Psicologia

AMIZADE

“O que faz um amigo confiar noutro é a consciência de sua integridade: suas garantias são a boa natureza, a fé e a constância”

“Não pode haver amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça; e, quando os perversos se reúnem, formam um complô, não um grupo de companheiros. Não têm afeto um pelo outro, mas medo; não são amigos, mas cúmplices”

La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

“Por mais raro que seja,

Ou mais antigo,

Só um vinho é deveras excelente:

Aquele que tu bebes calmamente

Com o teu mais velho

E silencioso amigo…”

Mário Quintana, do sabor das coisas

A condição da amizade é a semelhança, exclusiva entre seres humanos. Como diz Marilena Chaui em seu livro sobre “Discurso da servidão voluntária” de Étienne de La Boétie; “Virtude essencialmente humana, a amizade não pode existir em Deus, no rei e no tirano”.

Quando se refere ao tirano, a amizade não é possível já que ele busca seu próprio bem e não os dos outros, faltando ao respeito, marca natural entre amigos. Com Deus, sua impossibilidade é pela distância ou desproporção do homem para seu criador. Assim, a isonomia, condição fundamental para a amizade não está presente, afinal, Deus não precisa do homem, mas o homem, sempre carente e impotente diante do mundo que o cerca, precisa de Deus, cada vez mais. Quanto ao Rei, historicamente a amizade é impossível, por sua condição o elevar acima dos súditos, e mesmo que ele faça o bem, em nenhum momento haverá similaridade entre ele o súdito, estando, mais uma vez, ausente a isonomia entre os pares. Sofre o Rei, por não ter amigos (todos estão abaixo), e não poder ser Deus.

O caro leitor(a) poderá perguntar: “O que isso muda minha vida”?

A resposta é; reflita se você se submete a alguma tirania, coloca alguém em algum pedestal ou parece ou quer ser uma espécie de deus?

Se a resposta for não, o texto poderá ser útil para refletir sobre o que é ou pode ser uma amizade. Se for sim, avalie esse conceito e sua eventual submissão ou prepotência, que o leva a solidão da ausência de um verdadeiro amigo.

Qual a importância da amizade?

Se Deus tudo criou, existindo, portanto, antes de tudo, só ele se conhece verdadeiramente, ou usando uma expressão de Espinoza; é causa de si. Já os homens, precisam da mediação do outro, da comparação, afinidade ou antagonismo para tomar ciência de quem são. Como diz Aristóteles, “o amigo é um outro nós mesmos”. Assim, para homem mortal, são os amigos que suprem nossas carências de entendimentos, emoções e sonhos. Nessa relação de troca entre iguais é que uma espécie de autossuficiência divina pode ser metaforicamente alcançada. Dessa forma, não é possível o autoconhecimento sem o outro. É pelo outro que nos descobrimos!

A igualdade entre os amigos elimina a competição e não há hierarquia, motivo natural de afastamento por colocar o interesse e o poder como obstáculo a amizade verdadeira. Estar à vontade, não ter medo de dizer o que pensa ou sente, o amigo é uma espécie de “eu” que nos ouve, ou um espelho empático que pode, sem receio, deixar mostrarmos traços que não queremos ver em nós sem constrangimento. Diante de um amigo, nada temos a perder e ganhamos sempre a possibilidade de sermos verdadeiros, momento cada vez mais raro em um mundo competitivo, onde o medo é o combustível disponível pela sociedade para buscarmos o que necessitamos. Ninguém tem medo diante de si, ou do amigo. Em outras palavras, se sentirmos medo ou receio da expressar nossos pensamentos, não estamos diante de um amigo, mas de alguém que ainda não mostra a nós mesmos em seu espelho. A amizade relaxa, fora dela, a tensão. É fácil perceber!

Falar de si é sempre transferir ao ouvinte o que temos de mais valioso, o que está por trás dos nossos personagens cotidianos, que sempre estão se movendo necessariamente atrás de seus objetivos. Não existe medida para valorar o momento que nos desnuda, que nos torna humanos, frágeis e sonhadores. A Amizade é uma obra de arte delicada, produzida a duas ou mais mentes, próximas, mas nunca iguais. Essa diferença é que nos permite nos conhecermos, não só ao nos ouvirmos, mas vendo no reflexo diante de nós como nos sentimos pelo que pensamos e ansiamos.

A amizade supera as relações afetivas, já que essas, temperadas pelo desejo, apego e interesses diversos, ferem um dos primeiros estatutos da amizade; nada a temer, nada a perder! Os enamorados prometem relações sinceras e transparentes, impossível quando são dois desejos.

Amigo, artigo cada vez mais raro, em um mundo onde queremos mais (nem sabemos direito o quê), ação natural de afastamento. Temos tanta pressa           que não percebemos o que vai ficando pelo caminho. Lembranças juvenis do tempo em que éramos iguais aos amigos, uniformizados na escola, compartilhando o sofrimento pela disciplina imposta pelos pais com sonhos comuns. Não havia medo, não havia futuro, não havia doença. Contávamos sonhos com músicas que cantávamos juntos com bebida barata em dias em glamour não era preciso. Saudade dos tempos da amizade, ou como muito mais profundamente diz a Professora Marilena:

“A primeira vista, a amizade parece confinar-se ao momento em que a natureza, operando sozinha, cria e conserva os companheiros numa espécie de natural sociabilidade e, ao finda sua obra, com o advento as sociedade política, só restam alguns que guardam na lembrança o instante anterior, como se, no presente, a amizade fosse apenas memória do que precedeu a desnaturação”.

A palavra Philia, de origem grega que designa “amizade”, tem origem em isótes philótes, que significa o tratado de paz entre homens e grupos que sanciona a prestação de contas recíprocas, estar quites, ninguém tirou nada de ninguém ou ninguém deve nada. Difícil!

Em sua filosofia Espinoza atribui especial valor a amizade, quando afirma que só é possível entre homens livres, e que a amizade é condição da “alegria”, afeto que aumenta nossa potência de agir ou seja, nos traz mais vontade de viver;

E é impossível que o homem não seja parte da natureza e que não siga a ordem comum desta. Se, entretanto, vive entre indivíduos tais que combinam com sua natureza, a sua potência de agir será, por isso mesmo, estimulada e reforçada. Se, contrariamente, vive entre indivíduos tais que em nada combinam com sua natureza, dificilmente poderá ajustar-se a eles sem uma grande mudança de si mesmo”.

Isso não quer significar que pessoas diferentes não sejam estimulantes, nos ajudando a perceber quem somos hoje, nos instigando a pensar de forma diferente e descobrir que precisamos de novas ideias sobre nós mesmos. Amigos novos, são sempre possíveis. São as amizades que nos atualizam sobre quem somos. As antigas, mantém aquilo de nós que permanece ou ainda não está totalmente entendido e, portanto, pronto para mudar. Amigos alegram, nos ajudam a esquecer e a lembrar quem somos, já fomos ou queremos ser.

Amizades passam quando a vida afasta por suas estradas imprevisíveis ou quando “perdemos contato”, deixamos de ser semelhantes e a isonomia acaba. Isso faz parte em um mundo impermanente e tão imprevisível. Ficam na memória boa do vivido, não há que lamentar.

Amizades são raras, difíceis de encontrar em uma vida que nos dá menos tempo para cuidar de si. Precisamos de cada vez mais coisas, correr mais!

La Boétie em seu clássico texto, não entende como nos deixamos tiranizar, como transferimos tanto poder para alguém nos diminuindo, obedecendo cegamente a quem quer só seu bem à custa do nosso. Hoje o tirano está disfarçado, não tem mais um corpo como no tempo em que o texto foi escrito (1548). Hoje é uma ideia, um sistema cultural. Seu conselho é prático e simples; esse tirano só existe por obedecermos.

A servidão só terminará quando a obediência acabar. O tirano do nosso tempo vive de nos manter ocupados, angustiados, com pouco tempo para perceber que podemos estar contentes.

Aos poucos, obedeça menos. Não será necessária uma grande revolução, basta dar mais valor ao que importa para você. Aos poucos, como promete La Boétie, ele cai, afinal somos seu corpo e mente. Se mudamos, ele morre!

Uma verdadeira amizade é uma desobediência, uma revolução!

Quem se conhece, não se permite dominar, para isso cultive suas amizades!

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Para saber mais:

Contra a servidão voluntária – Marilena Chaui

Ética a Nicômaco – Aristóteles

Ética – Espinosa

Vô Baruch

Vô Baruch sempre foi muito reservado. Falava pouco, da mesma forma que seus amigos eram raros. Gostava de escrever cartas e dizia que era do tempo em que era um desrespeito para o destinatário escrever de outro jeito que não fosse a mão.

Já estava velho, com problemas no pulmão por ter trabalhado muito tempo polindo lentes para óculos, já que as máquinas que fazem esse serviço chegaram tarde demais para ele. Estava viúvo a algum tempo e vivia de suas leituras de clássicos da filosofia. Dizia que gostaria de ter conhecido Descartes, que o admirava, mas também discordava em algumas coisas importantes. Escreveria cartas longas para ele se pudesse, mas nem sempre a vida nos coloca todos juntos. Falava pouco de seu passado, e isso sempre intrigou seu neto mais velho. Quando perguntava do passado do avô, sempre desconversavam, até que, quando fez 18 anos, sua mãe contou o que tinha ocorrido.

Fascinado pela história, o neto o procurou em uma tarde de domingo, onde o tempo sempre se arrasta. Além disso, a idade do avô não era garantia de que outras oportunidades surgiriam.

– Vô, andei conversando com a mãe. Sempre que perguntava de você, como tinha sido sua vida me enrolavam. Quando fiz dezoito anos, semana passada, pressionei e ela me contou uma história que achei muito louca. Ela me disse que o senhor foi expulso, excluído ou coisa parecida da sua religião. É verdade?

– A palavra certa é excomungado meu neto. Excomungado!

– Que significa vô?

– Que ninguém da minha família ou da congregação poderia conversar comigo, falar meu nome, ou ler meus livros. Todos deveriam agir como se eu não existisse.

– Você escreveu livros?

– Sim, mas não com meu nome. Depois que morrer, aí saberão que fui eu.

– Por quê?

– Para que nossa família não fosse prejudicada ou perseguida. Alguns amigos sofreram por gostarem das minas ideias.

– O que o senhor fez vô?

– Pensei diferente, só isso.

– Como assim, diferente?

– Vejo a vida, como somos, as religiões e Deus de uma maneira que incomoda as pessoas.

O jovem estava curioso! Nunca poderia ter imaginado que aquele sempre silencioso velhinho tivesse uma vida tão agitada. Finalmente entendia o motivo de nada contarem quando perguntava. Agora, a curiosidade era saber que ideias eram essas.

– Vô, me conta, me conta tudo!

O brilho nos olhos do neto encantou o velho Baruch. Alguém finalmente disponível para pensar diferente, ser afetado por ideias que poderiam aumentar sua capacidade de entender e, como consequência, de viver. Abertura para passar de um estado de ignorância para conhecimento, enfim, a liberdade!

– O que quer saber?

– Vamos começar pela Bíblia, o que o senhor disse que deu problema?

– Só falei que era um livro de normas de conduta da época, que nada havia de “revelação” ali. Como tudo, deveria ser lido dentro do contexto histórico em que foi escrito. De preferência, lido no idioma original. Traduções podem ser perigosas, ainda mais depois de tantas edições. Deveríamos lê-la como faria um historiador, não como algo que ultrapassasse seu tempo, que valesse para sempre.

– Vô, vai me dizer que o senhor sabe grego?

– Sei, também estudei Latim, e escrevi nesse idioma. Além da Bíblia, também disse que Moisés não escreveu o Pentateuco.

– Que massa vô! Não sabia que o senhor sabia essas línguas antigas! O que é o Pentateuco?

– Um conjunto de cinco livros atribuídos a Moisés que fazem parte do Antigo Testamento. Tem palavras lá que não existiam na época em que ele viveu, assim não poderia ter sido escrito por ele. Infelizmente, religiões deixam as pessoas cegas, isso as impedem de usar a razão. Paixões são assim. Enfim, são livros escritos por pessoas, alterados pelo tempo que não deveriam ser vistos como sagrados.

– Paixão não tem a ver com sentimento vô?

– Não, paixão é tudo aquilo que te domina e te impede de ser racional.

– Imagino a confusão! O senhor foi corajoso!

– A palavra certo seria livre, não seria eu se não exprimisse meu pensamento. Sempre tive amigos por perto, poucos é verdade. Eles gostavam de minhas ideias, diziam que ficava mais fácil perceber a vida através delas.

– Então o senhor foi excomungado por ter dito isso da Bíblia?

– Também, mas o que foi que causou impacto é como eu vejo Deus. Não falei sobre isso de forma leviana ou só com objetivo de causar polêmica. Li e observei muito antes de chegar às minhas conclusões, mas não fui entendido, disseram que era ateu.

– Mas ateu é quem diz que Deus não existe. Se o senhor vê Deus de outro jeito então não pode ser ateu?

– Em tese sim, mas para essas pessoas eu estava dizendo que o Deus deles não existia. Não importa se sua visão for de um Deus com outra forma. Ninguém gosta de perceber que aquilo em que acredita, sobre onde assenta sua fé e que ajuda a ter controle sobre si e o ajuda a entender sua realidade possa ser uma mentira. No âmbito da fé, ninguém sabe nada, por isso que precisa acreditar. Lembre meu querido neto; quando uma ideia nos possui, não pensamos sobre ela, precisamos que aquilo seja verdade, afinal somos essa ideia. Ninguém gosta de perder-se, perder uma crença é ficar nu, de certa forma.

O jovem estava em transe, uma mistura de encantamento e descoberta. Seus olhos estavam vidrados. Só pensava o tempo que perdeu jogando no celular que poderia usar para ter conversado com seu avô.

– Então vô, o que é Deus para você?

O velho suspirou, estava feliz em poder conversar sobre isso com seu neto. Sua esposa havia ficado a seu lado, mas nunca havia aceitado ele ter criado tantos problemas com suas ideias. Ela apenas chorava e silenciava. Sua filha, influenciada pela mãe ficou alheia, nunca quis saber o que o pai pensava  e ele não lutou contra. Já tinha sofrido o suficiente e entendia a esposa querer poupar a filha das suas “maluquices”. Filosofar é sempre uma solidão voluntária, ou como dizia Lucrécio, é aprender a morrer.

– Primeiro, não quero convencer você de nada meu neto. Mesmo que estejamos conversando, não é necessário que concordes comigo. São apenas minhas ideias, nada mais.

– Tranquilo vô. Gostei do que você disse sobre a Bíblia e esse outro livro, faz todo o sentido. Como o que alguém escreveu a muitos séculos possa ser usado sem filtro? Vivemos em outro mundo, é óbvio! Mas me conta, e Deus?

Baruch se ajeitou na cadeira e fez um longo suspiro, daqueles que nos avisam que estamos diante de algo demorado, além de ser um assunto que lhe custou tão caro!

– Para começar, meu querido neto, é importante que você se proponha a esquecer tudo que pensa sobre Deus. Em nossa cultura é cristã, Deus é visto como “alguém”, que lhe diz qual sua conduta correta, que pode agraciá-lo ou puni-lo, que apareceu para alguns transmitindo suas leis, alguém com quem você pode se comunicar, como se fosse uma pessoa, que está em algum outro lugar etc.

– Mas vô, Deus não é isso? Minha outra vó, disse que estamos em Deus.

– Não, Deus não pode “estar”, ele “É” tudo. Se ele pode estar, pode também não estar e não vejo como isso possa ser possível.

 O velho sorriu vendo o rosto de surpresa do neto.

– Fala logo vô, agora fiquei muito curioso.

– O que chamo de “Deus” é uma substância única, que existe em si, que não tem causa externa, logo, sendo causa de si mesma. É infinita em atributos em potência de existir. Tudo que existe, eu, você, as árvores, o ar, tudo aquilo que chamo de “natureza” são modos ou expressões dessa infinita potência que é Deus. Não está em algum lugar, não é alguém com quem possamos conversar, que se alegra ou se entristece de nossas ações. Digo que é imanente, que está em tudo, É tudo! Tudo que existe é uma expressão dessa substância primeira.

– Vô, que complexo! Se entendi, é como se essa “substância” fosse, por exemplo, uma massa de modelar e tudo que existe é feito dessa massa? Cada coisa é uma coisa, mas a massa é a mesma?

– Seu exemplo é ótimo! Cada modo de usar essa massa é um dos componentes do que chamo “Natureza”, que tem seu jeito, seu tipo de vida etc. Vale para tudo que existe!

– Se somos uma expressão de Deus, que é uma substância infinita, porque somos finitos, por que morremos?

– “Morremos” por sermos uma expressão de Deus que pode ser limitada por outra coisa. Somos limitados a nosso corpo, pelo espaço, por influências externas e não somos causa de nós mesmos. Somos “causados” externamente. Por exemplo, fui causado pelo meus pais, posso ficar triste, doente ou alegre por causas externas a mim. Nós pensamos, justamente por sermos finitos e não sabermos de tudo, já que a soma de todos os modos ou atributos de Deus é muito maior que nós, individualmente. Quanto a morrer, não penso morremos na acepção da palavra. O que acontece, como essa substância é perfeita e infinita, ela não poderia perder partes de si. O que chamamos de morte, nada mais é que uma nova maneira que essa parte da substância que somos nós se rearranja na natureza. Se somos enterrados, nos decompomos, se cremados, nos tornamos cinza e fumaça. Assim, nada nunca se perde da substância infinita, só muda de estado, de forma e possibilidades. Nossa mente, sim ela morre, por ser uma ideia, uma forma da substância que somos se expressar. A outra é pelo que chamo de extensão ou corpo. Criamos ideias pela mente e as transformamos em ações pelo corpo. Quando nos decompomos em outras formas de expressão de Deus (o que chamamos de morte), essa nova maneira não tem mente e corpo. Se você observar, morremos sempre por causas externas, não fossem elas, mais fortes que nós em determinado momento, nunca morreríamos.

O jovem estava atônito. Essa maneira de ver Deus era tão diferente de tudo que tinha aprendido que precisava desmontar tudo para poder compreender melhor o que seu avô estava dizendo. Por outro lado, essa é uma visão fascinante, nova e libertadora! Depois de alguns segundos disse sorrindo:

– Agora entendi por que foi excluído.

–  Fui excomungado, excomungado.

–  Sim vô, excomungado. Sua maneira de ver invalida o Deus da maioria das pessoas desse mundo. Se for assim, se entendi direito, não existe milagre então?

– Claro que não!  Pense, como uma substância perfeita precisaria interferir em si mesma? A perfeição seria imperfeita se o milagre fosse necessário!  Na verdade, o que chamamos de milagre são apenas coisas que não entendemos como são causadas. Milagre é sinônimo de ignorância das causas.

– Então tudo só pode ser do jeito que é?

– Sim, se somos expressões dessa substância infinita chamada Deus, limitados e causados externamente, tudo que acontece só pode ser do jeito que é, nunca de outro. Para ser de outro, as causas deveriam ser outras, entende?

– Então a culpa não existe vô?

– Culpa seria poder fazer de um jeito diferente, para isso precisaríamos ser diferentes do que somos a cada momento. Tudo que fazemos é só o que podemos fazer naquele instante. Os efeitos sobre nós das nossas ações e da própria vida, vão nos mudando. Essa pessoa que vamos ser depois, só poderá agir sendo quem é, levando em conta os efeitos do que fez, trazendo causas novas as suas ações. Por isso que dizemos que não faríamos tal coisa novamente, isso só acontece por termos sido afetados ou mudados pela ação anterior, seja ela nossa ou de algo que a vida nos afetou e transformou em nossa mente (pensamento) e corpo a agir de um jeito novo.

O jovem estava com lágrimas nos olhos. Olhou pela janela e viu que já anoitecia. Tinha perdido a noção do tempo. Estava sentindo um transbordamento, uma espécie de prazer por ser agora alguém que via tudo por um ângulo maior.

– E rezar?

– Como vejo Deus, ele não é alguém que te possa escutar, ele não precisa de templos e promessas e não dá ou tira nada de ninguém. Ele é a própria vida que se expressa a cada momento dentro da natureza de cada ser, do vento, da terra, montanhas, trovões, dos animais e assim por diante. O mais difícil, penso, é mudarmos a ideia de um Deus que não esteja em algum lugar, sendo parecido conosco, só que eterno. A “eternidade” de Deus só existe por morrermos. Tudo que existe é Deus em suas várias e infinitas formas de se expressar, desde antes do ser humano existir nesse planeta.

O neto ficou olhando para o chão. As palavras do avô o estavam transformando rapidamente em alguém muito diferente do que era quando essa conversa começou.

-Tem mais vô?

– Também falei sobre os afetos, sobre liberdade, desejo e política.

– Onde estão seus livros vô?

– Com meus amigos. O dia em que minha substância se rearranjar, meus amigos vão publicar e só assim saberão meu nome. Daí ninguém poderá fazer mais nada contra mim.

– Queria ler, saber mais. Tudo isso é tão claro, tão mais possível! Tudo que pensava antes da nossa conversa é como se fosse uma história infantil.

– Você lerá, assim como muitos!

– Posso voltar depois, outro dia? Quero saber sobre o resto.

– Claro! É sempre bom conversar!

O jovem abraçou seu avô e não conseguiu conter a emoção. Era um misto de culpa por ter perdido tanto tempo e alegria por estar diante de um pensamento tão diferente. Seu avô, falou no seu ouvido, como se estivesse lendo seus pensamentos:

– Lembre, tudo só pode ser do jeito que é. Nunca se culpe! Culpa, medo e ignorância servem apenas como forma de poder, de controle! Um dia, falaremos sobre desejo, mas posso adiantar que nosso principal desejo é governar a própria vida e não que ela seja governada por outro. Para que alguém governe sobre nós, precisamos estar com medo, tristes, ignorantes e impotentes e não termos nenhuma liberdade, consequentemente.

– O que é ser livre?

– Conhecer pela causa e agir de acordo com a razão, ser governado por si mesmo. Depois, explico melhor, já é tarde.

Ao chegar na porta do quarto, virou-se e perguntou:

– Vô, como vai se chamar o livro?

– Estou pensando em “Ética”, o que acha?

A Política da Impotência

“O Poder necessita de corpos tristes. O Poder necessita de tristeza porque consegue dominá-la. A Alegria, portanto, é a resistência porque ela não se rende”.

                                                                                        Gilles Deleuze

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Uma vida triste, impotente com pouca alegria não é uma circunstância, sorte ou azar, mas uma política, uma forma de controle. Não existe efeito sem causa, e a tristeza como modo de vida foi uma das mais inteligentes formas de dominação já criadas e mantidas, justamente por se retroalimentar.

Tornar o sofrimento uma purificação ou vantagem futura, desmerecer a vida real em troca de outras mais perfeitas e utópicas, programar a justiça para outra instância não terrena, tornar a exploração um investimento em paraísos etc. A política da tristeza é o maior estelionato já criado em nome da política de rebanho, além de movimentar a roda sempre sedenta do capital.

Tudo começa pelo aprisionamento do desejo, como já tratado em textos anteriores. Torná-lo uma carência constante que nunca pode ser suprida pelo desvio de sua natureza que é a nossa necessidade de evolução que tem a alegria e liberdade como condição, em troca de promessas e símbolos de sucesso com duração cada vez mais efêmera. Depois, investir no medo da não obtenção desses símbolos, da perda de respeito e deterioração da identidade pelo olhar social, criando uma angústia e necessidade de controle dessa mesma angústia, obviamente ficcional, desfocando o olhar de quem deveria querer ser mais forte e conhecedor com novas possibilidades para quem está constantemente com medo e triste.

Existir é desviar-se do que está pronto, como lembra Deleuze.

Nosso desejo nos pede que se torne ação na vida, esse é o “propósito”, viver quem somos em ações concretas e diárias. Quando isso não acontece, o propósito se torna uma vida focada fora de si, no outro. Como levar potência para alguém se estou sem essa potência? Nosso desejo busca essa liberdade de viver quem somos e a política da impotência diz que a realização é fazer a vida do outro melhor, como uma compensação a minha falta de alegria na minha própria vida.

Desejo é criar realidade e isso não se parcela sem jutos no cartão.

Essa tristeza busca ser “solucionada” por mais objetos e compulsões que alimentam a máquina, fazendo-a girar cada vez mais rápido e com alta lucratividade. Bancos e laboratórios farmacêuticos lucram cada vez mais; os primeiros financiando os valores para adquirir os “remédios” que o mercado oferece, e o segundo, com medicamentos de manutenção constante dessa tristeza em níveis suportáveis. Tudo isso justificado pela superstição de uma vida futura mais abundante de paz, sendo resiliente, é só saber aguentar, esperar e conviver com a impotência, garantia de uma pulseira para a área Vip do paraíso.

Para quem não se conforma ou não aguenta, um delegado, padre ou médico, para lembrar que essa política é para iguais, não para indivíduos, como diz Foucault. Esse sistema de domínio não tolera pessoas livres e isso já é assim a séculos. Historicamente, esses “desordeiros” normalmente são eliminados, viram história para serem admirados muito tempo depois de suas mortes. Sobre isso, fiz um vídeo em meu canal no You Tube chamado “O que é ser normal”, que convido a assistir.

No modo ativo de viver, a diferença (individualidade) é sua base, no passivo, é anulada em troca do comum.

É importante estar sempre feliz, confiante, jovem a qualquer custo, competitivo e é claro, empoderado. Buscar empoderamento, por exemplo, nada mais é do que uma constatação de fraqueza no presente e da incapacidade de entendê-la como um modo de vida. Uma sociedade impotente, obviamente, sonha com empoderamento!

Com nosso desejo capturado, passamos a viver à custa de idealizações, salvação e da necessidade do empoderamento. Buscamos o reconhecimento através de redes sociais para sair do óbvio ostracismo por sermos iguais, sem identidade, portanto. Daí, para necessitar de salvação é um passo curto. Caberá a qualquer messias ser potente por nós. Passar a viver na imaginação e na esperança é a receita de continuação da tristeza e da falta de força de criar situações por ato livre. Imaginação e esperança é a combinação de quem já não tem saída, quem tem sua força natural suprimida.

Quando Nietzsche define o “sacerdote” mostra que ele inverte os valores, criando uma ficção como ideal, ele oferecerá um meio para o ressentido “sobreviver”, tornando-se parte de um rebanho que ele cuidará, que estará “salvo”. Mergulhados na tristeza e impotência, o Estado precisa nos proteger na pessoa do tirano de plantão.

Não somos o que se passa conosco, é isso que essa política quer fazer acreditar.

Liberdade é devir, é um vir a ser dos encontros que escolhemos ter com o mundo, onde nosso desejo de alegria se concretize. O previsível, sonho de quem teme, precisa dessa falta se vir a ser, dessa ausência de perspectiva e de um futuro que repete o passado e presente. Não existe uma vida sem tristeza, mas a contabilidade precisa ser positiva. Quando o suicídio se torna uma escalada geométrica é a constatação de um saldo devedor na vida, alguém duvida?

Quantas vezes nos pegamos delirando em um ideal? Medicado ou não, todo delírio mostra um potencial criativo submerso, sendo, portanto, uma realidade virtual. Toda virtualidade é resultado de um concreto frustrante, assim como idealismo é uma desqualificação do que acontece.

Como diz Deleuze, ao desejo nada falta. Essa cultura platônica da carência que dá base a essa política de impotência e subordinação. Quando o mundo fica maior pela informação, quando a tristeza é compartilhada em rede e o medo aumenta, só desejamos parar de sofrer.

Isso nunca acontecerá, até que o que se ensine nas escolas, por exemplo, não seja a manutenção dessa cultura, mas o reforço da diferença e dos potenciais criativos de cada um.  A luta conta a massificação do igual, da uniformidade, defendendo que a diferença é a gênese que cada um precisa experienciar em si e no outro é uma das muitas revoluções necessárias para um futuro com mais alegrias e menos necessidade de compensações e salvação.

Não diga mais “é assim mesmo”, “fazer o quê” ou “vamos confiar”. A vida não precisa ser assim! Faça a pergunta “nietzschiana”: a quem interessa?

Comece a conspirar, aqui e ali na micropolítica da sua própria existência. Faça pequenas revoluções e vá ganhando confiança em escolhas mais livres.

A soma das mudanças é que derrubará a política da impotência!

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Inspiração:

 Anti Édipo , Capitalismo e esquizofrenia – Deleuze e Guattari

Além do bem o do Mal – Nietzsche

Vigiar e Punir – Michel Foucault

Força ou Inteligência?

       “A natureza nunca nos engana; somos sempre nós que nos enganamos.”

                                                                                 Jean-Jacques Russeau

        “Há uma pergunta que me parece dever ser formulada e para a qual não creio que haja resposta: que motivo teria Deus para fazer o universo? Só para que num planeta pequeníssimo de uma galáxia pudesse ter nascido um animal determinado que iria ter um processo evolutivo que chegou a isto?”

                                                                                    José Saramago

Desde os primórdios, o homem se prostra diante da natureza pedindo clemência, por sentir-se fraco diante de tamanha potência do mundo, que, ainda hoje não consegue entender. Ventos, raios, trovões, infestações e tempestades eram vistos como punições divinas e, de joelhos, pedíamos, e ainda pedimos, perdão por sermos somente humanos, frágeis e impotentes.

Nossa incapacidade de entender a natureza nos encaminhou para um raciocínio simples para conter essa sensação de vulnerabilidade; “alguém” comanda tudo isso. Da época dos vários deuses com especialidades (assim como na medicina e no direito, por exemplo), a divindades únicas isso ainda vigora. Incrivelmente, o homem não percebe que a natureza não é inteligente, mas sim uma força que empurra a vida para frente em busca de mais vida, cada vez, mais vida!

A natureza vista com olhos desapaixonados é insana! Milhares ou milhões de espécies já desapareceram por vários motivos e novas vão surgindo. A humana, por exemplo, tem registro de atividade inteligente que datam de 300.000 anos, quando as primeiras pedras foram afiadas com objetivos de facilitar as atividades. Ou seja, começamos a usar nossas capacidades ontem!

Mesmo com toda tecnologia desenvolvida a vida nos parece um mistério, já que sua força não tem um sentido que possamos controlar ou antever o que sempre nos angustia cada vez mais.

Para que esse entendimento surja, mesmo que desesperadamente, precisamos criar figuras míticas com uma inteligência superior, não afetadas por essa natureza e para que isso seja possível, atribuímos a ele(s) sua criação. Das vontades misteriosas e incompreensíveis chamadas de “linhas tortas” em nosso tempo, continuamos a buscar o consolo de que por trás de tudo exista Alguém que tudo controle e comande por ter sido seu criador, estando, portanto, fora desse mundo onde tudo se move, parado, eterno e infalível.

Quando, antigamente, pela criação de técnicas de cultivo, conseguimos passar a ter tempo para pensar, observávamos as estrelas se moverem durante períodos de tempo cíclicos, percebemos a mudança que sua posição no céu poderia ser prevista, daí, chegamos à conclusão que tudo estava traçado não só para estrelas, mas também para nós com o nome de “destino”, acontecimentos previamente estipulado pela inteligência que tudo comanda, nos trazendo situações que estavam ali para nosso desenvolvimento, purificação ou aperfeiçoamento. A partir daí, começamos a tirar de nós muita das nossas responsabilidades sobre o que nos acontece, o que não deixa de ser uma espécie de entendimento ou aceitação confortável.

Não é fácil estarmos submetidos a uma vida sem sentido, imersos em um processo natural caótico e potente, portanto, imprevisível para nossos limitados sentidos. A inteligência de tudo não está por trás, está em nós e ela existe para aprendermos a conviver e lidar com a força que é a vida, essa força de impulso, criando sentido individual. Como essa força é mais forte e ininteligível, sobram deuses e fé para nos apegarmos a esperança, sempre carente, impotente e ignorante, como nos ensina a filosofia, de que tudo tem um porquê.

Vivemos tempos em que o Absurdo, como definiu Camus, é muito mais provocado pela nossa ignorância do que pela força natural, deixando claro que continuamos crianças, esperando que um pai venha nos tirar das enrascadas e que as forças naturais sejam clementes, “punindo” quem merece e preservando os de bom coração.

Na Vida, dos seres gigantes aos microscópicos, todos buscam mais vida, novas formas se criam e outras desaparecem nesse entrechoque constante desse caos cheio de possibilidades de sentido que nos é oferecido pela Natureza, sempre potente e furiosa em busca de preservação de todos que aqui vivem, excluindo outros, e a ciência buscando as respostas para que elas nos tragam alguma segurança e controle. Nós, humanos, somos desse mundo, temos inteligência que pode parecer que nos separa dele, mas, como podemos observar, ela também pode tornar-se destruição e medo.

Provavelmente, um dia também desapareceremos, e a vida continuará a se propagar pelo universo infinito que os cientistas dizem estar ainda se expandindo, fruto da grande explosão inicial, belo simbolismo dessa fúria que é o que chamamos de vida. Imaginar tudo isso nos traz a certeza do quanto não sabemos e estamos sempre por um fio, como uma formiga que pode ser esmagada simplesmente por estar sob um peso do que é mais forte que ela.

Quando precisamos acrescentar figuras divinas para a vida, quando precisamos que ela tenha algum sentido, mostra que continuamos a não entender o que se passa. Clamar por um deus, seja qual for, é um atestado de que a vida ainda nos dá mais medo que alegria e desfrute. Infelizmente, precisamos esquecer nossa condição, seja mergulhando nas rotinas ou nos desejos carentes para nos distrairmos do medo da morte e do sofrimento. Ainda vemos a vida como o copo meio vazio.

Nossa inteligência poderia estar a serviço da vida e a vida é força, potência e furor. Se Darwin defendia que sobreviver e perseverar está em nossa capacidade de adaptação, entendendo e sabendo reagir ao meio, Bergson via essa capacidade como criativa, sinal de inteligência superior. Seja como for, somos daqui e ainda não entendemos que a casa onde moramos não nos oferece segurança. Não estamos aqui para nos sentirmos seguros, mas para vivermos, olhando para a vida como um girassol, como ensina Fernando Pessoa*, e isso é sempre muito arriscado!

Olhar para o céu e se ajoelhar, clamar por auxílio e pedir proteção não difere do ursinho de pelúcia que as crianças precisam ter ao seu lado para poder enfrentar o escuro do quarto.

Elas fazem isso por temer o desconhecido e os adultos também, cada um a seu modo.

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Fernando Pessoa – O meu olhar (poema)

O Eu e o Devir

“É absolutamente necessário pular no real, atirar-se nele, mexer-se lá dentro, pois é a única maneira de mudar o mundo. A vida é apenas isso: mudar o mundo, transformá-lo, inventá-lo, revolucioná-lo”.

                          Antonio Negri – De volta, pg. 220

“Reconhecemos o escravo por suas paixões tristes e o homem livre por suas alegrias”.

                          Gilles Deleuze

Autoconhecimento nunca sai de moda desde Sócrates, e talvez valha à pena pensar um pouco de porque isso acontece. Não tenho essa resposta, aliás, perguntas como “quem sou eu”, subsistem há séculos, talvez por nunca existir uma resposta definitiva. Isso acontece não só por sermos diferentes, como prova a biologia, mas por nunca termos um Eu estável que possa ser definido assertivamente, já que isso anularia o princípio da impermanência.

Existimos por nós? Talvez não, já que desde que nos damos conta, precisamos uma diferenciação, uma identidade e ela seguirá os caminhos da comparação, afinidade, oposição e, sempre, da necessidade!

Começamos por ser uma cópia adaptativa de quem nos cria e da cultura em que estamos inseridos. Sobreviver é vital para qualquer mamífero, seja de nossa classe ou de outras com menos recursos. Aprendemos a levantar do chão por vermos os maiores em pé, assim como adquirimos a interpretação do mundo que eles nos transmitem, intencionalmente ou não. Daí elegemos a quem imitar e isso sempre vai longe, quase como um financiamento da casa própria, que carregamos por tanto tempo quanto os resultados nos obrigarem a mudar de “casa”.

Da mesma forma, muitas vezes antes de sermos alguém por si, somos uma oposição a outra pessoa. Construímos uma identidade em não ser quem outra pessoa é e isso é fácil de encontrar entre irmãos e na política. Quem se constrói assim, não é alguém por si, mas sua referência é ser quem um outro não é. Qual o problema? O problema é quando essa identidade negativa não consegue se sustentar por si. Mudar como, já que a base identitária é só uma oposição e nunca uma individualidade?

Vale também para cópias, com objetivo de conseguirmos os resultados que outro consegue. Fazer o que ele faz, usar a roupa, falar como, ter os mesmos adereços etc. Da mesma forma, uma ausência de resultados (inevitável), levará a um beco sem saída, também por não partir de algo próprio. Desse modelo vive o marketing com suas figuras de sucesso, que tem uma identidade reconhecida por todos, coisa que todos querem, já que também somos alguém quando somos reconhecidos pelo olhar do outro. A própria cultura cria seus modelos utópicos de como é o jeito “certo” de viver. Como isso é inatingível, mais insatisfação que nem nos permite perceber que tudo pode estar sendo da melhor forma possível. Precisa piorar para percebermos. Quem nos reconhece também é moldado por todo isso, e é desse olhar, onde sempre estamos “errados” de algum jeito é que constatamos que existimos.

A busca de um “ser”, portanto, precisa de uma referência, para termos os benefícios que precisamos, sempre nos comparando de alguma forma, afinal tudo vem de fora. Quando os prejuízos chegam, os primeiros culpados ou quem tem que mudar são os outros, o modelo cultural utópico que usamos ou o mundo. Aliás, mundo, vida, universo ou qualquer outra metáfora, serve para projetarmos as responsabilidades pela nossa expectativa frustrada de como tudo deveria ser. Quando se descobre que isso tudo nunca existiu, somente nos nossos sonhos herdados, nos deparamos com o que resta; precisamos encontrar em nós essa saída ou mudança. Tudo sempre reativamente, sendo empurrado por dificuldades, perdas e desilusões.

O que queremos descobrir com essa busca atrás de saber quem somos? Apenas uma maneira de voltar a sentir-se bem e, nesse caso, não importa a resposta a essa questão primeira, mas somente se os resultados voltaram a ser obtidos. Quando nos deparamos com a impermanência de tudo, principalmente a nossa, descobrimos que somos sempre algo que “está sendo”, na medida em que já não somos mais o que já passou e estamos sempre querendo ser alguma outra coisa.

E o agora? O poder do agora é a constatação desse vazio de insatisfação, de “não ser”, desse caminho até um horizonte que nunca existe para ser atingido e a caminhada já feita, condiciona, pela experiência, passos inéditos a seguir. Nem sempre o passado explica o futuro, já que não somos mais quem caminhou.

Somos esse transitório de uma identidade volúvel, em comparação com outros, em expectativa, angústia e desse desejo platônico da falta. Também somos, portanto, o que nos falta, o que esperamos encontrar em algum lugar, dentro ou fora de nós que possa trazer essa percepção que temos alguma previsibilidade, nem que seja um mínimo controle.

 Com tudo nos escapando pelas mãos de uma reflexão lúcida nos voltamos para nós em busca de algo que nos seja estável, algum “Eu” original, imaculado, não tocado pela experiência que possa na sua natureza pura e imóvel dizer, afinal, quem somos. Quando isso não é encontrado, partimos para a segunda busca; da “criança” que ficou congelada em algum canto da nossa psique. Aquela criança que só brincava, que não tinha medo (por não conhecer a morte), que se sentia livre e segura. Tudo isso porque tinha algum adulto oferecendo essas condições, claro! Mas será que essa ignorância em relação ao mundo é algo possível de reencontrarmos? Aquela criança já se desiludiu porque a vida a brigou a entrar no ritmo das responsabilidades, de atender por si suas necessidades e de temer o que o futuro possa estar guardando. Não penso que ela, caso exista, possa ajudar o adulto sofrido e preocupado.

A mobilidade de tudo nos assusta, daí alguns buscam na criação ou no seu autor algo que seja sempre imutável. É estranho que qualquer criação não seja parte de seu criador e se a realidade é instável, essa imagem e semelhança é negada, como os cegos o fazem com o sol, como diria Victor Hugo.

Quem sou eu?

Um Eu “que não é”, mas que “está” fluindo com o corpo em constante mudança, com pensamentos muitas vezes negando a ideia que se tem de si, suas inclinações, necessidades, dores e medos em uma vida imprevisível, com um sentido (se tiver) muito aquém de nossa capacidade. A vida nos afeta a todo momento não tendo, nem poderia, um futuro que se possa tocar ou ter a certeza de sua existência.

Quando tudo muda o tempo todo, as definições ou descrições são falhas e provisórias, portanto, é mais do que compreensível nossa necessidade de sanar a incerteza da impermanência com alguma palavra que nos descreva, para que a aflição termine.

Quem sabe, se souber quem sou, saberei o que é o mundo ou a vida, quem sabe o universo e seus deuses? Sócrates fez essa promessa e, como nunca parou de perguntar, ele também não encontrou.

Não há nada a ser encontrado, mas provavelmente para ser vivido pela experiência, vendo esse devir incerto pela sua própria natureza, motivo de preocupação, como algo misterioso em si mesmo, que nem ele mesmo saberia se descrever.

Afinal, como viver sem saber quem somos mergulhados nas improvisações de uma vida que é pura força, onde cada ser busca, movido pela sua natureza, sua afirmação e continuidade?

Abandonando essa busca de querer respostas que nos afastam do simples e ao mesmo tempo complexo processo da vida. O Eu será sempre esse vácuo, inserido na vida que nos molda como o vento faz com a areia da praia, mudando a paisagem constantemente.

O Eu nunca existiu como resposta possível e o autoconhecimento é esse caminhar em direção ao nada. A esse horizonte inalcançável por mais que se caminhe. Correr não adianta, parar nos é impossível já que a vida nos empurra.

Nada a fazer a não ser observar essa mudança constante que somos e, ao invés de se entregar ao medo, quem sabe aproveitar essa curiosidade pode ser mais divertido.

Nada está certo, garantido, estável ou pode ser previsto.

Emocionante, não é mesmo?

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