pouco mais. Mas, como nos acostumamos com tudo, o grande sonho de seis meses atrás, hoje já está incorporado à vida, não é mais desejo pois já obtido e quase não o notamos o mais. Aos poucos, a inquietação vem voltando e precisamos definir um novo sonho. Claro que buscá-lo, seja qual for, ajuda, se conseguido, a trazer mais confiança, mas nunca mudará nossa condição essencial.

O segundo é o que ele chama de Estágio Ético. Aqui, a ilusão sai da materialidade e da tecnologia e ruma para o campo da cultura religiosa ou de uma justiça, inerente a esse mundo. Para as pessoas que pensam por esse viés, se for uma pessoa “boa” ou “de bem” essa angústia deixará de existir, já que ela é resultado de um agir correto, seja pela cultura social ou religiosa. Por trás, penso, está uma espécie de “negociação”; faço o “bem”, sou uma pessoa boa, logicamente, serei protegido nessa vida e na que vier depois da morte. O estágio ético é o que rompe mais facilmente, já que, quando acontece alguma coisa, que a pessoa vê como uma injustiça consigo, tende a aumentar a angústia. Nem sendo “bom” tem saída! O grande problema desse tipo de atitude é que, claramente, a pessoa muitas vezes se anula, vive dando a outra face, restringe suas ações e vontades que demarcariam sua identidade, anulando-se em troca de “proteção”. Posso até pensar que esse agir de forma correta, também é uma culpa pelos exageros do estágio anterior. Os bem-intencionados, são destinados a habitar um lugar bem diferente do que esperam por suas boas ações, pelo menos segundo a sabedoria popular. Aceite, curve-se, perdoe infinitamente, aceite o mundo como ele lhe parece, não reaja, não lute, negue-se e espere a recompensa!

Já no Estágio Religioso, quando os anteriores não conseguiram resultado, a saída é encontrar na religião e em suas explicações o final da angústia pelo, finalmente, entender o mundo. As religiões têm em sua metafísica uma explicação para tudo, para os absurdos, para o que não entendemos ainda (milagres), para o que está por vir e uma matemática fascinante: Faça o que dissemos e lhe daremos (depois da morte, sempre) sua recompensa. Todo sofrimento e injustiças (sempre em comparação com uma ilusão do que deveria ser), faz parte desse mundo de provações. Depois da dor, exploração e sofrimento onde sua resignação, modernamente chamada de resiliência, será recompensada com o pagamento somente para os que mereceram e padeceram. Todos os maus pagarão, enquanto os demais, viverão na bem-aventurança, sem corpo, sem luta e sem desejos. Aqui, a lei dos homens pode ser facilmente transgredida por uma lei de Deus. Até por tê-los decepcionado nos estágios anteriores.

Mas Kierkegaard, oferece o quarto caminho; o do Salto da Fé. Aceitar e conviver com a angústia, confiando em Deus, seus desígnios e sua sabedoria infinita. Aqui é a escolha quando os demais estágios falharam e a razão é transcendida pela fé. É um verdadeiro “salto no escuro”, pois, como sabemos, a fé não apresenta nenhuma garantia racional, mas, para Kierkegaard é justamente por isso sua salvação. Esse salto não é passagem, pois não é gradual ou feito de forma suave, como um dar-se conta, é o que sobra para quando nada que foi tentado antes tenha tido resultado. É salto, pois é ruptura de uma antiga atitude perante a vida, baseada em algum raciocínio, para outra.

 Parecido com o “salto”, encontramos o conceito de “beatitude” em Spinoza e “Amor-Fati” em Nietzsche, e “conciliação” em Camus, só que, neles sem a questão religiosa, apenas no que se refere a essa aceitação da vida com seus, para nós, paradoxos. O “salto” parece ser o único ato livre, até então, reagimos ao mundo, seguindo padrões e confiando em receitas prontas, renunciando à liberdade, conceito tão bem trabalhado pelos existencialistas.

Cabe a você, leitor e a mim, decidir se é ato livre ou desespero. Filosofia vive de perguntas, nunca esqueça!

Para os que estudaram sua vida, Kierkegaard parece que passou pelos estágios que descreve e ler mais sobre ele e suas ideias é a sugestão que fica para quem quer saber mais desse pensador, que não saiu de moda e pelo visto, ficará muito tempo nos lembrando que aceitar como somos, desse jeito inquieto e insatisfeito, pode ser o motor para uma vida bem melhor do que aqueles que nossos pensamentos nos mostram, quando a eles estamos entregues.

Se a angústia é a condição em que o homem se percebe em relação a um mundo que não entende, muito menos domina, o desespero é a maneira como nos percebemos diante de nós, inseridos na angústia. Ao dar o Salto de Fé, a fé substitui o desespero pela esperança em Deus, a solidão encontrou amparo.

A questão é:  já vivemos o suficiente para “saltar”? Existe mesmo felicidade?

Se fomos felizes em algum momento e não percebemos, e essa é uma lamentação comum, talvez só falte abrir melhor os olhos, e perceber que nosso problema seja em estar sempre insatisfeito, esperando de nós e da vida sempre outra coisa.

Kierkegaard dizia que algo só seria verdade, se fosse verdade para ele.

Ele encontrou sua saída, mas como as pessoas não se repetem, quem sabe cada um de nós tem uma que lhe caiba, que seja sua verdade, somente para si!

Não somos iguais em nada, quem diz que sim, ofende evidências.

As feridas de Narciso

“A ciência é filha da verdade e não da autoridade”.

                                                                                         Nicolau Copérnico

“O homem, em sua arrogância, pensa de si mesmo como uma grande obra, merecedora da intervenção de uma divindade”.

                                                                                          Charles Darwin

 

“Meu inconsciente cria fantasias que minha mente sã nunca ousaria imaginar”.

                                                                                           Freud

caravaggio-narciso-d

“Era uma vez um jovem muito belo e orgulhoso chamado Narciso. Ele era filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope.

Quando Narciso completou 15 anos, Liríope consultou o adivinho Tirésias (ela foi a primeira que foi consultar-se com tal) se o filho teria longa vida. Então, foi-lhe profetizado que Narciso jamais poderia ver o seu reflexo, pois esta seria a sua ruína.

Realmente, Narciso era um lindo homem, o amor e paixão de muitas ninfas. Este, em contra-partida, sempre rejeitou o amor de todas elas. E a ninfa que mais se destaca é Eco. Acontece que Narciso rejeitou também o amor de Eco. A ninfa então, definhou por ter sido rejeitada, deixando apenas um sussurro débil e melancólico.

Todavia, a deusa da vingança e retribuição, Nêmesis, apiedou-se da moça e fez com que Narciso visse o próprio reflexo e se apaixonasse por ele. E o jovem ficou enamorado de si mesmo, e deitou-se no banco do rio a admirar o próprio reflexo; onde definhou. Mais tarde as ninfas construíram-lhe uma mortalha para que este fosse enterrado dignamente. Porém, quando foram encontrar seu corpo, somente avistaram uma flor: O Narciso”

Narciso encantou-se consigo e nós também, de certa forma. Quando Narciso, rejeita o amor de todas as interessadas, ele se fecha em si mesmo. Criamos uma expectativa de mundo, de como o mundo é, baseada no que nos ensinam e nas mentiras que nos contaram para que não tivéssemos medo. Assim como é no particular, a humanidade também criou suas fantasias sobre si e o Universo, que foram sendo desconstruídas, a medida que fomos “abrindo os olhos”.

 Um dia, nós, nos damos conta que a realidade é completamente diferente. A contingência, ou seja, as forças do mundo e sua imprevisibilidade, provocam uma primeira e grande desilusão; somos falíveis e corremos risco constantemente. Diferentes de Narciso que era reconhecido pela sua beleza, muitas vezes o espelho nos decepciona, descobrimos colegas mais bonitos e inteligentes e nos percebemos plebeus, ao invés de reis. Essa insegurança, que começa com a descoberta de nossa vulnerabilidade, além, é claro, da inescapável finitude, nos acompanhará a vida toda. Para amenizá-la, precisaremos dar sentido à vida, termos propósitos, desejos, esperança de eternidade, paraísos, anjos da guarda e buscarmos a felicidade, que nada mais é que momentos de esquecimento.

Freud disse que não nascemos com um “Eu”, que ele surge em determinado momento quando nos reconhecemos como sujeito. Diante do espelho, o que antes pensávamos que era outro, damo-nos conta de sermos alguém, que existe em contexto e relação.

Nós, enquanto humanidade, também tivemos nossas decepções ao longo da história que foram nos ajustando a uma nova realidade, bem menos glamorosa. Freud as chamou de “Feridas Narcísicas”, acontecimentos e descobertas que, em contraste com o que aprendemos com as crenças e religiões, mudaram nossa relação com a vida. Narcísicas, justamente para percebermos que não somos tão belos como o personagem. Essas “feridas” foram tirando nossa beleza, criada ao longo da história com claros interesses de dominação.

A primeira ferida foi o heliocentrismo. Quando Copérnico mostrou que era o Sol o centro e não a terra, sofremos um abalo. Na época, não tínhamos consciência da infinitude do cosmo. Pensávamos que o nosso planeta repousava no centro do Universo, para que nós, a suprema criação divina, nos desenvolvêssemos plenamente.  Descobrimos que a Terra girava, fazia parte, era coadjuvante em um Universo caótico. O Cosmo grego, perfeito e o homem enquanto peça dessa perfeição caiu por terra, a religião sofre um duro golpe e o homem descobre-se só e tendo que assumir tarefas em relação a si que antes estavam delegadas. A terra não era mais o centro do universo, o Homem assume essa posição.  Ficamos mais frágeis e inseguros, agora estávamos por nossa conta e isso nunca é fácil, ainda hoje.

A segunda ferida veio com Darwin. Quando, em 1859 publicou “A origem das espécies” sua teoria não foi bem recebida, principalmente pelas religiões. A principal e mais devastadora notícia que nos trouxe foi que o homem não era o centro da evolução. Somos o resultado da evolução de ancestrais que deram origem a raça humana. Os macacos não eram nossos “pais”, talvez primos. A semana criativa contada pelo Gênesis, veio por terra e, a última criação atribuída a Deus não foi tão espetacular assim. Há quem diga que o fato de Deus não dizer estar “satisfeito” com a criação do Homem, como afirmou com as anteriores (separação do céu da terra, das águas da terra, plantas e animais), deixou uma brecha. Nunca estaríamos prontos, acabados e determinados, mas teríamos um potencial de desenvolvimento e imprevisibilidade. Só não imaginávamos tantos pelos no corpo, bestialidade e brutalidade no começo e que ainda persistem em muita gente. Mesmo a cultura grega que dizia ser o homem uma criação do Titã Prometeu, estava otimista demais. Darwin sofreu muito com sua teoria e nós também.

De quase anjos, fomos rebaixados a pouco melhores que macacos e isso a biologia do século XXI já provou, faz tempo, que Darwin estava certo. Mais um golpe duro na nossa autoestima. O interessante é que o trabalho de Darwin permanece questionado. Ainda temos versões da nossa perfeição, Adão e Eva ainda fazem parte do imaginário de milhões de inocentes mundo a fora.  E como não há limite para sonhar, a esfericidade da Terra voltou a moda apesar dos satélites com suas imagens e o relato dos homens que estiveram lá fora,no espaço. Ainda temos “crianças” apostando que ela é plana. Assim como colocarmos crianças para trabalhar, coisa que em muitos lugares, ditos subdesenvolvidos, nunca deixou de acontecer, a humanidade luta para deixar criança ser criança para que possa ser um adulto saudável com milhares de estudos e bom senso à respeito, temos, incrivelmente, agora já não inocentes, mas gente má, achando normal abortar a infância e adolescência em nome de arrecadação. Nossa indeterminação é um aberto, para evolução e involução como estamos vendo.

Nosso planeta era vulgar e nós, humanos, participantes, como os animais, plantas e insetos. Todos convivendo, cada um por si, em inter relação e disputa pela manutenção da vida. Todos habitando em conjunto numa Natureza feroz, que abate, dizima e destrói sem norma ou regra. A natureza tem ciclos, mas nenhum bom senso.

Mas, como sempre, tudo ainda pode piorar. Após descobrimos nosso planeta só mais um dentre bilhões (depois o Universo ficou infinito),  dos nossos antepassados estarem longe de uma paternidade nobre, o próximo golpe foi contra nossa percepção de capacidade.

Depois veio Freud que disse que nossa terceira ferida é que a consciência não é o centro da razão. Na verdade, os princípios dessa ideia já estavam em Spinoza, Shopenhauer e Nietzsche. Nossos atos são na maioria inconscientes e irracionais. Somos movidos por duas forças, que Freud chamou de Eros e Thanatos. Eros, é uma força geradora, não necessariamente ligada a sexo, mas criativa em essência, já Thanatos é nossa propulsão à destruição, não de nós, mas do outro. Somos carregados por elas, precisamos de limites e punições para convivermos com outros humanos no que chamamos de sociedade ou civilização.

Quem pode ser feliz se contendo o tempo todo? Precisamos de regras para tudo, caso contrário nossos desejos de satisfação e destruição põe toda convivência a perder. Mesmo com pena de morte e prisão perpétua, não paramos. Em contrapartida, mesmo nos países ricos as pessoas se auto destroem com drogas e índices elevados de suicídio. Somos indeterminados, contidos e desejosos, seja onde e em que circunstância for!

 Em seu livro “O mal estar na civilização”, Freud traz duas frases que ganharam fama: “O Homem trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança”, e “O Homem não é senhor de sua própria casa”, referindo-se a mente. Não controlamos o que pensamos, o que sentimos. Somos muito mais inconscientes e irracionais que nossa autoimagem gostaria. Não há Narciso que resista a tanta diminuição e perda da fantasia!

A Humanidade ainda luta contra sua vulnerabilidade. Queremos ser fortes, mostrando nossa capacidade de trabalho, de possuirmos coisas, sermos perfeitos, belos e nunca envelhecer. O problema é que os espelhos estão por todos os lugares para que possamos nos ver e lembrar que muito do nosso esforço é em vão. De tudo, o abandono e a falta de sentido que a vida pode trazer é algo difícil de suportar. Precisamos de sonhos, crescimento pessoal e objetivos de toda ordem para perceber que avançamos, que nossa vida não é em vão e sem sentido.

Só isso para experimentarmos a eternidade que só o esquecimento traz travestido de alegria. Claro que vale a pena! Aquela primeira constatação de existir, lá no começo, pode ser contrastada com uma vida bem vivida no final. Se for, seja o que vier depois, pouco importa!

Curamos em nós as feridas da humanidade, isso é evoluir!

Narciso transformou-se em flor, um belo final. O nosso problema é que Ovídio não está mais aqui para descrever de forma tão poética onde iremos parar!

 

 __________________________________________________________________

A História de Narciso

Divórcio

Doutor, vim aqui porque estou pensando em me divorciar.
Esse é um assunto comum nos consultórios de psicoterapia. O terapeuta fez, então, a pergunta protocolar:
– Esse pensamento tem a ver com você ter um outro relacionamento ou de uma insatisfação?
Meus relacionamentos são improdutivos.
Mudando de posição na cadeira, o terapeuta nota algo de errado:
– Você falou relacionamentos, no plural, tem mais de um? Então você está tendo um caso paralelo?
Não doutor, sou solteiro, não tenho nem namorada.
O terapeuta, rendendo-se às evidências, foi obrigado a assumir algo difícil:
– Não entendi. Preciso que me explique melhor.
O cliente se encosta na cadeira e suspira profundamente, sinal de que uma longa fala irá começar:
Uma vez me disseram que eu não era eu, só eu. Fiquei chocado! Além de mim, também era mais dois. Claro que não sabia!
Aquilo já era uma novidade e os muitos anos de experiência mostraram ao terapeuta que estava diante de uma situação pouco comum. Disse em seguida:
– Você está me dizendo que não é uma pessoa só, que és três?
Bem isso. Pensava que era um ponto e me descobri triângulo e se tem uma coisa em que a geometria mostra à vida é que triângulos não dão muito certo, sempre tem dor.
– Foi bom, porque nessa época já falava comigo em diálogos internos e mesmo sem nunca ter tido uma resposta, o lado bom foi que descobri que realmente falava com “alguém”, um alguém que também era eu e decidi parar por aí. Já tinha uma boa notícia e para que estragar tudo com mais perguntas, sobre uma terceira parte? Não foi fácil se perceber dois, imagina três!
– Quem são os “outros dois”? Pergunta o terapeuta
Eu, a alma e o espírito. Nós três.
Agora o cliente podia seguir livremente, já que quem se recostou na cadeira foi o terapeuta.
Mas o tempo não fez diminuir a curiosidade; se era dois com certeza, mas disseram que era três, onde está essa outra parte de mim? A bem da verdade, essa outra parte que passou a ser conhecida, que devia ser com quem falava sozinho (?), era a alma ou o espírito?
– Tinha necessidade de descobrir quem eu conhecia para ir atrás da parte de mim mesmo ainda estranha, mesmo que essa com parte que conversava e nem sabia quem era passou a existir para mim. Mas me disseram que estamos, os três, sempre juntos. Como que nunca tinha percebido? Claro que agora ficou fácil de compreender o motivo de eu nunca me entender, eu pensava que era um, mas era três. Com um eu falava, que não respondia, e ainda tinha outro de mim que deveria também estar só ouvindo.
– Será que se falasse com essa parte que não falava comigo, que ainda não sei se é a alma ou o espírito, eu teria melhores respostas?
– Devo ser uma pessoa com problemas, tenho mais dois de mim e nenhum me responde nada? Talvez seja um problema de muita gente, já que vejo todos olharem para cima e perguntar para Deus. Talvez alma e espírito sejam mudos, só pode!
– Descobri mais coisas: que o espírito já viveu outras vezes e ainda vai viver depois que eu morrer. Mas nunca percebi que tinha vivido antes. Ainda me espanto com o mundo todo dia! Essa parte de mim que já viveu, deveria me ajudar com sua experiência, se não de que adianta? Para que aprender o que eu já sei, ou deveria saber através dele? Se eu preciso passar pelas coisas, de que adianta ter uma parte de mim que já passou por isso e fica só olhando?
– Não sei se preciso de partes assim, desinteressadas de mim, com um silêncio omisso!
– Vou me divorciar desses dois relacionamentos improdutivos que tenho comigo mesmo! Chega dessa vida de carregar dois que não me ajudam em nada, ainda me pedem atenção e não fazem nada a não ser essa falta constante de diálogo! Dizem que preciso cuidar da minha alma e do meu espírito, que preciso meditar e me reconectar. Com quem, com quem nunca me ajudou em nada?
– Se o espírito viveu e viverá, dizem, eternamente, não abre a boca, o que dirá da tal da alma?
– Vou ficar sozinho e a primeira coisa que vai acontecer é eu não falar mais comigo mesmo. Assumir minha solidão, ser só e honestamente um, provavelmente vai me deixar mais leve. De que adianta se esse espírito vai viver mais e mais se não estarei lá. Nem sei se quero, também não vou ficar confiando em quem nunca se manifestou, ou me deu uma dica sequer. Fica só olhando eu aprender sozinho, então fico só de vez!
– Ao invés de aprender com ele é o contrário, pelo menos é o que parece. Fico passando por situações para que ele aprenda e use em um outro eu que nascerá depois? Eu devo ser um “depois” e estou aqui dando minhas cabeçadas, abandonado!
– Dia desses, alguém falou que eu precisava ouvir minha voz interior. Até ia perguntar se essa voz era da alma ou do espírito, mas fiquei quieto. Já está dando preguiça!
– Mas se é eu que estou pensando, é só eu falando sozinho, que pensava que falava sozinho, mas que falo com minha alma e espírito que nunca respondem. Pensei em também olhar para cima e perguntar, como todo mundo faz.
O terapeuta, perplexo, deixa escapar quase instintivamente:
– Perguntou:
O cliente maneia a cabeça e responde em voz baixa:
Me contive. Não sei se estou pronto para mais silêncios.

Um nome, um vazio

               “Somos indivíduos livres e nossa liberdade nos condena a tomarmos decisões durante toda nossa vida. Não existem valores ou regras eternas, a partir das quais podemos nos guiar. E isso torna mais importante nossas decisões, nossas escolhas”.

               “O homem está condenado a ser livre, condenado porque não criou a si, e ainda assim é livre. Pois tão logo é atirado ao mundo, torna-se responsável por tudo que faz”.

                “Quando, alguma vez, a liberdade irrompe numa alma humana, os deuses deixam de poder seja o que for contra esse homem”.

                                                         Jean-Paul Sartre

As-Estações-do-Ano-3

Abordei em texto anterior (A Palavra e a Vida), que somos uma impermanência. Justamente por sermos o resultado dos nossos encontros e Abordei desencontros com mundo, de tudo que passamos e das experiências que tivemos, não há nada que nos pré-determine, ou usando uma palavra mais conhecida; não temos uma essência. Se ainda assim, o caro leitor quiser usar essa palavra, podemos dizer que nossa essência é liberdade. Essa é a condição da vida, sempre instável em um mundo de incertezas.

Uma das correntes filosóficas que mais aprecio é a “Existencialista”, que não só defende essa ideia, que não temos nada que nos preceda(essência), mas que vai mais a fundo e diz que nosso momento presente é sempre um “drama”, devido a essa liberdade, que termina sendo um fardo, já que traz toda a responsabilidade para nossos atos. É claro, que, somente nossos atos não escrevem nosso destino, já que tudo é impermanente, livre e imprevisível. Não basta só querermos, afinal todos querem alguma coisa o tempo todo e não dá para todos. Tudo acontece pela nossa liberdade de agir ou da ausência dela, o entrechoque de desejos e interesses de outras pessoas além das forças naturais, sempre fazem esse caminho até nossos sonhos ser muito diferente daquele que imaginamos em nossas visualizações criativas.

Assim, o que chamamos de “presente” ou “agora” sempre visto como a verdadeira realidade, onde está a felicidade (para os discípulos de Eckhart Tolle, por exemplo), para os existencialistas, é uma percepção de um certo “vazio” diante da vida e isso tem uma explicação bem simples de entender. O que chamamos de “momento presente” torna-se um vazio, justamente por ser um divisor de águas entre um passado conhecido e um futuro incerto. Se, por um lado, não sou mais o que já fui, seja uma lembrança agradável (nostalgia) ou por um ato que gerou sofrimento (culpa), também não sou o que busco ser, imaginando que quando for, serei mais feliz e terei mais paz que hoje, o que chamamos de “esperança”. O presente então é uma ausência, um “vazio” de ser, e isso para nossa mente que busca constantemente a estabilidade é muito sofrido e gera angústia.

É muito comum, como motivo de buscar a psicoterapia, querer entender essa sensação estranha, quando todos os fatores externos são indicativos de que tudo está bem, que não haveria motivos concretos para estar apresentando essa insatisfação. Se você gostou dessa reflexão, poderá entender o motivo das pessoas apresentarem estresse sem um motivo real. Na grande maioria das vezes, ninguém, por absoluta falta de conhecimento, consegue entender como uma sensação interna é tão contrária à realidade material.

O presente é uma insatisfação, um vácuo entre o que não sou mais e o que quero ser. E aí, entra a liberdade que, segundo Sartre, o mais proeminente dos Existencialistas, é um fardo e não algo positivo. Esse “presente” entre os estados passados e futuros é o momento da ação livre, justamente para buscarmos o que queremos ser. Então por que essa liberdade é um fardo? Porque se errarmos na ação livre o resultado da nossa eventual infelicidade será somente obra nossa. Não haverá nenhum Deus ou carma para explicar nosso erro. Ser livre, realmente, não é fácil, é muita responsabilidade!

Portanto, se acontecer de você estar sentindo esse “vazio” sem motivo, é por ter se dado conta conscientemente (agora que já sabe), que se percebeu nesse hiato existencial entre o que já foi e o que ainda será.

Quando ele não está presente?

Quando estamos vivendo intensamente, seja por uma situação que nos afeta, seja quando estamos em desenvolvimento, buscando sonhos e realizando desejos. Nessa hora, estamos tão “ocupados” que não nos damos conta.

Mas, podemos ir além e aproveitar mais dessa visão:

Por trás dessa ideia temos uma outra questão a ser discutida; o que chamamos de “identidade”. Ora, o próprio conceito de identidade traz em si a ideia de permanência, de algo parado no tempo, a identidade diz quem sou o tempo todo. Vale para o documento, onde precisamos mudar a foto, vez por outra e nos damos conta da mudança física, mantendo sempre o nome e o número, mas e na vida?

Na vida, se tudo é impermanente, se o mundo nos muda o tempo todo, se vivo esse permanente vazio entre o passado e o futuro, qualquer ideia de identidade é um erro, ou, impraticável na realidade. Vivemos esse paradoxo; de um lado nos percebemos em constante instabilidade e de outro, nossa mente precisa da segurança de sermos algo estável, que forneça segurança na busca de sobrevivência! Também fazemos isso com quem convive conosco, onde a mudança do outro me traz ansiedade de não mais prever seus pensamentos e ações.

A que conclusão chegamos?

Que toda a verdade é sempre um instante, não algo que possa permanecer.

Como conviver com isso, já que verdades duradouras são tão necessárias para nos sentirmos bem?

Entendendo!

Dessa forma, só para dar um exemplo nos relacionamentos afetivos, o sentimento é uma verdade do instante, que pode ser hoje, amanhã e daqui a anos, mas sempre diferente, enquanto o compromisso é um ato moral, por dar a um instante uma duração e permanência “eterna”. Por isso, jamais pergunte o motivo de um sentimento mudar. Era verdade quando foi expresso e não era mais no segundo momento por que tudo que é vivo nunca permanece estável.

Da mesma forma, cobramos de nós mesmos uma identidade, por pensarmos que somos os mesmos, só por usarmos o mesmo nome uma vinda inteira, nos assustamos com nossas emoções, pensamentos e ações contraditórias, verdadeiras a cada instante!

Também dá para entender, a partir desses conceitos, o motivo de nossas expectativas sempre terem uma grande probabilidade de se tornarem frustrações. As criamos diante de um instante onde vemos alguém ou determinada situação. A expectativa congela esse instante, o torna definitivo e, a partir dele, fazemos nossas projeções. Mas como nada permanece ou deixa de mudar…

Assim, o que pensamos e fazemos não tem nada a ver com alguém que somos, mas com quem esta “sendo” a cada segundo!

Essa impermanência que no fim é nossa liberdade, por não a entendermos, termina nos aprisionando.

Nada mais contraditório, assim como nós.

Optimized with PageSpeed Ninja