Psicologia

A Vida que nos move

“Um pensamento vem quando ele quer e não quando eu quero, de modo que um falseamento da realidade efetiva dizer, o sujeito “Eu” é condição do predicado “penso”. É nesse sentido que não procede a pergunta: Quem pensa, quem interpreta? Não há um autor por trás do pensamento, o pensamento é tudo, não é o homem que pensa, mas a vida!”

                                                 Viviane Mosé – Nietzsche e a grande política da linguagem

“Exigir a imortalidade do indivíduo é querer perpetuar um erro…O que ela contém a maior parte do tempo? Nada mais que uma torrente de pensamentos insignificantes, acanhados, terrestres, cuidados sem fim. Deixá-los, pois, de uma vez por todas, repousar em paz.”

                                                  Arthur Shopenhauer – As dores do mundo

Quem pensa em nós é a vida!

Em artigo anterior (https://eduardocarvalho.net/forca-e-inteligencia/) comentei que a vida é uma “força”, não inteligente ou seletiva que age somente pela sua própria natureza. Essa mesma força que habita tudo que é vivo, que impulsiona para o desenvolvimento de cada ser, animal, vegetal ou mineral recebeu de outro filósofo alemão, Schopenhauer, o nome de “Vontade”. A Vontade não é racional, é um instinto que leva tudo avante, da mesma forma que faz todas as bússolas apontarem para o norte, é a força que move tudo que vive em seus ciclos de nascimento e morte.

Essa força que nos transpassa a cada instante, se mistura com nosso corpo, crenças, medos e angústias se transforma em pensamentos, emoções e sentimentos. Por isso que Nietzsche é conhecido como o “filósofo do corpo”, foi ele quem percebeu que algo pensa em nós, que não é o que conhecemos como “Eu”. Para quem gosta de se observar, não é difícil notar ser tomado, vez por outra, por pensamentos contraditórios ao que pensamos que somos, perceber em si desejos inéditos, vontades disso ou daquilo que nos causam espanto. De onde veio esse pensamento, essa vontade ou desejo? Veio da força que é a vida que, naquele momento, misturando-se com o que estamos sendo, quer, pensa ou deseja.

Schopenhauer defende a ideia de que essa força se preocupa com a vida, com as espécies, nunca com as individualidades. Por isso que nunca conseguimos entender alguma acontecimentos que não fazem justiça a pessoas, como acidentes, doenças que afetam pessoas inocentes, que não mereciam que isso ou aquilo lhes acontecesse. Schopenhauer já tinha pensado sobre isso, e percebeu que o que chamamos de vida busca a manutenção evolução de cada espécie, indivíduos em particular não são relevantes diante de algo mais grandioso.

Nos percebemos, por exemplo, apaixonados por pessoas que a razão mostra que não seriam um bom caminho, da mesma forma que o inseto se joga a morte rumando para a luz, afinal, ele, em si, não importa. Mas a larva que ele deixou plantada em algum lugar vai fazê-lo, enquanto parte da vida, continuar a viver. Da mesma forma que o resultado de uma paixão, interessa a espécie, não aos amantes.

Claro que esse tipo de visão desmonta uma série de ídolos da nossa cultura, onde o “Eu” quer continuar a viver com sua identidade vida após vida, onde cada acontecimento de tragédia ou alegria é interpretado no âmbito da individualidade. Se os filósofos estiverem certos, as evidências os favorecem, quando falamos em “Deus”, não é alguém que se preocupe conosco, com meu futuro, sonhos e aprendizados.

Assim como quando estamos caminhando, sem perceber, matando insetos rasteiros, nunca de propósito, mas porque a vida se move com sua força irracional, nós somos devastados por “acidentes” inusitados, pestes, tempestades e terremotos. Nessas horas, somos as formigas que morreram sem saber o motivo.

Justamente por isso que, por pensarmos individualmente, por acharmos que temos autonomia, que existe algum destino ou que tudo acontece por estar programado nosso desenvolvimento, nos sentirmos inseguros, com medo diante da vida. Posso até ousar e dizer que nossa ansiedade, é a descoberta (na maioria das vezes inconsciente), que estamos desamparados individualmente diante da vida e de sua força que não leva em conta particularidades e desconhece o que chamamos de justiça.

Se não há para quem pedir, agradecer, só podemos contar com nossa própria força e ações para termos uma vida com mais alegria que dores. Nosso corpo não precisa de agentes externos para nos matar, muitas vezes ele mesmo cria suas próprias maneiras de nos deixar doentes. É quando essa força não encontra um bom ambiente ou simplesmente chegou a hora do corpo morrer. Nunca esqueça que a morte é o destino de tudo que nasce. Pode ser só isso!

Parece que não tem saída, estamos à deriva? Sim e não!

Sim, porque estamos a mercê de uma potência infinitamente maior e não, pois se estivermos lúcidos, compreendendo e sabendo do que acontece sem expectativas falsas, poderemos receber essa força que nos transpassa a todo momento com um corpo e pensamentos que podem transformá-la em alegria, conhecimento e vontade de viver cada vez mais!

Quando estamos com medo e preocupados, buscamos resolver esse sofrimento com todo tipo de desejos. Mas como já sabemos, nenhum desejo obtido resolve essa questão, já que a vida é mais forte e potente comparada a qualquer coisa deste ou de outro mundo!

Em seguida o medo volta, um novo desejo, a luta por obtê-lo para parar de ter medo, em seguida retorna o tédio quando percebemos que não resolveu e tudo recomeça em um círculo vicioso sem fim. Como dizem os budistas o samsara de vidas e vidas, sofrimento e medo em cada existência até, talvez, paremos de brigar com o obvio e sobre mais tempo para vivermos dentro do que é real. Talvez o “Nirvana” é só não sonharmos mais e vivermos o que está diante de nós.

Tudo pode acontecer a qualquer momento, sim, do que chamamos de bom e ruim! Como já citei em textos anteriores, nossas ações aumentam nossas chances em uma vida que não nos percebe individualmente, de conseguirmos o que queremos. Daqui a pouco, já queremos outra coisa e nem notamos que algum sonho de tempos atrás foi obtido. Esquecemos dos sonhos anteriores? Não, a vida nos mudou, nos modificou com sua força e sem nem perceber o motivo, viramos à direita ou esquerda quando nossa decisão de antes era ir sempre reto, em frente!

Assim, cada um experimenta uma realidade diferente, nunca estamos no mesmo mundo, já que os corpos e experiências são únicas e a vida toma contorno diferente em cada um.

A citação de Schopenhauer que abre o texto parece sombria, como sua filosofia, aliás, é vista. Porém interpreto de outra maneira; é assim que só pode viver quem espera da vida o que ela nunca foi!

Aproveite o momento sempre inédito, afinal daqui a pouco a vida nos muda, tenhamos planos e junto com eles a abertura de mudar a rota, não sabemos quem seremos daqui a pouco. Se Heráclito, Nietzsche e Shopenhauer nos ajudarem a perceber essa impermanência que nunca daremos conta de controlar e isso nos levar a nunca esquecer que tudo é sempre primeira vez, nada mais importa!

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Para saber mais:

Uma breve história da filosofia – Nigel Warburton

Nietzsche e a grande política da linguagem – Viviane Mosé

As dores do Mundo – Arthur Shopenhauer

A Aposta de Pascal

  ” Em caso de vitória ganha-se tudo, em caso de derrota perde-se nada!”

  “O homem está disposto a negar tudo que não compreende.”

                                                         Blaise Pascal – Pensamentos

Pascal viveu pouco, apenas 39 anos (1623 – 1662) mas deixou seu pensamento marcado na história. Desde criança sempre foi enfermo, e, como não poderia deixar de ser, pensou e filosofou em um corpo doente e isso foi decisivo em sua filosofia. Curiosamente, Pascal não falava bem dos filósofos, preferia se dizer um Teólogo, mas não foi só isso. Com mente brilhante, foi um cientista que fez um dos primeiros estudos sobre o vácuo, criou o barômetro e, em 1642 inventou uma calculadora mecânica que fazia contas de adição e subtração com objetivo de ajudar seu pai que era comerciante. O projeto da calculadora só não foi para frente pelo alto custo de sua fabricação e por ser um instrumento estranho de estética ruim, do tamanho de uma caixa de sapatos, mas funcionava perfeitamente!

Mas antes de tudo Pascal era um católico devoto, que sofria por ter uma mente científica. Se Descartes tentou provar que Deus existia pela lógica, Pascal discordava, dizia que Deus só era possível pelo coração, não chegaríamos e Ele pelo pensamento racional. As razões de Pascal eram óbvias; observava a vida e as pessoas e não conseguia ver a ação divina em nada. Era um pessimista pelo que observava: a natureza feroz com suas tempestades, terremotos, pestes, doenças e as pessoas agindo movidas pelo desejo ambição, sexo e poder.

Onde encontrar o Deus cristão nisso, onde está o amor e nossa natureza divina, imagem e semelhança da criação?

Pascal, assim como outros pensadores cristãos, via a maldade humana como consequência do pecado original, mas a presença do amor divino ainda ficava obscurecida, ele acreditava, mas queria também saber! Lutou muito com seu paradoxo entre o que a razão lhe mostrava e o que seu coração pedia, ficava como aquele que joga uma moeda para cima, cinquenta por cento de chance para cada lado.

Foi assim que ele chegou a um pensamento que ficou conhecido como “A aposta de Pascal” que consta de seu livro “Pensamentos”, publicado após sua morte. Sua aposta é baseada na probabilidade, ou seja, como poderíamos apostar na existência de Deus?

Como saber ninguém sabe, já que Deus é artigo de fé, em outras palavras; você precisa não saber que Deus existe para poder acreditar nele. Ninguém coloca fé no que sabe. Assim, Pascal nos convida a pensar dos dois modos; Deus existindo ou não.

Vamos começar pensando na possibilidade de Deus não existir. A vida será vivida sem a ilusão de alguma continuidade da existência após a morte, sem paraíso ou inferno para passar a eternidade. Também não perderia seu tempo em ir a igrejas, rezar, fazer promessas, deixar de comer carne na Sexta-Feira Santa, se confessar e muito menos pedir ajuda “superior” para resolver seus problemas. Ser uma pessoa correta e ética seria uma decisão pessoal, sem nenhuma recompensa além dos limites da vida do corpo. Não haveria créditos na eternidade!

Porém, Pascal vai alertá-lo de uma questão; como você não tem certeza da existência de Deus, corre o riso D’Ele existir, e aí sua conta de débito de ausência e falta de prática cristã lhe trará grandes prejuízos depois da morte, já que existirá um lugar aonde ir e tudo que você não fez como cristão será levado em conta e seu prejuízo será enorme.

Já para quem acredita é mais fácil, vive essa crença em suas práticas religiosas e vida pessoal, estando garantido no que virá depois.

Para garantir um bom resultado, Pascal sugere que, mesmo que você não acredite, aposte que Deus existe e viva como se isso fosse verdade! Nesse caso, você cumpre os mandamentos, vai na igreja, reza, se confessa, lê a bíblia etc. Assim, se Deus existir, você terá direito ao plano “premium” e receberá todos os benefícios vindouros como a glória eterna, dentre outros.

Mas como fazer, afinal se não acredita, como conseguir acreditar verdadeiramente? A resposta que Pascal dará, em outras palavras, é a seguinte: aja como se fosse, conviva com quem acredita que, com o tempo e pela repetição das práticas você acabará acreditando! Seria ser duro com Pascal, mas ele confiava no lema do marketing: diga (faça) algo mil vezes que…

No fim é o seguinte; o mais lógico e racional é acreditar que Deus existe, segundo Pascal, não há nada a perder, só ganhar. Além é claro de você ser uma pessoa correta que viverá uma vida boa, amando e sendo amado. Como ele mesmo diz: “Em caso de vitória ganha-se tudo, em caso de derrota, perde-se nada!”

Como bom cristão, Pascal não levava em conta outras religiões, por isso sua tese não contemplava outros tipos de deus, como os orientais, por exemplo. Também deixou uma lacuna na sua sugestão; em Deus existindo, Ele sabe de tudo que está em seu coração e, portando, saberia que você não acreditava e que só agiu assim por medo de estar errado se “garantindo” de prejuízos. A natureza de qualquer crença é acreditar que é verdade, o que é sempre complicado, já que uma “verdade”, pela sua própria natureza, não precisaria de nenhuma crença para validá-la. Deus leria seu coração e saberia que você agiu por interesse. Mesmo assim, por agir de acordo, o crente de ocasião teria direito ao “plano básico” que ainda é melhor que o inferno.

O grande problema para os pensadores cristãos sempre foi explicar a onipotência de Deus, que tudo pode, que nada acontece sem sua permissão com o mal que há no mundo, seja da natureza seja nas pessoas. Pascal e Santo Agostinho apostavam que não teria sentido viver se Deus interferisse em nós e no mundo para sermos só pessoas boas. Desde o pecado original já nascemos livres para fazer o mal, sermos desejosos e egoístas. Precisamos vencer esse nosso lado ruim, ligado ao corpo e suas inclinações.

Agostinho passou sua vida pensando em adequar a realidade crua a presença de um Deus de amor, Pascal buscou tornar Deus uma aposta sem chances de perder, já outros como Epicuro, diziam que os Deuses, por não serem desse mundo, nada interferem ou Spinoza para quem Deus é tudo e nunca foi “alguém”.

Seja como for, Pascal mostra que mesmo que não exista, se agirmos como se existisse, de certa forma Ele existirá.

Jogue sua moeda para cima, ela até pode cair em pé, mas as chances são pequenas.

Façam suas apostas!

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Para saber mais:

Pensamentos – Blaise Pascal

Uma breve história da filosofia – Nigel Warburton

A Tirania da Perfeição

” Viver é melhor que sonhar”.

Belchior – Como nossos pais

Para começar, nada falta ao que existe!

Tudo que existe é “perfeito” em si, dentro de uma constante impermanência. Temos uma necessidade de segurar, conter em nosso pensamento todo processo contínuo de mudança que é a vida em todos seus níveis. Por que precisamos dessa ideia de contenção? Para diminuir nossa angústia diante de uma realidade incontrolável, como já escrevi em textos anteriores.

Desse medo surge toda metafísica (conceitos, ideias que não são desse mundo e que não podem ser comprovadas pela razão), toda a “necessidade de verdade” como diz Nietzsche, por não darmos conta emocionalmente de um mundo mais forte e que escancara nossa condição primeira; a vulnerabilidade. Assim, como a metafísica produz deuses que criaram tudo, que controlam e tem ciência de tudo que acontece e acontecerá, que é imóvel enquanto tudo muda, que é eterno quando tudo perece, esse mesmo tipo religião só que implementado na nossa vida concreta, cria os modelos de como devemos ser, agir, comer, trabalhar, que corpo devemos ter e uma série de outras imposições que não só fazem o mercado girar, mas psicologicamente geram a culpa desse modelo não ser atingido e, obviamente, uma sensação de impotência e incompetência. Hoje, dizem os arautos, o “mercado” ou a “vida” pedem isso ou aquilo. Esse isso ou aquilo é o que a eles interessa. Quem é o mercado e a vida? Um jogo de interesses políticos e econômicos que desde que o homem decidiu viver em comunidade começou a funcionar. Afinal, como em qualquer raça, onde tem mais de um o poder passa a ser disputado e exercido, sempre atendendo ao interesse de quem comanda,

Se a natureza é sempre inédita, nada se repete, nenhuma árvore tem duas folhas iguais, como pode haver algum modelo que abarque a necessidade de todas as pessoas? Genética diferentes, emoções diferentes, experiências diferentes… Tudo que busca a perfeição assim como toda a ideia, verdade ou conceito nunca são desse mundo, são meras superstições, criadas por pessoas como eu e você com o objetivo de vender alguma estabilidade ou que nosso medo terminará se essa meta for atingida. É ou não um outro tipo de religião? Seja por interesse ou por medo, os modelos de “como deve ser” é a tirania da época da internet nesse mundo sem fronteiras.

Modelos sempre padecem de um erro básico, mas proposital; partem do ponto que somos iguais, que podemos conseguir igualmente atingir essa expectativa. Quem não consegue, é por não ter se esforçado o suficiente ou é incompetente. O que serve para alguns, não serve para outros e isso é óbvio em um mundo onde não existem dois seres iguais em qualquer reino. Modelos são violências, imposições criminosas para pessoas que não tem como se defender. Toda a média inclui o acima e abaixo e dá para viver de todo jeito. Sal rosa pode ser melhor (por não salgar), mas o sal branco que “faz mal” está longe de ser o problema de uma vida triste, sem sentido e baseada nessa busca por métodos milagrosos. Seja os cinco passos para a felicidade, os dez mandamentos para ser milionário, preces (quando percebemos nossa impotência), zero por cento de gordura no corpo quando não encontramos uma saída melhor para a nossa autoestima etc., são modelos ou os novos “santos” dessa religião do mundo material. Linhaça dourada é sem dúvida ótimo, mas não te ajuda a dormir quando o medo assombra, para isso é mudar a vida ou um sonífero.

Todos somos completos, mudando a cada momento. Parece um paradoxo, mas não é. O processo de mudança, é a única certeza nesse universo, baseado na incerteza, na potência do mundo e nas escolhas que fazemos. Não há nada parado, puro, intocado, seja em nós ou em qualquer lugar desse universo infinito que se expande a cada segundo. Essa é a beleza da mudança; o que virá? Até onde podemos interferir se somos tão menores que o contexto dessa pulsão de força que é a vida?

Somos devir, um vir a ser desconhecido por não termos nenhum controle sobre como a vida nos afetará, nos levará daqui para lá como os ventos fazem com barcos no oceano. Temos velas e remos? Sim, isso sempre nos responsabilizará em parte, mas tudo é muito maior e a chance da tragédia ou da alegria está a no segundo à frente. Lembre-se: não nos falta nada para sermos o que somos agora e é isso que temos para tomar decisões, porque não existe nenhum “eu” estável a ser encontrado que tenha a resposta certa! Estamos imersos na mudança, ninguém É, estamos “sendo” a cada momento o resultado das causas que nos trouxeram até agora e gerando as futuras. A vida não aceita nossas promessas, juramentos e expectativas.

Toda metafísica são mandamentos religiosos, deuses perfeitos e modelos de todo tipo são o que Espinoza define como servidão, em outras palavras; quando o que nos move vem de fora, quando obedecemos e buscamos o que nos mandam não o que queremos. Nem somos ensinados a descobrir o que queremos, já pensou nisso? Desde que nascemos, nos dizem o que devemos querer, como devemos pensar. E quem ensina? Quem também foi domesticado e isso está longe de terminar na infância. Segue vida a fora, já não como pai e mãe, mas como Guru, Sábio, Mestre, influencer ou CEO de qualquer coisa.

O servo não causa nada em si, mas é o resultado de forças externas que agem sobre ele, ele é levado, empurrado para uma vida que não escolhe. Aceita por esperar ganhar algo com isso, seja a proteção divina, a admiração dos demais ou um paraíso qualquer. Toda vida não escolhida é triste e impotente, necessitando de ajudas químicas, reconhecimento dos demais pelo sucesso ou beleza, bens que mostram que somos bem-sucedidos, espiritualizados, paisagens perfeitas ou amores eternos. Mas fazemos isso por uma expectativa e uma causa; a expectativa é parar de nos sentirmos angustiados (por não entendermos essa sensação e aí o conhecimento é fundamental), e a causa é querer ser reconhecido pelos demais como alguém que está “bem” por atender o modelo, seja qual for, não importa a que custo.

Toda ideia de igualdade, identidade, verdade e permanência é uma superstição, todo modelo portanto é uma premissa falsa!

O que queremos por nossa natureza é nos expandirmos, sermos mais fortes, mais conhecedores, sermos melhores em relação a nós mesmos, mais alegres, com vontade de viver cada vez mais. Nunca conseguiremos buscando o que não é desse mundo, como qualquer tipo de perfeição, por exemplo. A vida é nesse mundo concreto que precisa ser entendido por cada um do seu jeito e nele buscar a serenidade ou a conciliação defendida por Camus.

A incerteza como natureza da vida, o mistério do devir e todas as possibilidades que ele traz, seja para o que chamamos de bem ou mal, que nem existem em si, mas são definições sempre provisórias de como nos sentimos, está toda beleza e potencial de viver.

No fim das contas estamos todos sós, já que nada se repete, e a vida é a soma de todas essas possibilidades que estamos sendo a cada momento. O resto trabalha o tempo todo para não percebermos isso.

O que seria dos modelos de ser, agir, vestir, comer, ouvir etc. que nos impõe se lembrássemos disso?

Para começar, só imagine como seria…

Nunca saberemos

“Tudo no mundo começou com um SIM. Uma molécula disse sim a outra e começou a vida. Mas antes da pré-história, havia a pré-história da pré-história. Havia o nunca e havia o sim, sempre houve não sei o que, mas sei que o Universo jamais começou”.

                                               Clarice Lispector – A hora da estrela

“A existência precede a essência”

                                                Jean Paul Sartre – O Existencialismo é um humanismo

Aristóteles, na Metafísica (livro IX), foi o primeiro a dizer com argumentos filosóficos que tudo tem uma causa antecedente, ou, em outras palavras que nada vem do nada. Por mais óbvio que isso possa parecer a metafísica e as superstições adotam o conceito que tudo que existe veio de uma inexistência inicial de todas as coisas, ou seja, foi criado do nada.

Não precisamos, como Aristóteles, ficar pensando no Universo, poderíamos fazer essa mesma reflexão partindo de nós mesmos. Somos o resultado do que nos acontece, vamos mudando, vitimados pelas alegrias, tristezas, frustrações, decepções, doenças, conquistas etc. Tudo no Universo é um movimento constante. Vamos sendo moldados pela vida a todo momento desde que nascemos. Seríamos outra pessoa se tivéssemos um passado diferente e não tem muito como saber como seremos amanhã, afinal, não temos como prever o que e quanto nossos encontros com a vida nos mudarão.

Tudo sempre existiu como diz Clarice Lispector na nossa citação inicial, sempre há um “Sim” para vida, e o primeiro perdeu-se no tempo. Temos essa angústia de procurar a causa inicial para nos sentirmos mais seguros, como se a conhecêssemos, saberíamos o que está por vir, ou nos daria uma interpretação segura de tudo que passamos e da nossa incapacidade de controlar a nós e a vida seria dirimida.

Sartre e os existencialistas perceberam que o conceito de “essência” não resiste a muitos minutos de observação isenta. A busca por essência é a mesma de saber como tudo foi criado, só que no âmbito da individualidade. A cada momento, a vida com sua força irresistível e imprevisível nos joga daqui para lá. A cada acontecimento, de qualquer tipo, somos empurrados “mais para o lado” seguindo rumos imprevisíveis. Hoje dizemos que amamos, daqui a pouco, percebemos que não mais sentimos. Hora temos certeza de querermos isso ou aquilo, muita luta, a conquista vem para logo depois olharmos e percebemos que a pessoa que nos tornamos (enquanto buscávamos esse objetivo), já não é mais a mesma e seja o que for que conseguimos, não nos faz mais brilhar o olhar.

Corremos atrás de nós mesmos como se estivéssemos “escondidos” em algum lugar em nosso interior, ali, parados a espera de ser descoberto e finalmente sabermos quem somos. Desde Sócrates o autoconhecimento está na moda e nunca sai de cartaz, não por ser difícil, mas por ser impossível! Como prender ou capturar o que se transforma, às vezes, até por um sonho que teve enquanto dormia? Nunca vamos nos conhecer, por  termos mudado no segundo seguinte caso isso fosse possível. Mas, como já escrevi em textos anteriores; queremos estabilidade, verdades e criadores!

Lidamos mal com essa imprevisibilidade da vida, queremos segurança, estarmos preparados para tudo que tememos. Só que tudo pode mudar em um segundo, anos de “certeza” terminam sem aviso. Seja com mais ou menos tempo, nos refazemos e seguimos adiante, mudados, buscando essas certezas, essa garantia que nunca chega em outras coisas. Transferimos essa decepção pela instabilidade para quem está do lado, mas sempre contamos com o fator metafísico estabilizador; existe um Ser que criou tudo e conhece ou é a causa inicial e que, portanto, sabe o porvir.

Se não temos controle sobre tudo que nos acontece, o que temos?

Podemos escolher boas causas para o que virá, bons encontros com o mundo que nos tragam a alegria de Espinoza; a vontade de viver e agir mais na vida. Isso nunca será sempre possível, mas sempre ajudará a nos moldar melhor, de sermos afetados e mudados positivamente nesse mundo tão estranho. O que podemos fazer, por entendimento e iniciativa é por boas causas no outro prato da balança, já que a vida se encarrega de preencher o outro com o medo e tudo que nos afeta negativamente, todo dia.

Para um segundo passo, lembrar que todos somos capazes de tudo, um contexto mais forte que nossa vontade (não é difícil de acontecer), pode nos fazer agir de forma inédita e nunca imaginada. Podemos fazer o que nunca fizemos, justamente por tudo ter uma causa, forte suficiente para, em um segundo, nos transformar em alguém que age de um jeito novo e inesperado. Acontece todo dia e, com certeza, já aconteceu com você também.

Muitas vezes conseguimos nos conter, quando nossos medos, bloqueios e avaliação das consequências são mais fortes que esse contexto. Aquilo que pensamos de nós mesmos, sempre como algo estável, tem alguma força de resistência, claro. Precisamos conviver melhor com a instabilidade e mudança contínua, nos lembrarmos disso mais vezes. Isso nos ajudará a nos assustarmos menos com tudo que acontece na vida, com os outros e conosco. Tudo é sempre possível!

Somos compostos de genes de milhares de pessoas que também viveram e foram mudados por suas vidas. Algumas vezes nosso olhar e pensamento tem em um antepassado sua causa. Não se assuste! Pare, pense e veja quem você é hoje e se isso lhe cabe. Nietzsche nos ensinou que nossos pensamentos são resultado de toda a luta que está sempre acontecendo em nós e no mundo. Não controlamos o que pensamos, não temos ciência de todas suas causas, assim como não saberemos o que seremos daqui a pouco.

Se isso assusta, pense diferente; essa é a graça e imprevisibilidade que está por trás do movimento de tudo que é vivo. Esse medo e insegurança é só nossa necessidade de controle, tem muito a ver com o mamífero que somos que sabe que pode morrer e precisa de algum controle (medo) para manter-se vivo. É irracional e faz parte!

Tudo tem causa, seja eu, você ou o Universo, mas ela está distante demais para termos certeza. Podemos descobrir nossas causas ou causas de outras coisas, elas podem ser recentes ou entendidas. Isso nos dá clareza? Sim, e em alguns casos isso pode ser muito útil. Mas lembre-se que o agora é uma mistura de causas múltiplas e anteriores e, ao mesmo tempo, será causa do que virá. Nem sempre percebemos e isso é mesmo muito difícil.

Milhares de espécies já viveram e desapareceram desse mundo por causas diversas, tudo começa e acaba. Os cientistas dizem ainda se ouvir no espaço o eco de uma grande explosão corrida bilhões de anos atras, que até pode ser nossa primeira causa, mas teve outra antes dela e assim por trás. Mas isso não importa, não faz diferença já que estamos vivendo agora, ou como diz Espinoza, somos um esforço em movimento, buscando se preservar e atrás de mais Vida nesse vir a ser, deliciosamente, imprevisível!

Nunca vamos saber nada definitivamente, nunca vamos ter certeza, nunca existirá uma verdade imutável, nunca haverá estabilidade, nunca!

A vida é sempre um SIM!

Um brinde!

O Grande Tirano *

“É livre aquele que age segundo a essência racional de sua natureza, portanto, aquele cuja razão é a causa interna e total das regras, normas e leis da ação que realiza”.

                                         Marilena Chaui – Contra a servidão voluntária

Quando Étienne de La Boétie (1530 – 1563), escreveu seu clássico sempre obrigatório, e, atualíssimo “Discurso sobre a servidão voluntária” questionava o motivo dos homens (que tem a liberdade por natureza, segundo ele), se deixarem dominar por um tirano, apenas um homem que, por aceitação de milhares na época e hoje milhões os subjuga. Nas suas palavras; “nascemos livres e servos de ninguém, sendo incompreensível que possamos trocar esse bem que é a liberdade por esse mal que é a escravidão”.  

A questão que La Boétie propõe é porque tantas pessoas se dispõe a servir a um só homem se nada os obriga a isso? Como apenas um homem pode dispor de vidas corpos e desejos de tantos que se submeterem à sua vontade passivamente? A conclusão é simples; deixamo-nos dominar por nos sentirmos mais seguros em entregar nosso destino a alguém do que assumi-lo. O tirano, para manter seu poder, como afirma La Boétie tem milhares de olhos, ouvidos, braços e pernas. Sozinho, ele não teria como ter tanto poder e não conseguiria mantê-lo. Esse corpo vasto do tirano é composto por esses que, querendo se beneficiar da proteção e favores do poder, cumprem a função de ser esse “corpo” que mantém sua força para governar e impor suas vontades sobre os demais. Como ele mesmo afirma no Discurso: “Dá-se tudo ao soberano na esperança de converter-se em soberano também”. Em outras palavras, também queremos o poder, e a capacidade de impor nossa vontade aos demais.

Qual saída ele propõe para derrubar o tirano? Simples, não o obedecer!

Se seu poder vem da obediência em busca de proteção e favores, deixá-lo só é derrubá-lo sem precisar nenhuma guerra civil. Ele esvairá, pois não terá mais os milhares de olhos, braçõs e pernas que necessita para governar, ficará só e nu.

Quinhentos aos depois do texto de La Boétie os tiranos continuam na moda, só que hoje eles são mais de “fachada”, são marionetes manipuladas pelo Grande Tirano que se chama modelo cultural ou o jeito que pensamos a vida e, consequentemente, a vivemos. Isso não é por acaso e nunca será. Olhando para a história os tiranos antigos tinham mais charme e, muita inteligência, pois naquele tempo precisava ter força para chegar ao poder e mantê-lo, porque a traição sempre ronda o tirano, afinal, nunca esqueça; ele está cercado de pessoas como ele.

 Atualmente, os personagens que cumprem esse papel de “salvador” do mundo, guardiões dos valores tradicionais, coincidentemente (é só observar a história), sempre se apoiam sob dois pilares que lhes dão sustentação; a força militar e religiões de grande apelo popular, aquelas de obediência cega, fundadas no medo e na culpa. As armas, deus ou jesus (as minúsculas são propositais), cumprem a função dos milhares de olhos e braços dos tiranos de séculos atrás. Nada muda, nada se cria, só se copia e maquia.

Os tiranos atuais não precisam de nada especial, nem de inteligência, são “laranjas”, ignorantes, megalomaníacos ou simplesmente, idiotas, funcionários da Grande Política que é a maneira como vivemos, já citado anteriormente.

O Tirano pós-moderno diz que sempre temos que ser produtivos, não há tempo a perder com a ociosidade. A vida é uma competição onde só os mais preparados podem vencer e isso já começa abortando a infância, com crianças com agenda cheia e se preparando para provas de competência que virão muitos anos depois de serem colocadas em uma cadeira aos sete anos durante, no mínimo, quatro horas por dia. Para ser percebido como um sujeito identitário são necessários cada vez mais acessórios tecnológicos que duram cada vez menos, estar na “moda” nem dá tempo, já mudou antes de algo ser usado três ou quatro vezes e assim por diante.

As regras mudam e cada vez a possibilidade de um descanso digno ao final da vida ou sobrevida, passam pela sorte de um sorteio da loteria (que tem todos os dias e não é por acaso) para poder, finalmente descansar e aproveitar alguma coisa. Na vida útil, produção e consumo. Na velhice, muito poucos recursos para que esse(a) velho(a) improdutivo morra logo e pare de dar despesa ao Estado. Nossa revolução contra o Tirano hoje precisa ser mais sutil, ela se dá na desobediência furtiva, nos momentos em que Ele não está nos observando, como nos horários de folga ou nos finais de semana. Faça de conta que você está produtivo vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, dê isso a ele e você poderá ter seu retrato no funcionário destaque do mês. O Tirano adora um “comprometimento” total, ou seja, sua vida é dele!. Quando Ele estiver distraído, se divirta, invista parte do seu dinheiro em coisas que gosta, aproveite! Ele também vive dizendo que você viverá de novo, que seu sofrimento será recompensado, que até você se purifica sendo explorado, finja que acredita nessas tolices.

Faça de conta, mas faça de sua micropolítica o melhor que conseguir, aumentando sua qualidade de vida. Lembre-se que o Tirano não está nem aí para você enquanto ser humano, ele nos vê apenas como objetos de grande máquina de produção e consumo. Somo peças fáceis de substituir, as escolas preparam funcionários desde a revolução industrial. As primeiras que surgiram, são os modelos que existem até hoje começaram ao lado das fábricas para cuidar das crianças enquanto os pais trabalhavam e prepará-las para substituírem seus pais na produção. Seu jeito ainda é muito parecido e nem precisaria mudar muito, já que a ideia é a mesma.

Como escrevi no texto anterior “Amizade”, e, pela primeira vez nesses anos todos vou repetir o parágrafo final:

 A servidão só terminará quando a obediência acabar. O tirano do nosso tempo vive de nos manter ocupados, angustiados, com pouco tempo para perceber que podemos estar contentes.

Aos poucos, obedeça menos. Não será necessária uma grande revolução, basta dar mais valor ao que importa para você. Aos poucos, como promete La Boétie, ele cai, afinal somos seu corpo e mente. Se mudamos, ele morre!

  Conforme já nos ensinou Nietzsche, o humano é alguém que deve eternamente se superar e por quê? Por sermos naturalmente frágeis, vulneráveis, expostos a um mundo muito mais potente. Nossa superação virá de sabermos mais, pensarmos de forma nova e termos experiências que nos transformem e, principalmente, nos alegrem. Quando isso estiver acontecendo, sua liberdade chegou, e aí não será mais preciso um Tirano para dizer qual deve ser seu jeito certo de viver.

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Para saber mais:

Discurso sobre a servidão voluntária – La Boétie – Domínio Público

A Economia libidinal do Fascismo – Vladimir Safatle, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vR2ubjIjwPg

*O presente texto serve de acréscimo ao anterior “A política da impotência” nesse blog.

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