Psicologia

A escolha de Páris

“Numa luta de gregos e troianos

Por Helena, a mulher de Menelau

Conta a história que um cavalo de pau

Terminava uma guerra de dez anos

Menelau, o maior dos espartanos

Venceu Páris, o grande sedutor

Humilhando a família de Heitor

Em defesa da honra caprichosa

Mulher nova, bonita e carinhosa

Faz o homem gemer sem sentir dor

A mulher tem na face dois brilhantes

Condutores fiéis do seu destino

Quem não ama o sorriso feminino

Desconhece a poesia de Cervantes

A bravura dos grandes navegantes

Enfrentando a procela em seu furor

Se não fosse a mulher, mimosa flor

A história seria mentirosa

Mulher nova, bonita e carinhosa

Faz o homem gemer sem sentir dor…

                            Zé Ramalho – Mulher nova, bonita e carinhosa.

A escolha de Páris - Tarô Mitológico - Os Enamorados
Tarô Mitológico – Os Enamorados – A escolha de Páris

Nenhuma mitologia fala tanto a nós ocidentais como a Grega. Não são só uma infinidade de palavras que utilizamos em nosso dia a dia, bem como muitos conceitos e ideias que nunca paramos para pensar de onde vem e que estão introjetados em nós pela cultura.

Seus mitos e histórias, muitos séculos depois, continuam falando de nós e nos influenciando grandemente e, para quem por ela se interessa, trazendo muitas respostas e entendimento.

A história que vou contar é uma dessas que falam do feminino, masculino, e da “fortuna” que costumamos chamar de destino. A guerra de Troia foi narrada pela primeira vez por Homero e, tenho certeza que você lembra daquela história do cavalo de madeira, que foi visto como um presente (hoje dizemos quando se recebe um presente inconveniente é um “presente grego”),  que estava com centenas de soldados escondidos em seu interior que puseram fim a uma longa guerra. A ideia foi de Ulisses, mas tudo começou muito antes de um jeito inesperado…

A história de Paris que contarei será acrescida de “detalhes”, ou uma licença poética, se preferir, vinda do filósofo francês Luc Ferry em seu livro “A sabedoria dos mitos gregos” e desse que vos escreve, afinal, como psicoterapeuta, é sempre uma oportunidade trazer a mitologia para explicar quem e como somos e  entender nossos comportamentos.

Tudo começou em uma festa de casamento de Tétis (uma divindade marinha) e Peleu (um mortal, rei de uma cidade da Tessália), que seriam futuramente os pais de Aquiles, personagem importante na guerra de Tróia. Tétis, como toda mãe de menino, temia que seu filho sofresse e o mergulhou no rio Estige logo após o seu nascimento para que fosse protegido pelas águas sagradas do rio. Claro que precisava segurar a criança, e o fez pelo calcanhar, assim essa parte ficou desprotegida e Aquiles morreria com uma flecha envenenada no calcanhar durante a guerra de Troia, desferida por Pária, filho do rei da Etiópia. A morte de Aquiles nos lembra que nada é seguro e que quem nasce, necessariamente morrerá, independente de toda a proteção ou riqueza que venha a possuir. Além disso, todos temos um ponto frágil, nosso “calcanhar de Aquiles”, onde nosso ego sucumbe, perdemos força e poderemos desmoronar se formos atingidos.

Voltando a casamento, a festa foi prestigiada pelos deuses e deusas do Olimpo e até Zeus compareceu, assim como mortais poderosos, semideuses, ninfas etc. Mas uma deusa foi propositalmente “esquecida” de ser convidada, já que sua presença nunca era bem vinda em qualquer evento. Éris, a deusa da discórdia (é isso que significa seu nome e a palavra oposta em grego é harmonia), foi deixada de lado já que era dia de festa e ninguém queria desentendimentos. Onde ela estava, o ódio e a raiva sempre suplantavam o amor e a alegria. Você conhece alguém assim? Se a resposta for sim, então Éris tem seus seguidores até hoje.

Éris era filha de Zeus e Hera, mas fora desprezada pela mãe por não ser bela e foi daí que ela se dedicou a discórdia como forma de vingança. Se Éris nascesse hoje, faria sucesso em um consultório psicanalítico, onde sua relação com a mãe daria bons anos de análise além de processar a própria mãe por bullyng.

Mas Éris não precisou de convite, foi assim mesmo. Ela não perderia uma ocasião tão propícia para gerar desentendimentos e conflitos.

Ao chegar na festa, Éris coloca na mesa principal, onde todos estavam reunidos um pomo* de ouro onde estava gravado “para a mais bela”,  daí vem a conhecida expressão “pomo da discórdia”.

 Pronto, Eris que sabia como causar problemas, acertou em cheio, tocou na competitividade entre as mulheres! Sejam elas mortais, deusas ou simples mamíferas do reino animal, fêmeas disputam o tempo todo quem desperta mais desejo, afinal, são elas que escolhem os genes, sendo responsáveis diretamente pela manutenção e progresso da raça. Nenhuma fêmea desse ou de outro mundo aceita a segunda posição. Conta a história que todas gritaram em uníssono “É para mim então!” Estava armada a discórdia! Éris, sorria!

Por hierarquia, nenhuma semideusa ou mortal se meteria nessa disputa, as postulantes foram Hera, a esposa de Zeus, a quem ele nada podia negar, Atena (Minerva para os Romanos), filha predileta de Zeus, deusa da sabedoria, inteligência, das artes e da justiça e Afrodite, deusa do amor e da beleza. Como se percebe, não eram concorrentes quaisquer.

Éris, como era de se esperar, pede para Zeus decidir, colocando-o em situação delicada. O grande chefe do olimpo, que de bobo nada tinha, se eximiu de responder, já que sua decisão, seja ela qual fosse, traria imediatamente uma alegria e dois problemas.

Zeus então pede para Hermes, seu ajudante para assuntos complexos, difíceis e desagradáveis, buscar nas redondezas, sem chamar muito atenção, algum jovem inocente para fazer o julgamento. Hermes sai para cumprir sua tarefa e encontra um rapaz que, à primeira vista (aqui é um ensinamento importante sobre julgamentos apressados), era um simples pastor troiano. Mas o rapaz era ninguém menos que Páris, um dos filhos de Príamo, rei de Tróia.

Páris fora abandonado ao nascer pelos pais, pois segundo o oráculo ele seria responsável pela destruição da cidade. Foi salvo por um pastor que se apiedou do recém-nascido e o criou como filho. Se você sabe da história de Édipo (oráculo previu que ele mataria o pai e casaria coma mãe) e Moisés, colocado bebê em uma cesta no rio, pode perceber que, livrar-se de crianças que poderiam trazer problemas era comum na época!

Então, sob a aparência de um jovem camponês, esconde-se um príncipe troiano. Com a ingenuidade típica da juventude, Páris aceita ser o juiz e escolher entre as três mulheres poderosas, a mais bela.

Colocado diante delas, cada uma oferece ao jovem o que representam, para convencê-lo na escolha. Hera, que reina ao lado de Zeus no universo inteiro, promete que, sendo escolhida, ele também teria um reino sem igual na terra.

Atena, deusa da inteligência, garante que, sendo eleita, Páris terá vitória em todas as batalhas.

Afrodite, sussurra ao seu ouvido (ela sabia mesmo como fazer), que, se fosse eleita, ele poderia seduzir a mais bela mulher da terra.

Aqui paramos para duas reflexões, antes da escolha de Páris. A primeira; as mulheres e isso simbolicamente é mostrado nos artifícios para permanecerem belas, lutando contra o tempo, valorizam suas qualidades e escondem o que pode tirar-lhes a competitividade e, como os homens, diante da sedução e do poder da beleza feminina, mudam o parâmetro de suas decisões. Ponto para Freud, que, com certeza, buscou na mitologia sua tese sobre a importância da libido. As ofertas de Atena e Hera eram para uma vida inteira e a de Afrodite era um convite ao prazer imediato. Fica a pergunta; se Páris já tivesse tido a experiência do casamento, teria feito a escolha que fez? Nunca saberemos, e isso vale para a nossa e todas as vidas, não é mesmo?

Pelo que se sabe, Páris não demorou muito a decidir, a emoção é sempre muito veloz. A escolha recaiu em Afrodite que oferecia beleza e sedução. Como bem disse Nietzsche, séculos depois, algo em nós pensa, o corpo!

O problema, é que a mais bela mulher do mundo, Helena, era casada! E seu marido, também não era nenhum desconhecido, aliás não é comum mulheres de exuberante beleza escolherem desconhecidos. Helena era esposa de Menelau rei de Esparta, a mais guerreira das cidades, dona de um exército de dar medo (lembra dos 300 de Esparta, o filme?).

Cabe pensar que Páris, se estivesse em casa dormindo quando Hermes foi a procura de um juiz, teria evitado anos de guerra e milhares de mortes. Então, inspirado ou seduzido por Afrodite, tanto faz, raptou Helena, que obviamente se apaixonou por ele, colocando em guerra Gregos e Troianos. Daí também vem a expressão popular “agradar gregos e troianos” como algo quase impossível.

Foi por causa dessa guerra que Ulisses deixou sua Penélope e o filho Telêmaco para ir lutar e ter a ideia do cavalo de madeira, mas a saga de Ulisses é outra bela história de amor, astúcia e escolhas, ligada a essa, assim como nossa vida é resultado de uma séria de causas que se interligam e que desconhecemos suas origens.

Éris conseguiu o que queria e mais, além de colocar três deusas em discórdia, ganhou de bônus a luta de Páris, o fim do casamento de Menelau, a morte de Aquiles para desespero de sua mãe, Ulisses e suas aventuras depois da guerra para voltar para casa e tantas outras coisas.

No fim, a beleza da mitologia grega é mostrar deuses como quase humanos, com suas falhas, inclinações e até ações inconscientes e reativas, como nos mostra a história da escolha de Páris. Deve ser por isso que falamos deles, contamos e recontamos suas histórias até hoje e continuaremos a fazê-lo por muito tempo. São quase humanos, só a imortalidade nos diferencia e isso só acontece porque morremos. Tudo que se diz ser imortal, só acontece por quem os idolatra morrer.

Deuses que erram e tem falhas tem mais a ver com o que observamos acontecendo todo dia na vida. Já os perfeitos, parados, esses que, se existirem (o que é improvável em um Universo que muda a cada instante), não se metem no nosso mundo, como nos ensinou Epicuro.

Qual o problema de estarmos por conta das circunstâncias e vivendo a maravilha da imperfeição? Só assim poderemos continuar evoluindo, sendo um “devir” de causas desconhecidos e futuro imprevisível. Isso é a Vida, que insistimos em tentar prender com nossos conceitos de bem e mal, justo e injusto. Vida não se prevê, é uma força caótica e transbordante!

A imagem que abre esse texto é do Tarô Mitológico e a escolha de Páris ilustra o arcano dos “Enamorados”, sexta etapa do processo de autoconhecimento. Ali, discutimos nossa capacidade de fazer escolhas e suas consequências, sempre muito difíceis de prever, como sabemos, já que razão e corpo nunca se separam.

Só não esqueça que Éris continua por aí, se deliciando com nossos medos, verdades e disputas imaginárias para termos a ilusão de que dominamos ou controlamos o incontrolável e que nos fazem discordar, discutir e disputar por verdades que nunca existiram!

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*Pomo – pseudofruto formado pelo ovário envolvido pelo receptáculo floral, carnoso e muito desenvolvido, e que é a porção comestível de frutos como por exemplo a Pera e a Maçã. Dicionário online.

Spinoza e o Desejo

“Compreendo pelo nome de desejo, todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com seu variável estado, que não raramente são opostos entre si, em que o homem é arrastado por todos os lados, não sabendo para onde se dirigir”.

                                                                 Spinoza, Ética, III

“…o desejo é o pensar que sobe do coração, ansiando pela vida que lhe falta”.

                                                                  Marilena Chaui

Para começar, busquemos a origem da palavra “desejo”. “Desidero” deriva de “sidero” que é relativo aos astros ou estrelas. Desidero, então, seria ignorar ou deixar de ver as estrelas. Ora, se eram elas, as estrelas, que guiavam os navegantes na antiguidade, deixar de vê-las, é ficar à deriva, por conta da sorte ou da fortuna, termo que significa estar entregue ao acaso, valendo o mesmo raciocínio para as estrelas enquanto informações do destino, tarefa da astrologia. Assim, desejo é estar sendo dominado por forças externas, justamente por estar perdido no caminho que se deve seguir.

Desejo enquanto falta, teve sua definição mais famosa nos escritos de Platão, especificamente no “Banquete”. Ali, o amor é pelo que não temos, que nos falta, por isso com sensação de vazio, carência. Mitologicamente associado a figura de Eros, ou do amor erótico. Como já escrevi em textos anteriores, essa forma de desejar ou amar, é sempre baseada na carência e nunca termina, visto que o conceito de desejar está ligado a não ter. Como uma consequência, se o que me fará feliz é o que me falta, o que tenho, sabidamente não satisfaz ou não tem mais valor.

Mas não só Platão tem esse enfoque. Em outro clássico do pensamento filosófico, Thomas Hobbes escreve no Leviatã: “Do que os homens desejam, se diz também que amam, e que odeiam as coisas pelas quais sentem aversão. De modo que desejo e amor são a mesma coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência do objeto e quando se fala de amor, geralmente, se quer indicar a presença do mesmo”. Sempre é importante ressaltar que esse desejo não é específico dos sentimentos, mas dos bens, ideias e relacionamentos de todas as esferas.

 Já nas relações afetivas, de forma direta, desejo é bem definido pela antiga frase, que Marilena Chaui traz em seu livro, bibliografia desse texto, onde diz: “Forma de nossa relação originária com o outro, o desejo é a relação peculiar porque, afinal, não desejamos propriamente o outro, mas desejamos ser para ele objeto de desejo. Desejamos ser desejados, donde a célebre definição: o desejo é desejo do desejo do outro”.

Para Aristóteles, desejo é o movimento em busca da perfeição, de um sentido, de um lugar no “Kosmo”. Faltou a Aristóteles, uma informação indisponível em sua época; o Kosmo não é finito nem ordenado como imaginava, a realidade é oposta. Assim, o desejo tem seu fim no aumento da potência do homem, não em encaixá-lo em uma máquina perfeita. O homem, mesmo em constante relação é um universo em si, não uma peça!

Spinoza, então, revê o conceito de desejo e causa uma verdadeira subversão, afirmando que desejo é nossa natureza, nossa essência. Particularmente, sempre resisti a essa ideia de que temos uma “essência”. Como simpatizante do existencialismo, penso que, fora a genética, da qual não escapamos, seja pela altura, o nariz de um jeito ou de outro ou até mesmo a certeza pelo avô e pelo pai, que a calvície será inescapável, somos o que a vida fez conosco e da interpretação que damos a o que nos acontece. Spinoza abriu um clarão na minha percepção, trazendo para o conceito de essência todo sentido. Logo, se desejo é natureza ou essência, não é falta, sempre fez parte, está dentro! Se o desejo do pássaro é voar, do cão de latir, do gato de miar e do limoeiro de produzir limões, nosso desejo é ser mais do que somos. Não desejo o que não tenho mas desejo “ser” cada vez mais!

Desejo pela falta é impotência e servidão, já que está a quem de nossa possibilidade, sendo o homem desejante pela falta claramente controlado por forças externas, controle esse que nunca terá fim, já que o homem é alguém a quem sempre haverá algo a ser preenchido, independente da obtenção de desejos, pois sua natureza é a carência, o vazio da incompletude. É assim que pensavam os Estoicos e os Budistas quando diziam que a saúde é não desejar. Não desejar o desejo da falta é mesmo uma libertação!

Para Spinoza, desejo é uma força, da qual o homem se vale para criar realidades, se expandir, tornar-se outro, por provocar encontros com o mundo que lhe tragam cada vez mais alegria, afeto que em sua filosofia, aumenta a vontade de viver, em ações positivas para si que também alteram o mundo a sua volta. Em outras palavras, se relacionar com a vida de forma positiva, onde a troca com o mundo nos faça mais e melhores. Assim, desejo é interior, não movido externamente. O desejo não será suprido externamente, mas internamente e isso faz toda diferença. Desejo pela falta faz rodar a economia, riqueza, produção e, obviamente, angústia. Desejo gerado pela expansão, gera alegria, liberdade e vida, cada vez mais vida!

Desejo é nossa natureza de nos esforçarmos para o que julgamos útil à nossa conservação e expansão, com o fim de preservar nosso corpo e mente em estado cada vez mais elevado. Assim, não agimos por vontade, como afirma Schopenhauer, mas pela necessidade de nossa natureza desejante de mais alegria, que, posteriormente Nietzsche chamará de “Vontade de potência”. O desejo é a causa eficiente (vindo de nossa natureza), de nossas ações, já que a vida é uma infinita troca de afetos entre o homem e o mundo (cada vez maior e com mais força de nos afetar pela tecnologia), representada por outros corpos, pelas forças naturais e de outras formas de vida. Quer queiramos ou não, estamos em constante relação com o mundo e essa “contabilidade” precisa ser positiva.

Sob esse ponto de vista revolucionário, desejar não é estar dependente de nada, mas é sinônimo de saúde, já que desejamos mais força, expansão e alegria. Spinoza não distingue em sua filosofia nenhuma separação, seja entre a mente e o corpo ou entre o corpo e o mundo, tudo e uma só realidade, em constante busca de conservação e de mais vida, onde nada acontece sem uma causa, sendo portanto, tudo necessário, não podendo nada ser diferente do que é. Assim, não existe culpa, nem livre arbítrio, só existe a vida em essência com suas forças de preservação e expansão. De uma arvore, passando por qualquer ser vivo, tudo no mundo busca “ser” sua natureza, desejando ser mais forte, perseverar e conservar-se!

Para pensar, não precisamos parar de desejar, já que é o desejo que faz pensar. Quando o desejo tem origem em nossa própria natureza, somos livres para Spinoza, se sua origem é externa, como manda nossa cultura, somos escravos, prisioneiros da ignorância.

Quando conceitua “Virtude”, Spinoza afirma que é “desejar por nossa própria natureza”, com objetivo de aumentar nossa potência, ou vontade de viver. Com o exercício da virtude, até o próprio conceito de “paixão” muda. Se, normalmente ela é definida como algo que nos domina, nesse caso é uma parte de nós, nos impulsionando cada vez mais para a alegria, vivendo de maneira a estarmos de acordo com a vida, em sintonia com o mundo que o desejo cria, em uma conciliação com a realidade que Spinoza chamará de “beatitude”.

A ideia de desejo spinozana será fundamental para muitas reflexões de Freud e fará parte de muitos dos conceitos estruturais da psicanálise, como o recalque, ira, inveja e outros. Da mesma forma, a contenção da força interna do desejo é parte indispensável para entender o conceito junguiano de “sombra”, por exemplo.

Obviamente que a sociedade, precisa, para a convivência pacífica, ter mecanismos de controle e punição. O desejo em si, como já ressaltei é uma força de expansão ou crescimento, e sua impossibilidade de manifestação sadia pode provocar seu deslocamento para ações danosas contra si e contra outras pessoas. Justamente por isso que, em textos anteriores, disse que a sociedade é sempre um “organismo” prestes a explodir, já que sua natureza é a contenção, já que impõe limites para todos os indivíduos.

Se você acompanha o blog, poderá dizer que já falei muitas vezes de desejo em outros textos onde essa ideia fazia parte do contexto que ali era tratado. Se hoje trato mais especificamente do assunto e, provavelmente, o farei em futuras oportunidades, é por pensar que, se você entender o que é desejo e isso passar a fazer parte da sua vida e ações, talvez não haja mais nada para entender ou aprender.

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Desejo, paixão e ação na ética de Spinoza – Marilena Chaui, Cia das Letras.

O Leviatã – Thomas Hobbes, domínio público

 

A maior das utopias*

        “Os que procuram ouro cavam muita terra e acham pouco”.

             Heráclito

A felicidade é a ideia mais idiota já inventada”.

Luc Ferry

No meu canal do You Tube gravei um vídeo com o título “Uma vida cada vez mais veloz”, onde falei sobre o aumento da incerteza, na medida em que nossas necessidades para nos sentirmos ajustados e respeitados pelo meio cultural, exige cada vez mais itens e, esses itens perdem validade cada vez mais rápido. Assim, não são só profissões que estão desaparecendo com o desenvolvimento tecnológico, mas tudo fica sem valor muito rápido e isso traz um alarmante aumento da incerteza com todas suas consequências**.

 Podemos também, utilizarmo-nos do conceito de “desamparo aprendido” do psicólogo Martin Seligman que busca explicar a ansiedade e a depressão como consequência de um conjunto de estímulos negativos/opressores sobre os quais não temos controle nem previsão de um dia termos. Ora, além do já exposto com relação a incerteza, temos, por exemplo, nossos relacionamentos importantes; aqueles onde a ideia de perda ou afastamento nos gera intensa angústia. Relacionamentos esses que começam com quem nos cria, que fazem parte de nossa convivência mais estrutural e dos que vamos criando com o passar da vida, como amigos ou pessoas importantes que se fastam por vários motivos, cônjuges. Esse mesmo descontrole vale para a vida profissional, saúde, etc.

 Só de pensar nisso não há felicidade que aguente, ou há?

Nota-se, principalmente pelas redes sociais, que o conceito de estar bem ou feliz é quase uma lista do mês no supermercado, senão vejamos:

Precisamos chegar ao primeiro milhão cada vez mais cedo. Três décadas atrás, o sonho era uma casa própria, um carro e pagar a faculdade do filho. Hoje, isso precisa andar junto com o carro do ano, o melhor celular, casa ou apartamento na praia dos bem sucedidos, que estejamos sempre plenos, sorrindo, viagens inesquecíveis, finais de semana “perfeitos”,  mais tempo para a família, atividade física para a foto não precisar de retoque, um emprego com propósito, tornar o mundo melhor, honrar os antepassados e, é claro, escrever mil vezes a palavra “gratidão”.

Veja caro leitor, como as vírgulas são importantes, afinal, sem elas, teria acabado seu ar antes de chegar ao final da nossa lista.

Toda essa lista (com certeza esqueci de alguns itens), pode ser o objetivo de uma vida, mas do jeito que estamos, tudo precisa acontecer simultaneamente. Obviamente isso não é e nunca será possível, já que o dia ainda tem só míseras vinte e quatro horas.

Nesse mundo contemporâneo, como talvez só nos primórdios da humanidade, o perigo de não subsistirmos é muito real. Podemos, a qualquer momento, passarmos a experimentar necessidades primárias, já que tudo custa e não ter o meio de compra leva a carência. O mundo globalizado e conectado cria uma necessidade coletiva de comparação. Posso estar bem agora, mas ao ver em uma rede social alguém (parecendo) mais feliz e mais bem sucedido a frustração aparece, já que nos cobramos do motivo de não estarmos vivendo aquela felicidade ou sucesso. Tudo isso é uma grande bobagem, já que ainda nos surpreendemos com pessoas felizes, realizadas e milionárias experimentarem depressão e suicídio. Está na nossa cara e não vemos!

Da mesma forma a precisamos continuar a crescer profissionalmente e socialmente como mostra inquestionável de  sucesso, sempre em comparação. Com tantas necessidades, a tal felicidade, só de pensar, gera cansaço!

Aprendemos com Platão que o amor é algo que nunca acontece por estar ausente, que o mundo perfeito é em outro lugar, logo desejado pela falta e idealizado por não ser confrontado com a realidade, sempre especialista em tirar a graça das fantasias que criamos. Dessa forma, não entendemos que nos viciamos na ausência, na falta e é por isso que a corrida nunca termina. Todo esse roteiro é inalcançável e sempre faltará alguma coisa para a tal felicidade, e essa sensação de frustração tende a tirar o sabor daquilo que foi conseguido. A impossibilidade dessa vida idealizada só gera estresse e suas variáveis como a necessidade de remédios, depressão, pânico etc. Corremos atrás do impossível, que não existe como possibilidade real, afinal, sempre haverá algo que não tenho, que tema, seja o que for.

Na vida real, desconsiderada a idealização, que só serve para girar a máquina do consumo, é feita de erros, tropeços, decepções e recomeços. Como já cansei de escrever, a perfeição não é possível na impermanência, mas não desistimos!

Mesmo que o trabalho tenha o famoso “propósito”, é normal que, vez ou outra, estejamos cansamos e, se pudéssemos, tiraríamos sessenta dias de férias, afinal nada é como queremos em nossos sonhos e temos frustrações mesmo na atividade que nos realiza. Imaginar mais um dia pode trazer a sensação de que nosso corpo pesa toneladas e que não conseguiremos sair da cama. Mas isso não quer dizer que preciso de outra profissão empolgante, só estamos, de vez em quando, de saco cheio.

Recentemente ouvi a história de um senhor que sempre se veste de Papai Noel e se realiza em visitas as crianças no natal levando presentes e doações. Em um dezembro desses, estava “cansado de tudo” e decidiu parar até de ser o “bom velhinho”. Precisou ser duramente convencido a cumprir seu compromisso com as crianças por não ter como ser substituído em cima da hora. Lá foi fazer o que sempre gostou contrariado. A vida nesse mundo é assim, para que negar e fingir que tudo é perfeito?

Podemos ter um bom relacionamento e isso inclui momentos em que estar só está longe de ser uma má ideia, termos raiva ou chateação em relação ao parceiro(a), ficarmos decepcionado dentre outros sentimentos faz parte da vida real. Qual o problema, quem foi o sonhador que espera um relacionamento sem rusgas e uma ou outra decepção? Só quem nunca teve um e apresenta sua teoria dos “dez passos para um casamento feliz” que só pode partir do pressuposto que todos são como o autor imagina em seus devaneios, estando, provavelmente, solteiro.

Todos temos compromissos de trabalho, estudo (que hoje não tem fim para qualquer profissão), precisamos pagar as contas e falta tempo, o dia é curto e no mundo real não dá para termos muitas horas com os filhos, por exemplo. Não esqueça que eles também têm compromisso com a escola, atividades paralelas (pensando no futuro), chegam cansados em casa e não estão a fim de longas conversas. Quantas vezes, nem um simples namoro cabe na vida de um adolescente atualmente? Esse tempo de convivência virá de um esforço para fazê-lo acontecer, mas teremos ocasiões que, talvez, percebamos que nos últimos dias não deu, simplesmente não deu.

Quem não ama seus filhos, mas quem nunca se decepcionou com alguma ação ou escolha e vice-versa? Pais não são heróis e perfeitos, muito menos filhos são anjos que vieram diretamente do paraíso celeste.

O futuro já é hoje, precisa ser antecipado para que essas mudanças cada vez mais rápidas não nos peguem de surpresa. Temos muitos medos! Qual o problema?

São escolhas, todas tem um preço e estar consciente delas é a única possibilidade. Se a lista da felicidade for vencida em sessenta ou setenta anos, temos uma vida que valeu a pena e superou expectativas, mas se alguém tem a ilusão de cumpri-la simultaneamente, esqueça! Isso só fará a frustração e um sentimento de incapacidade tomar conta. Mais um sentimento negativo que nos escapa por simples ignorância de acreditar nas fantasias da felicidade duradoura.

Buscamos, desesperadamente, ser diferente entre quem tem vidas e necessidades iguais e precisamos mostrar isso, por exemplo, em uma foto de um domingo de chuva fazendo algo “sensacional” que desperte inveja e curtidas. Na vida real, tem a tristeza, saudade disso ou daquilo, medo de que algo aconteça ou não, além uma lista secreta de esperanças que jamais publicamos. Se a fizermos, todos descobrirão que a nossa lista da vida ideal está com vários itens sem o devido “Ѵ” de realizado.

Nada, nem ninguém nos faz feliz o tempo todo. Até para perceber felicidade, o contraponto é fundamental. Essa ideia absurda e infantil de estar sempre “feliz” nos desconecta de um senso de realidade. Essa busca insana pode ser apenas um álibi para abandonarmos projetos realmente importantes que precisarão ser acompanhados de alguns abandonos (afinal escolher é também dizer não), além do medo de fracassarmos.

A lista toda não rola e é uma idiotice como bem diz o filósofo francês Luc Ferry. Não é à toa que nosso personagem que ilustra esse texto nunca consegue saborear sua noz, ele é nossa metáfora. O conceito de estar feliz, ligado a ideia de 100% de alegria e ausência de tristezas e decepções não merece outro adjetivo.

Nosso conceito de felicidade é irreal e forçar a barra para ser feliz não vai ajudar. Essa palavra (felicidade) precisa ser reescrita sob o prisma do nosso tempo e não tem como conceituá-la sem levar em conta que momentos difíceis e desagradáveis precisarão fazer parte dessa nova definição, salvo que continuemos a viver de sonhos impossíveis.

Quem sabe, sugere Ferry,  possamos usar a palavra “Serenidade”, sentimento de estar em paz, apesar das incertezas e medos. Isso advém de compreensão, lucidez e consciência de si e do mundo que se vive. Isso é mais do que possível e talvez seja o máximo que chegaremos. Somos animais racionais e isso quer dizer razão e realismo. Nem damos conta disso ainda e queremos transcender a mente, sem sequer entendê-la…

 Escolha o que realmente importa e deixe o resto para outro momento, quando o tempo tornar seja o que for importante. Por hora, respire e relaxe! Veja beleza em não fazer nada ou em algo que não mereça uma postagem, é bom também! Tenha uma vida que possa ser mantida sem o preço da sua saúde física e emocional. Pode ter uns quilos a mais, um passeio a um lugar comum, um carro usado ou um dia na praia levando o almoço de casa, voltando à tardinha. Mas, se for acompanhado de leveza e alegria daquele momento vivido sem medo, parabéns, você chegou lá, mesmo que no outro dia alguns aborrecimentos ocorram. Você vive em mundo assim, não esqueça!

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*Sobre esse tema “Felicidade”, nos próximos dias um vídeo no canal, associando a frase de Luc Ferry com o pensamento de Aristóteles sobre o assunto.

**Tema também trabalhado no texto: “Ilusão, a grande mercadoria”

Ilusão, a grande mercadoria

“E sem dúvida o nosso tempo…Prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser… Ele considera que a ilusão é sagrada e a verdade profana, e mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado”.

                                         Feuerbach – A essência do cristianismo, 2ª edição.

“…Se a sobrevivência do consumível é algo que deva aumentar sempre, é porque ela não para de conter em si a privação. Se não há nada além da sobrevivência ampliada, nada que possa frear seu crescimento, é porque essa sobrevivência não se situa além da privação; é a privação tornada rica”!

       

                                           Guy Debord – A sociedade do espetáculo, § 44

consumo

Edmund Husserl, considerado o pai da Fenomenologia* usava o apagador do quadro negro para mostrar a seus alunos que, independente do ângulo, nunca se via o apagador totalmente, sempre há uma parte que não vemos. A isso ele chamava de “Transcendência”.

Da mesma forma, podemos dizer que a parte não vista da realidade, por termos sentidos limitados (já comentei em texto anterior), faz com que, nossa mente movida pelo medo, não lide bem com situações que não consegue antever gerando apreensão, mais conhecida como ansiedade. Desse modo, preenchemos a parte da realidade que nos escapa com nossas expectativas, símbolos, crenças, superstições, químicas ou, como fez Feuerbach, resumindo tudo em uma palavra: “ilusão”!

Tudo que citei acima vira mercadoria que Debord chama de “espetáculo”, ou seja, quando essa mercadoria ocupa totalmente a vida social, com consumo obrigatório, criando as mais diversas tribos que nascem nos âmbitos religiosos, políticos, estéticos e mercadológicos aproximando pessoas que pensam parecido e tornando os demais inimigos insuportáveis que devem ser silenciados. Afinal, eles podem com seus argumentos, trazerem dúvidas que essas frágeis soluções não gostam de ter.

Nesse século XXI, a velocidade da vida com a tecnologia e globalização, a volatilidade não só das mercadorias, como também das ideias, valores e crenças, trouxe, inevitavelmente um aumento da incerteza que torna a ilusão cada vez mais necessária para dar conta de uma realidade que já não nos permite enxergar um metro à frente. Há poucas décadas, o homem médio tinha uma lista de desejos que eram poucos e duráveis. Hoje, tudo perde validade no tempo entre uma inspiração e expiração, e o fato de não termos a menor ideia do que será a vida daqui a pouco torna todo tipo de ilusão um remédio para tornar tudo suportável, como uma anestesia.

Isso explica muito das bruscas mudanças políticas, a necessidade de líderes (que se mostram) fortes demonstrando que podem tomar conta de tudo, dando conta dos “inimigos” onde projetamos a culpa dessa incerteza cada vez maior. Quando o medo aumenta, precisamos de “salvadores” que costumam cobrar o preço que La Boétie nos descreveu tão bem no clássico “Discurso da servidão voluntária”. Cabe lembrar que não se aplicam somente a políticos, mas a líderes religiosos que cobram sua taxa de salvação que imaginávamos, depois da denúncia de Lutero, nunca mais voltariam a acontecer. Parece que nunca aprendemos com nossos próprios erros!

Repito a pergunta que fiz em texto anterior; A realidade não basta? Precisamos de muito mais do que podemos perceber pelo medo do que desconhecemos? O que nunca saberemos é quanto dessa realidade não percebemos, se um, vinte ou sessenta por cento…

A vida que podemos viver já apresenta tanta complexidade só com o que podemos perceber, para que mais? Se realmente precisássemos de mais realidade, provavelmente teríamos um corpo com recursos diferentes. A beleza pode ser simplesmente não ver todo o apagador e poder imaginá-lo livremente, mas nunca esquecer que estamos só imaginando e deixar as expectativas de lado.  Não damos conta de viver em um corpo material e, estamos aqui, contando com a possibilidade de continuar vivo sem um em uma próxima existência ou somando a nossa vida de hoje com vidas que imaginamos termos vivido. O lado bom da imaginação é que podemos construir à vontade esse passado duvidoso e fazer casar direitinho para dar entendimento (sentido) ao que a realidade não consegue nos mostrar. Esse é um dentre outros tipos de ilusão a que Feuerbach adverte com tanta lucidez na citação que abre esse texto.

Pequenos anestésicos disponíveis para quem pode pagar já não são mais suficientes nem para os que ainda sonham que o que preencherá seu entendimento sobre a vida virá em uma paixão, o corpo com aquele defeito eliminado ou um carro com muitos cavalos. Seja como for, antes eramos menos angustiados (pergunte a seu avô), porque o mundo ficou muito maior em pouco tempo, mais veloz, nos escapando pelos dedos deixando apenas um rastro de medo.

Antigamente as perguntas eram só duas: de onde viemos (causa inicial) e para onde vamos depois da morte (causa final). Hoje criamos outras para explicar o aumento da angústia, mas que, tal como as primeiras, nunca terão respostas. Para isso existe a nossa imaginação, fé ou qualquer artifício que traga uma resposta sempre provisória ou então substituímos a resposta pela ilusão e o que não falta são opções!

Talvez o que nos falte finalmente entender é que esse Espetáculo tem apenas uma condição de continuar em cartaz; nosso sofrimento constante, uma vida de afetos tristes que superem as alegrias, nossas pequenas tragédias e expectativas de que exista o mundo que criamos em nossa imaginação. Imaginação que nem sempre é nossa, copiamos de alguém que, como nós, atribui ao sofrimento e a precariedade de qualquer ordem, uma vantagem futura.

 Tudo resumido em uma só frase: O sofrimento é bom, serve para nos purificarmos para um dia termos, finalmente, uma outra vida onde tudo será bom e eterno. Claro que sem corpo, emoção e sem vida, tal qual conhecemos, sendo que é bom nunca esquecer: não temos nenhuma garantia de que esse outro mundo exista. Trata-se apenas de esperança, prima da ilusão.

De todas as ilusões essa é a mais vendida, isso porque sua propaganda funciona vinte e quatro horas por dia, desde sempre.

Não conseguimos um meio termo que é usufruirmos de tudo que a materialidade possa nos proporcionar, mas na condição de saber que ela nunca poderá ocupar um lugar que não é seu; dar sentido a nossa existência ou preencher aquilo que não conseguimos e nunca conseguiremos entender.

As prateleiras do mercado global estão repletas de opções para que o “espetáculo” não pare; deuses, comprimidos, amores que darão certo como no cinema e bens de consumo. Viramos consumidores de ilusões que sustentam um mercado que sabe muito como nos manter com nossas pequenas tragédias em constante modo de produção, buscando desesperadamente encontrar uma paz que só será possível se aceitarmos que o quadro nunca ficará completo e que esse “não saber”, longe de ser um enigma a ser decifrado ou anestesiado é no fim a graça de tudo; a beleza está escondida nas brechas do nosso sempre parcial entendimento!

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  • Fenomenologia (do grego phainesthai – aquilo que se apresenta ou que mostra – e logos explicação, estudo) é uma metodologia e corrente filosófica que afirma a importância dos fenômenos da consciência, os quais devem ser estudados em si mesmos – tudo que podemos saber do mundo resume-se a esses fenômenos, a esses objetos ideais que existem na mente, cada um designado por uma palavra que representa a sua essência, sua “significação”. Os objetos da Fenomenologia são dados absolutos apreendidos em intuição pura, com o propósito de descobrir estruturas essenciais dos atos (noesis) e as entidades objetivas que correspondem a elas (noema). https://pt.wikipedia.org/wiki/Fenomenologia

Ser Estoico

“Viver é aprender a morrer”.

                      Sêneca

“Querias ser livre? Para essa liberdade, só há um caminho: o desprezo das coisas que não dependem de nós”.

                      Epicteto

“Pratica cada um dos teus atos como se fosse o último da tua vida”.

                       Marco Aurélio

estoi

Ser estoico é viver de acordo com a natureza, mas não do jeito que podemos pensar apressadamente. Esse “viver de acordo” é ter um olhar realista para a vida, não de submissão, mas de entendimento. É abandonar as fantasias de um mundo que tenha algum sentimento, sentido, ou seja, de um jeito que possa ser explicado. O estoico sabe que o mundo é maior que sua capacidade de entendê-lo (já disse em outros textos), seja pelos sentidos falhos e, até por isso, saber que não vemos, escutamos ou percebemos toda realidade. Só que, não posso trocar o que estou vendo pelo que imagino. Pode parecer óbvio, mas a maioria das pessoas cria sua ilusão e vive sob a ótica da imaginação, renunciando à realidade o tempo todo. Mas como já tem uma explicação pronta para a decepção, que tudo tem linhas tortas ou vontades superiores, pode continuar imaginando e não aprender nada com a pancada que levou. Afinal, como sabemos, o reino dos céus é dos que sofrem.

Ser estoico é saber que o mundo ou a vida, como queira, pelo exposto acima, não tem nada contra ninguém, ele é do jeito que é; um conjunto de forças antagônicas, onde bilhões de seres imersos em uma natureza violenta e hostil, buscam perseverar (animais e plantas) e nós, além de perseverar, atender nossos desejos. Então, esse conjunto caótico nos impacta (afeta) a todo momento de alegria e tristeza e, vamos atrás do que queremos, nunca em linha reta, mas fazendo as curvas que esse mundo imenso nos obriga a fazer pela sua força. Por isso, tudo que queremos precisará de esforço e, também, um pouco de sorte.

Ser estoico é saber distinguir claramente o que está e não está em nosso poder. Fazer o que nos cabe e não sofrer pelo que de nós nada depende. Outra obviedade difícil de colocar em prática por uma razão cultural; fomos educados a contar com o transcendente, que tem Alguém que poderá nos dar ou tirar coisas dependendo de uma justiça ou bondade. Forma básica de controle comportamental, mas pelo visto não tão óbvia, por vigorar a séculos com sucesso.

Ser estoico é entender a natureza como um devir (vir a ser), resultado desse conjunto de forças que nos angustia pela imprevisibilidade. Justamente por isso, precisamos de “verdades”, “identidade”, promessas e juramentos para fazermos de conta que tudo está sob controle e parado. Nossa mente mamífera sofre com essa visível impermanência e precisamos de anestésicos. Esquecemos o que Heráclito já nos ensinou e continuamos buscando um mundo e uma vida controlável e previsível. Assim, fica difícil perceber toda essa mágica e excesso que é a vida que transborda de novidade a cada segundo. Criamos deuses que são sempre os mesmos, que nunca mudam. Se eles criaram mesmo esse universo onde tudo muda, eles também estão sempre mudando, já que ninguém cria algo que difira da sua natureza. Mas um Deus que muda (portanto pode errar), seria a mais terrível decepção, pois estaríamos entregues a impermanência e a estabilidade vira utopia (sempre foi), pelo medo que essa ideia gera. Incrível como as pessoas querem um mundo que não se desenvolva ou só se desenvolva dentro de critérios que acham “certos”. Quem pensam que são?

Ser estoico é perceber o óbvio; que o mundo não está aqui para nos servir e nem foi feito para nós. Se assim fosse, estaríamos aqui desde o início e hoje já é sabido pela ciência que estamos aqui a poucos “minutos”, em comparação a existência do planeta desde que se tornou habitável. Chegamos “agora” e vivemos como tudo que existe, em constante luta e mudança. Se desaparecêssemos, o planeta continuaria e bem, assim como aconteceu com os dinossauros e outros milhares ou milhões de espécies que já viveram e desapareceram. Somo como elas, simples assim!

Ser estoico é não perder tempo querendo responder perguntas que já nasceram sem resposta. É buscar viver sabendo que tudo é fluxo, muda constantemente e que cada momento é sempre último e irrepetível, como lembra Marco Aurélio. Isso dá a vida prazer, brilho e ineditismo que nossa busca por permanência e estabilidade nos faz perder na ilusão da estabilidade.

Ser estoico é entender que todas as paixões (aquilo que nos domina e nos torna dependentes) e superstições só servem para acalmar quem ainda se assusta com o mundo, esperando que um dia ele seja de outro jeito.

Ser estoico é saber que toda fé é filha do medo. Sem o medo para que ela serviria? Temos fé em nós por temermos não conseguir algo e buscarmos uma força que já temos, mas que não assumimos como nossa, para alcançarmos o que queremos. Temos fé em divindades pelo medo de que a vida seja “só isso”, o que dá desamparo para quem sonha com outra coisa. Temos fé na justiça, seja de que tipo for, porque nos angustia perceber que ela nunca existe fora de nós. Temos fé na humanidade, pois esperamos que possamos ser mais fraternos e menos violentos. Temos medo do que somos e podemos fazer. A fé é usada para enfrentar o medo, esquecendo que sem ele ela não existiria. A fé é um sonho que queremos tornar realidade. Por isso, a fé tem um lado bom; já que mostra o que poderemos conseguir se nos dedicarmos, seja individualmente, seja enquanto civilização.

Ser estoico é ter um certo e reflexivo desprezo pelos problemas e dificuldades, pois se tudo passa e nos tornamos outro a cada momento, nunca há o que temer. Sofrer sempre é não entender ou brigar com a realidade, esperando outra que seja mais certa ou correta como se a vida (esse conjunto caótico de forças), pudesse ser avaliada por conceitos ou controlada de alguma forma. Somos uma espécie viciada em problemas, tendo a morte como pano de fundo. Medo que leva a querer controlar e desejar para parar de ter medo.

Ser estoico é valorizar a reflexão, pensamento e compreensão. Saber compreender pode ser concluir que nunca se compreenderá tudo completamente e que isso faz parte!

Ser estoico é ter a felicidade como objetivo da vida. Essa felicidade nada mais é que estar em harmonia com a natureza (a vida como é), dominar as inclinações, moderar as vontades e buscar a paz pela compreensão, sem expectativas.

Ser estoico é estar aqui, nesse mundo e buscar a paz dentro do conflito, lembrando o conselho de Hipócrates:

“A vida é breve,

 A arte é longa,

 A experiência é difícil e incerta,

 A ocasião é rara!”

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Estoico deriva da palavra “stoa” Literalmente quer dizer “relativo a um pórtico (do Latim PORTA, ‘porta’)”, chamado em Grego  STOA,  pois Zenão lecionava num salão de Atenas decorado com pinturas da Batalha de Maratona, o STOA POIKILE, “pórtico pintado”. Esse local era usado pois, como não era cidadão ateniense, não poderia estar dentro do prédio.

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