Psicologia

O grito do silêncio

    “Ser amaldiçoado é saber que tua fala não pode ter eco, porque não há ouvidos que te entendam. Nisso se assemelha à loucura”.

                                                                              Rosa Monteiro

    “É impossível conviver com a realidade sem um mecanismo de fuga”.

                                                                                Freud

Foto; Inzmam Khan

                                                    Há quem diga que nosso maior mal é sabermos coisas demais; que morremos, caminhando para a morte a cada dia pela inevitável deterioração do corpo, que somos frágeis demais diante da natureza sempre insana e caótica. Que sentimentos que gostaríamos que durassem a vida toda podem terminar a qualquer momento, sem que nada possa ter feito para isso e que pessoas importantes em nossas vidas nunca tem prazo de permanência e mais outras tantas inseguranças em todos os aspectos.

                                                   O que fazemos com tudo isso? Pensamos, imaginamos possibilidades, sofremos pelo que pode acontecer mais pelo que realmente ocorre. Somos atormentados pelo descontrole que se passa em nossa cabeça, invadida por pensamentos e desejos que parecem(?) não serem nossos, ou da ideia que temos de nós.

                                                   Angústia.

                                                   Disfarçada de desejo, a angústia (soma dos nossos medos), nos ilude dizendo que poderá ir embora se algo acontecer, ou pior, se for comprado. Toda uma cultura subsiste desse sofrimento, conforme já escrevi em textos anteriores. O fim da angústia é sempre uma falta, por isso lutamos e esperamos. Como lidamos com isso, com nossos pensamentos e medos que nossa mente transforma em imagens de um futuro de dor ou em vídeos retro de um passado que gostaríamos de poder recontar?

                                                   Pensamos muita coisa para poder conviver com a incerteza na tentativa desesperada de poder encontrar uma saída que ofereça conforto. Mas que conforto? Uma certeza das previsões ruins não se realizarem, mas mesmo que conseguíssemos, o que faríamos com a morte?

                                                    Queremos entender, queremos viver para que a morte seja esquecida. Se Epicuro estiver certo, vida e morte nunca se encontram e não há o que temer e sentir-se vivo é nosso antídoto.  Odiamos as rotinas pois elas são a ampulheta por onde vemos escorrer na areia nossos poucos dias. Se nos iludem que temos algum controle, é também a antessala das limitações, perdas e dores que o tempo inevitavelmente trará. Quem sabe uma vida sem rotinas com novidades diárias? Nunca esqueça que o medo sempre fala do desconhecido, do que não conseguimos imaginar ter algum controle. Se rotina, portanto, diminui o medo com a falsa sensação de previsibilidade, novidades (mudanças) diárias nos assombrariam. E agora?

                                                    Como queremos entender, somos sufocados por pensamentos que temos medo de compartilhar e esse medo vem de querermos controlar (sempre isso), o que pensam a nosso respeito. Nossa imagem será uma pequena marca que podemos deixar nos outros, mesmo que não seja tão verdadeira assim. Se existimos no olhar do outro, que seja uma boa visão, pelo menos. Mas esses pensamentos profundos, que nunca compartilhamos, até por não os entendermos direito, não levam isso em conta, e, por não serem expressos e metabolizados se tornam algo que precisa sair de nós, para não nos envenenarmos de medo e sofrimento. Freud está certo!

                                                      Não podemos dizer o que pensamos, não podemos fazer o que queremos em um cerco que se fecha rapidamente.  Tudo começa quando temos nosso primeiro desejo e precisamos negociar com o mundo para obtê-lo.

                                                      Se pudéssemos conversar, trocar e perceber que não estamos sós, que esse tormento é de todos que pensam e veem a vida sem preenchimentos ilusórios? Nunca teremos respostas, nunca saberemos e como conviver com isso?

                                                       Sentir-se “louco” é sentir-se só, apartado, alucinando internamente em um mundo em que nos sentimos totalmente sós. Historicamente os loucos são retirados do convívio e como nos conta Foucault em seu livro obrigatório “A História da Loucura” ser louco é ser diferente, é agir e falar o que muitos querem, mas tem medo. Buscamos como Diógenes, um homem com quem conversar e compartilhar nossa loucura. Ser louco não é estar errado, ninguém nunca está, se cada um tem seu mundo. Mas ser diferente, ver outro mundo, mas principalmente, sentir-se fora do mundo onde estão os outros.  Cabe lembrar que, se todos enlouquecessem o louco seria o são.

                                                         Comemos e bebemos exageradamente, geramos compulsões demais para esquecer nossa loucura que é nossa verdade. A solidão mais profunda é nossa lucidez, aquela que ninguém quer ver, nem nós. Procuramos alguém para nos relacionarmos afetivamente ou uma amizade para podermos compartilhar e nem sempre conseguimos, por termos preconceito contra nós, afinal, o senso comum é régua para todos e ninguém está verdadeiramente nela, mas temos medo da exclusão, como os loucos. Nos comparamos com esse modelo idealizado e doente, que regula e separa os loucos dos normais. Na verdade, somos todos loucos que precisamos parecer normais e daí vem todo o sofrimento, até que um rompimento surja, descontrolado pela repressão.

                                                             Ansiedade, pânico, a somatização que destrói o corpo internamente é não aceitar, pela normatização, que sempre estivemos sós, que nunca podemos nos expressar e sem perceber procuramos externamente os culpados e as soluções pela dor de nunca poder Ser.

                                                           Estamos inexoravelmente abandonados à nossa loucura. O mundo é percebido individualmente pela natureza irrepetível, o que vemos só nós vemos, e procuramos quem veja os mesmos culpados e as mesmas soluções. Se loucura é solidão, alucinar junto é uma espécie de verdade.

                                                           A necessidade da padronização do diferente atende a definição Cartesiana da verdade, como algo que seja fruto de um acordo, porém todos os acordos visam algum interesse; no caso da civilização, a convivência possível dos diferentes que usam o uniforme dos costumes vigentes.

                                                           Não são só os policiais, estudantes e trabalhadores que usam uniformes para parecerem todos iguais, escondendo suas diferenças, é uma metáfora que serve para todos. A grande mentira: somos todos iguais, ou “irmãos”!

                                                             A  globalização está cada vez mais insuportável pois agora o mundo pensa e age igual, o “sucesso” em qualquer lugar tem os mesmos símbolos, assim como os remédios psiquiátricos tratam as dores orientais e ocidentais da mesma forma.

                                                              Nunca tantas pessoas estão pensando em sair da vida, dos mais jovens até os de meia idade. O mundo está cada vez mais insuportável, pois não há mais lugar para a loucura de viver individualmente.

                                                                Quando, ao invés de ensinar matemática ou química, vamos falar da loucura, da angústia, da morte e da vida? Dessa sombra que nos segue o tempo todo cada vez que não conseguimos escapar dos nossos pensamentos?

                                                                   Por mais que alguém “chegue lá” e seja um sucesso, nunca escapará de si próprio, das perguntas sobre o medo e da história que sempre só saberemos a metade e que, parece, nunca tem um final feliz justamente por nunca terminar. O descanso ou a paz é aceitar que nunca saberemos tudo, que sempre teremos um mundo só nosso e que a falta de lógica e sentido é muito mais um charme da vida do que algo que valha a pena ficar preocupado.

Se loucos todos somos pela nossa individualidade,  podemos dizer que nos dividimos em dois grupos; os loucos que preenchem os espaços vazios da razão com as superstições,  que vendem explicações  normalmente impossíveis da razão aceitar, vivendo na esperança (sempre acompanhada do medo) que o improvável possa acontecer. Esse tipo de loucura dói mais, já que a razão mesmo deixada de lado, sussurra que o improvável nunca acontece.  De outro lado, temos o Louco, que vive sua solidão sabendo que as grandes perguntas nunca serão respondidas e entra em acordo com os limites da razão e vive sua vida sem esperanças do improvável. Sua luta sempre será fazer o melhor possível com sua vida com o que tem diante de si. Nada mais solitário que isso!

                                                                  Shopenhauer com sua lucida acidez, chegou bem perto quando disse: “Não nos deixar cair em tentação é o mesmo que dizer: não nos deixe ver como realmente somos!”

O fim da Teleologia*

“A mente encontra mistérios porque busca por instinto um objetivo e uma finalidade para toda coisa. Parece que lhe é proibido conceber as coisas tais como são – pelo menos tais como se mostram.”

                                                                          Paul Valery

Para a Teleologia tudo tem um fim, tudo ruma para um fim e esse fim é resultado de uma trama inteligente, que sabe onde tudo vai terminar e por que, além de saber tudo que acontecerá. Discutir esse assunto é uma ofensa, afinal essa “inteligência” tem um nome e todos os predicados já citados. Mesmo que pareça óbvio que a Teleologia não se sustenta diante da realidade, dizer que ela não existe é atacar as religiões, é dizer que não há, nunca houve ou haverá alguém por nós. Em outras palavras, é destruir a raiz de todas as superstições.

Spinoza e Nietzsche enfrentaram essa questão com o preço que paga quem ousa discutir o estabelecido e, principalmente, a quem interessa que se pense assim. Para não deixar esse texto longo, me deterei nas razões de Spinoza para negar a tese Teleológica, deixando a visão de Nietzsche (que tem vários pontos comuns), para outro momento.

Ao aceitarmos que as coisas “são assim”, que tudo tem um fim ou propósito, mesmo que ininteligível, em primeiro lugar tendemos a não nos rebelarmos e a vermos acontecimentos contra quais deveríamos procurar suas causas para erradicá-los de nosso futuro, como algo que faz parte de um desígnio. Ao invés, curvamo-nos para não desobedecer a ordem divina que nos impôs o acontecimento e, logicamente, essa revolta teria um preço a ser pago, seja alguma punição nessa ou em alguma futura existência.

Pelo desconhecimento das causas (princípio spinozista da ignorância), desejamos preencher o vazio do não entendimento que gera agonia, para isso nos escondemos do enfrentamento, apoiados na causa na vontade divina, que sempre sabe o que faz, como o pai que nos protege dos riscos ignorados pela infância com suas ordens que, mesmo não fazendo sentido, trazem a ilusão da segurança pelo poder da autoridade.

Para assegurar que esse poder seja eterno e indiscutível, a construção teórica oferece uma explicação para todas as coisas, mesmo as mais absurdas, onde a fé aceita sem discutir linhas tortas ou desígnios que estão além do cognoscível. A inteligência e a razão são tratadas como falta de fé, ou desqualificadas pela nossa “pequenez” diante do poder do “absoluto”.

Assim, por exemplo, nos momentos de decisões sobre nossa vida, nos sentimos impotentes pela incerteza do que virá, afinal não temos essa “inteligência” que tudo sabe, principalmente o futuro. Sem saída, a ela entregamos nossas escolhas, e com medo do futuro incerto, ficamos dispostos a acreditar em qualquer coisa que nos explique que esse futuro está nas mãos dessa divindade que, hoje, gerencia oito bilhões e meio de destinos. Abrigar-se no poder divino, diz Spinoza, torna a ignorância o grande e real poder.

Toda crença, lembrando que a condição do credo é a ignorância, ou, só acreditamos no que não sabemos, acontece pelo medo diante do desconhecido, que é aplacado pela esperança de que tudo esteja sob controle dessa divindade a quem obedecemos e tememos. A razão é uma só; queremos uma segurança que é incompatível com a impermanência e devir de tudo que coexiste com naturezas e necessidades diferentes e antagônicas. Diante da mudança constante e imprevisível, facilmente constatáveis, verdades e seres eternos são um bálsamo e um abrigo seguro para quem permanece na infância da realidade. Antes de Deus ter criado o homem a sua semelhança, imaginar Deus semelhante ao homem foi o princípio de tudo, afinal quem escreveu essa “verdade” foi um homem, como eu e você, convém nunca esquecer.

Questionado sobre os milagres em uma correspondência, Spinoza responde com brevidade: milagre é o desconhecimento das causas! O que foi considerado milagre anos e séculos atrás hoje sabemos perfeitamente suas causas e ninguém mais usa esse nome para o que sabemos como acontece. Essa brecha pelo desconhecimento de como acontece tem no milagre o preenchimento dessa ignorância. Eclipses foram milagres, pessoas ditas mortas voltarem a vida também, pestes que dizimaram milhares foram vistas como punição etc. Hoje a ciência explica sem esforço as causas e nada disso é considerado intervenção divina e poderia dar centenas de outros exemplos. Citando Spinoza no Tratado Teológico Político: “um milagre[…]é um fato que não pode explicar-se pela causa, isto é, um fato que ultrapassa a compreensão humana…Estão completamente enganados os que invocam a vontade de Deus sempre que não sabem explicar uma coisa. Que maneira mais ridícula de confessar a ignorância!

A Natureza é imprevisível, uma força de vida destituída do que chamamos de inteligência, tendo a humana como parâmetro. Se furacões, pestes, enchentes e terremotos fazem parte, alguns com causas conhecidas e outras não, a vida em si mesma é uma potência onde cada ser singular, busca o que lhe é necessário dentro de sua natureza. Cada ser é irrepetível, mesmo dentro de sua espécie e age dentro de contextos que estão em constante impermanência e imprevisibilidade, sempre mais forte que cada um em particular, e isso torna o que chamamos de “vida”, acontecimentos que não respeitam nosso medo que sempre pede previsibilidade e controle para nos sentirmos seguros. Nunca saberemos as causas de tudo e conviver com isso seria a maneira melhor de vivermos o possível (aquilo que está a nosso alcance), juntamente com o necessário (aquilo que acontece pelas causas que tem, sendo, portanto, inevitável) e o contingente (aquilo que acontece movido por contextos externos, que podem ou não acontecer).

O que chamamos de “Deus” é, infelizmente, resultado do nosso medo e a “Fé” tem a mesma origem; acreditar que tudo tem um propósito inteligível, estando sob controle, que o improvável acontecerá e se não acontecer, isso será bom da mesma forma, que em algum momento fará sentido.  Não há como prever o futuro, já que tudo está imerso no possível, necessário e contingente.

  Spinoza via Deus sob outra ótica, Ele poderia ser alcançado pela razão, pela observação racional da vida. Somente Deus é causa de si mesmo e tudo que vive são modos desse Deus, suas expressões, sempre finitas e movidas por causas exteriores, não sendo, portanto, possível a teleologia assim como a vemos. Deus não está em algum lugar ele é tudo que existe e acontece. Não está fora observando e julgando, é a própria realidade, está acima do que chamamos bem, mal, certo, errado, justo ou injusto. Esses conceitos criamos pelo nosso medo de uma vida imprevisível, de quem se recusa a viver na instabilidade, infância que nunca termina e que sempre precisará de um “pai” protetor que nos diga o que devemos fazer para que ele nos proteja em troca de obediência cega e inquestionável.

Nada ruma para algum fim específico ou determinado. Não existe lugar para chegar ou terminar. Tudo é Vida, tudo são possibilidades, deliciosamente incertas. Estamos sós, por nossa conta, nada depende só de nós, tudo é sempre inédito na impermanência em circunstâncias ou contextos muito potentes. Nossas ações mudam a vida a vida nos muda a todo momento!

Somos mamíferos cientes da morte e isso explica nosso medo diante do imprevisível. A saída da maioria é sobreviver, obedecer e confiar que a recompensa chegará, uma troca. Para quem vive essa imprevisibilidade, viver é um mundo de oportunidades.

Queiramos ou não, estamos escolhendo e arcando com a decisão de como pensamos que seja viver!

Não há fim, tudo é percurso.

____________________________________________________________

*Teleologia, da palavra grega “télos”, que significa propósito ou fim, é o estudo dos objetivos, fins, propósitos e destinos. Na teleologia acredita-se que os seres humanos e outros organismos têm finalidades e objetivos que orientam seu comportamento .

  * [Filosofia] Capaz de relacionar um acontecimento com seu efeito final. Que diz respeito à teleologia, à ciência que tem a finalidade (causas finais) como essencial na explicação das modificações que ocorrem na realidade.

      Bibliografia:

Ética – Baruch Spinoza

A negação da Teleologia e das causas finais – Christophe Miqueu – O mais potente doa afetos: Spinoza e Nietzsche, André Martins (Org.)ed. Martins Fontes

FE.LI.CI.DA.DE

“O maior pecado que um homem pode cometer é não ter sido feliz!”

                                                       Jorge Luiz Borges

A proposta desse texto, não é, necessariamente, trazer uma definição única do que seja “Felicidade”, mas, antes de tudo, fazer uma reflexão sobre como entendemos essa palavra e sua íntima relação com uma série de ideias gerais e pré-definidas que trazem mais frustração do que a palavra em si promete e do que esperamos culturalmente que signifique “ser feliz”.

Ser feliz é individual, como o DNA.

Para começar, não é comum percebermos a felicidade quando ela acontece, justamente por não sabermos exatamente o que seja. Normalmente percebemos que tivemos um momento feliz ou fomos felizes, ou seja, depois que aconteceu. Nosso estado de insatisfação permanente obscurece o momento feliz quando está sendo vivenciado, pela nossa ideia de felicidade ser idealizada. Assim, é mais comum a felicidade ser lembrada como algo que ocorreu, temperada pela melancolia de não só ter passado sem que notássemos, mas por já não existir mais.

Buscando tentar uma primeira ideia simplista, a felicidade é um momento “puro” que não é atravessado ou contaminado pelos nossos medos, carências e angústias corriqueiras. Poderíamos dizer, portanto, que a felicidade é a ausência de sofrimento físico ou emocional, somada a um estado de presença, que pode estar ligado a situações prazerosas, intensas emocionalmente ou quando estamos sendo só o que podemos ser, sem restrições. Essa definição é a soma, por exemplo, do que pensam os filósofos Epicuro e Nietzsche, de forma, obviamente, simplificada. Por isso que, nas raras vezes, quando percebemos a felicidade acontecendo ela termina, por termos e medo de que aquele momento acabe, a contaminação acontece.

Analisando o conceito comum de felicidade, podemos vê-lo como egoísta; quando a vida atende tudo que sonhamos para nós, para as pessoas que são importantes e até mesmo no âmbito político, social etc. Por si só, isso já desmonta qualquer ideia de felicidade como algo que possa contemplar a todos simultaneamente é impossível. Lembrando que, muitas vezes, o que queremos para nós e para outras pessoas, por exemplo, necessariamente não é o que elas querem, assim, a minha felicidade pode ser a infelicidade do outro. A definição egoísta dessa maneira de pensar é inegável. Como também é praticamente impossível que todas nossas expectativas sejam atendidas (felicidade precisa ser completa, já que não aceitamos 80% de felicidade), a felicidade é como um fármaco ou droga, para onde nossa imaginação (vivenciando a felicidade 100%) foge para atenuar os problemas e insatisfações da vida real, onde tudo acontece sem que nossa expectativa seja levada em conta.  Como toda droga, seu efeito é curto e o custo da melancolia que vem depois, nossa frustração por não acontecer o que sonhamos é maior que o tempo de fuga. Podemos fazer uma analogia a Marx que dizia ser a religião o ópio do povo, esse tipo de fuga imaginária é o ópio particular de cada vida singular, ou nas suas próprias palavras: “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo. A abolição da religião, enquanto felicidade ilusória dos homens, é a exigência da sua felicidade real”. Assim, os pensamentos utópicos dessa felicidade perfeita é um tipo de sentimento religioso. A questão é que a “felicidade real” não é vista como tal, já que ela por nunca ser perfeita, só pode ser a possível e essa não aceitamos, queremos o impossível!

No âmbito afetivo, percebemos uma clara conexão entre felicidade e amor, ambos ligados a esperança. Como a felicidade sonhada nunca acontece na realidade concreta, da mesma forma, o amor sempre chegará um dia. O amor, normalmente confundido com paixão sempre será aquele imaginado, projetado. Da mesma forma que a realidade impede a felicidade total, quanto mais conhecemos uma pessoa verdadeiramente, menos poderemos imaginá-la como perfeita. Assim, a esperança sempre carente, nos tira o que é, pela ilusão do que um dia acontecerá. Novamente, nos enebriamos com idealizações e o amor se liga, como a felicidade a um conceito religioso, utópico e carente.

Em nossa cultura meritocrática religiosa, a felicidade é vista como uma consequência por cumprimos nossos deveres, metas ou termos atingido determinado propósito. Seguindo esse pensamento, toda felicidade é resultado, vem no final. A felicidade gratuita, que vem “do nada”, não só é vista como injusta, como terá um preço de dor a ser pago, assim que percebemos que não a merecemos.

Esse mundo é um “vale de lágrimas”, nascemos “em pecado” etc. Não é à toa, que todos já ouvimos ou dissemos “Eu mereço ser feliz”! Só que a vida em si, sem adornos de expectativa não é meritocrática, nem faz cálculo de que determinado sofrimento vale um tanto de felicidade, só o sistema cultural e religioso nos faz pensar assim. Mas a ideia por trás é óbvia; como o divertimento e alegria é permitido só depois de cumprir os deveres, a felicidade é sentir-se cumpridor, estar “em dia” com as tarefas. Felicidade, quem sabe, na próxima vida, como resultado de muito sofrimento nesse mundo. “O Paraíso é dos que sofrem”, diz no seu início um famoso discurso feito em uma montanha. Quando simplesmente temos momentos de felicidade gratuitos, esse jeito de pensar coloca duas pitadas de culpa e o gosto amarga. Quando o “toma lá dá cá” da felicidade não nos entrega o esperado, entramos na metafísica para encontrar a resposta, que sempre poderá estar em desígnios misteriosos, vidas passadas ou em nossas relações com algum antepassado que precisaremos descobrir quem foi. Quando todas as tentativas se esgotarem e vier aquela tristeza de injustiça sem explicação ou de algo que parece não merecermos, sempre teremos algum remédio que, se não resolver com uma dose de 100 miligramas, na de 200 fará seu efeito milagroso.

Se paramos para pensar, a felicidade nada mais é que um pacote de crenças, e um dos seus itens é a ideia de “missão”. Temos uma a cumprir e o primeiro grande problema é descobrir qual. A cultura nos diz que todos nascemos com uma e só seu cumprimento heroico trará sentido a nossa vida e a felicidade virá como recompensa. O problema é que a ideia de missão, encontra um pequeno obstáculo que é a impermanência. Tudo muda constantemente, portanto poderemos ter na vida várias “missões”, cada uma ligada a quem somos em cada etapa. Quantas pessoas encontraram sua “missão” aos 30, 50 ou 60 anos? Ela não estava escondida, simplesmente aconteceu da pessoa naquele momento de sua vida, sendo resultados das experiências que teve, encontrou algo que tem grande afinidade com seu momento. Existe missão que acompanha toda uma vida? Existe, tantas quanto as várias missões que se pode ter em uma vida, ou nenhuma missão particular. Mas, mesmo que a missão seja encontrada, cumprida e a felicidade finalmente chegue. E depois de algum tempo? Nos tornamos aquele que foi feliz por ter cumprido a tal missão, e essa pessoa agora parou de viver? Dá para repetir a missão e sentir a mesma felicidade? Precisará de outra? Provavelmente. Nos filmes dá tudo certo, mas é nos filmes, onde o roteiro é programado.

Perguntas demais para algo tão simples como estar feliz, vez por outra.

O que temos hoje é a ideia de felicidade ter sido cooptada pela auto ajuda e, obviamente, pelo consumo, que sempre são concepções culturais, com objetivo de resultado econômico e sempre generalizante, ou seja, impõe um “ser feliz” padronizado para pessoas diferentes entre si! Como isso gera frustração, a solução é o consumo como forma de atenuar essa falta de ser feliz.

Para quem teve uma infância sem sobressaltos ou traumas intensos, lembram ter experimentado um tipo de felicidade que não é mais possível depois que perdemos a inocência. A felicidade da criança não tem pré condições, não respeita valores culturais ou religiosos, muito menos precisa de materiais ou brinquedos caros para preencher faltas que se diluem rapidamente quando chega o novo modelo. Temos nostalgia dessa fase, pois não tínhamos o conceito imposto pela educação, o modelo a ser atingido. Não saber o que é felicidade talvez seja a primeira condição de ser experimentada. Depois são os outros, a vida, o universo ou seja quem escolhemos para culpar por nos sentirmos infelizes.

A felicidade não respeita métodos, méritos, pré-condições e outras formas de controle.

Ela simplesmente vem e vai, como tudo em um universo impermanente, incontrolável e imprevisível.

______________________________________________________________

Inspiração:

Dario Sztajnszrajber: Nadie puede ser feliz. Disponível em You Tube: https://youtu.be/N10AL_CcQfY

Livro: A ditadura do mérito – Michel Sandel

Pérolas

A mesa estava posta, música suave e, é claro, meia luz.

No balcão que fica ao lado da mesa de jantar uma foto do casal na cerimônia de casamento, em preto em branco, com as bordas desgastadas pelo tempo aparecendo rente à moldura. A comemoração das bodas de trinta anos, que como todas é irrepetível, ganha ares de maior importância pelas três décadas, já que números redondos são ciclos e parecem mais importantes que datas ditas quebradas.

No balde de gelo duas garrafas de espumante cara deixava claro a relevância da data e era o símbolo mais significativo da comemoração.

Como de hábito, o marido usava terno mesmo estando em casa, era uma reverência solene, enquanto ela que havia recém chegada do trabalho não teve o tempo necessário para preparar-se como queria, já que precisaria de horas não disponíveis. Nesse nosso tempo, a vida e os costumes mudaram e o jantar pedido pelo delivery é uma concessão inevitável.

Enquanto ela sentava a mesa, se desculpando por não estar vestida como queria, o marido maneou a cabeça e disse que o importante era a comemoração e emendou:

Trinta anos é muito tempo, estamos de parabéns! Para mim, é como se fosse hoje, incrível continuar sentido a mesma coisa por você, amor!

Ela sorri, baixa os olhos e diz com voz meiga que espera ser contrariada:

– Mesmo? Fico feliz de saber que para você nada tenha mudado. Nunca ouvi isso de nossos amigos, parecem que eles veem a passagem do tempo diferente de você, reclamam mais das esposas e vice-versa.

Talvez sejamos a exceção que comprova essa regra! Disse enquanto enchia as taças e admirava o rótulo da bela garrafa.

Durante os muito minutos do jantar consumidos lentamente, as histórias pitorescas do passado, os filhos, viagens e incidentes interessantes preencheram o tempo enquanto a primeira garrafa foi vencida e ouviu-se o espocar da segunda rolha.

Um pouco antes da sobremesa, ela fez um olhar sério, ajeitou-se na cadeia e claramente tomou coragem para dizer algo importante, não havia dúvida para qualquer expectador atento que aquilo tinha sido ensaiado mais de uma vez.

– Amor, preciso te contar uma coisa.

A mudança de tom trouxe seriedade ao rosto do marido, a atmosfera mudou. Os segundos de silêncio que seguiram ficaram pesados, até que ele com voz tremula, perguntou;

Pelo visto é sério!

Ela mantém o olhar e diz com voz baixa:

– Sério ou não é você quem decidirá. É algo que queria te contar faz tempo, na verdade, desde que nos conhecemos, e penso que esse é o momento ideal.

O marido claramente ficou desconfortável, mexeu-se na cadeira, pigarreou e colocou a mão sobre a dela:

Não precisa dizer nada e nem quero ouvir.

Ela arregala os olhos, surpresa.

– Quero fazer uma revelação e você não quer saber?

Novamente ele coloca a mão sobre a dela e com olhar firme e voz baixa diz:

Se for alguma coisa sobre você, que, de alguma forma possa fazer com que tenha que refazer minha ideia sobre a mulher com quem me casei e, por consequência, tenha que reescrever nossa história, não quero!

Ela estava incrédula. Primeiro por nunca o tê-lo visto falar daquela forma, parecia que ele era outra pessoa, seu olhar e até seu rosto pareciam diferentes do homem com quem convivia a trinta anos. Com voz assustada, disse:

– Não entendo, você parece uma outra pessoa, nunca ouvi sua voz nesse tom e seu rosto também está diferente.

Ele, lentamente preenche a taça da esposa, voltando a mostrar seu rosto de sempre e com um leve sorriso com voz professoral ergue a taça:

Exatamente! Da mesma forma que você acaba de dizer que ouviu uma voz nunca ouvida e um rosto diferente, o que você quer me dizer pode me mostrar uma mulher que nunca imaginei existir. Gosto do que imagino que você seja, é disso que gosto desde o primeiro dia.

– Qual o problema de saber mais sobre mim? Não seria mais honesto?

Não, diz ele, seja o que for não seria útil, posso não gostar de como tudo ficará se me contar.

-Então você está dizendo que prefere me imaginar que me conhecer?

Acabei de dizer. Desde o primeiro momento me apaixonei pelo que imaginei que você fosse e durante esses trinta anos fiz de tudo para manter isso intacto. Nossos amigos não conseguiram, talvez até mesmo você não tenha conseguido e isso não é uma crítica, me parece até normal, pelo visto.

– Então esse brinde que vamos fazer é verdadeiro ou falso? Ela tremia a mão.

Totalmente verdadeiro, disse ele, seja para você que ainda gosta de alguém que mudou tanto nesses anos e para mim, que quero continuar a te imaginar como no primeiro dia. Se somos felizes assim, se sentimos essa felicidade é por ser real. Tive um professor de filosofia na escola que dizia que nunca vemos a mesma realidade, que tudo que vemos somos nós mesmos em tudo, seja na vida em geral ou nas pessoas. Eu quero continuar vendo o que sempre vi e que, para mim, é o que escolhi ser verdade.

Ela encosta a taça, ouve-se um tímido som de cristal.

Ele levanta e traz um pacote de presente e diz:

Que possamos estar aqui, juntos por mais trinta anos. Amo você!

Heráclito

“A Natureza ama ocultar-se”

“Das coisas lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo”

    Heráclito, fragmentos

Tenho duas pequenas bibliotecas: uma no consultório, onde partilho livros com clientes sempre que eles decidem aprofundar seu entendimento sobre determinadas questões. Se é verdade que a terapia existe para ajudar a trazer compreensão onde os resultados terminaram, é também um espaço de autoconhecimento e desenvolvimento. Aqui no consultório, reina Epicuro. Do alto da estante ele lembra que tudo é mais simples que gostamos fazer parecer. Sua política de desejos simples de obter, da não interferência dos deuses em nossa vida, da importância da amizade e de como podemos lidar com a morte são mesmo “remédios para alma” como seus seguidores definiram sua filosofia.  Como bom atomista, ele não acreditava que a consciência sobreviva a morte, o que torna a vida mais intensa e valiosa. Mas, principalmente, para lembrar que ser feliz é apenas estar em paz consigo e estar livre de dores físicas. Um gênio da simplicidade, dono de um pensamento acessível e praticável por qualquer pessoa.

Já em casa, quem ocupa o lugar de destaque é Heráclito como mostra a foto ilustrativa desse post. Heráclito nasceu e viveu em Éfeso, território que hoje pertence a Turquia. Estima-se que tenha vivido entre 544 e 474 a.C.

 Sua figura sempre foi controversa, era um solitário e não fazia questão de ser conhecido nem admirado, mas foi um filósofo respeitado e influente até hoje. Escreveu um livro intitulado “Sobre a natureza”, que depois de pronto foi colocado no templo da deusa Artêmis (filha de Zeus, deusa da caça e da vida selvagem, irmã gêmea de Apolo) e lá se perdeu. O que temos da sua filosofia são citações de outros da sua época, como Aristóteles e Platão, para falar dos contemporâneos. Suas frases soltas já foram compiladas em livros, como a bibliografia do presente texto, mas seu pensamento ultrapassou séculos e inspirou os filósofos estoicos, como Imperador Marco Aurélio, Sêneca, Nietzsche, Espinoza e até mesmo Freud apenas para citar os mais conhecidos. Parou por aí, claro que não!

Suas máximas ainda ecoam no século XXI e podem nos ser úteis no presente texto, refletiremos sobre duas de suas ideias.

A primeira e talvez a mais conhecida:

 Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”. (Fragmento 49)

“Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”. (Fragmento 50)

Heráclito percebeu que não só a vida, mas no próprio Universo que nada está parado ou estável. O movimento ou mudança está intrínseco a tudo que está vivo, até os minerais. Quando entro no rio, mudo pela experiência, já não sou quem entrou, quando volto ao rio, nem eu nem o rio somos os mesmos que estavam lá na experiência anterior. Se não existe imobilidade, nada permanece e como bem observou Nietzsche, está inviabilizada qualquer “verdade”, assim como não existe nada que tenha uma “identidade” ou “essência”. Todos esses conceitos são ficções, já que precisariam que tudo esteja parado para que fossem possíveis. Podemos definir o que não muda, tudo que está na impermanência é indefinível!

Mudamos o tempo todo, não só biologicamente como a ciência já sabe há mais de século, mas mudamos nossa percepção da realidade pelo que vivemos ou pelos afetos a que estamos expostos como lembra Espinoza. O rio muda, quem nele entra também, ou seja, a vida é sempre inédita. Gostamos hoje, deixamos de gostar amanhã, não queremos hoje, passamos a desejar depois. Nada pode ser previsto, a mudança é a lei que nunca muda!

Nos desesperamos com isso, toda essa mudança nos deixa inseguros e os mamíferos medrosos que somos querem controle, sem ele só sobra a angústia. A mesma que nosso mais remoto antepassado sentiu quando se deparou com a primeira tempestade, como já citei em texto anterior. Fazemos promessas (prometer nunca mudar), um atentado contra a vida, que sempre são vencidos, inexoravelmente pela imprevisibilidade da mudança! Criamos muitos planos e depois de anos, descobrimos que fomos levados pela força da vida para caminhos que não imaginaríamos que um dia percorreríamos. Nos assombramos por termos pensamentos estranhos, pois a mudança, a vida, leva o corpo a pensar como resultado do que lhe afeta, sente e passa a cada instante. Somos um barco no oceano, que podemos ajustar as velas, aqui e ali, mas os ventos têm suas próprias razões inacessíveis ou necessárias na natureza.

Heráclito percebeu que tudo que acontecia era a manifestação, em cada ser, de algo chamado Vida! Tudo que existe é vida em milhares de manifestações diferentes e com características especiais para cada ser em todos os reinos. Não há como não perceber que o revolucionário “Deus” de Espinoza, que foi descrito no século XVI tem em Heráclito sua base teórica.

Aristóteles com sua lógica, dizia que Heráclito era “estranho”, que deveria ser evitado, mesmo tendo feito citações diretas de suas ideias em seus livros “Ética a Nicômaco” e no capítulo “Meteorologia” da sua Física.  A percepção profunda de Heráclito, sem nenhuma tecnologia ou aparelho, apenas a observação e o pensamento, o filosofar; descrever o que é a realidade em sua última instância! Se, para Aristóteles “A” e “B” são diferentes, para Heráclito são apenas versões de uma mesma coisa; a vida.

Séculos depois, os cientistas com seus telescópios e hoje com suas sondas e satélites mostram que Heráclito estava certo. Tudo se move, o universo inteiro é movimento (mesmo sendo infinito, o que não se sabia em sua época), construção e destruição, assim como em cada corpo, onde células nascem e morrem, lutam para manter a vida. Nada se repete na impermanência, a vida não repete uma folha, um fruto, um inseto, um mamífero, nada! Tudo é único e indefinível por mudar a todo instante.

A passividade diante daquilo que não pudemos mudar, lema estóico que voltou a moda, que existe beleza em tudo, mesmo na baba do Javali como dizia Marco Aurélio. Nós podemos achar feio ou belo, mas para a vida tudo é perfeito porque é necessário que seja assim naquele momento. Como um  pôr do sol que nos faz acreditar em um artista supremo, também o terremoto que mata milhares, a chuva que inunda e a seca que dizima a vida, a peste nos vegetais e espécies animais, tudo é vida! Nós criamos conceitos de belo, feio, certo, errado, justo e injusto, mas a Vida não leva em conta nossas opiniões, ela É! (caso se interesse por esse tema, convido a ler o texto anterior, “A vida que nos leva”.

Quando criamos esses conceitos, definições e a própria moralidade, a Vida já existia desde sempre e ela é necessariamente, ou seja, nada é moral ou imoral, a Vida é amoral. Como interpretamos, é problema nosso, da nossa necessidade de controle de atribuir um nome que possa oferecer entendimento e estabilidade diante do que se move a cada milionésimo de segundo.

A segunda:

“É necessário saber que a guerra é comum e a justiça, discórdia, e que todas as coisas vêm a ser segundo a discórdia e necessidade”. (Fragmento 20)

“De todos a guerra é o pai, de todos é rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros livres”. (Fragmento 21)

Séculos depois, Nietzsche se apropria do pensamento de Heráclito e diz: “Tudo é guerra, tudo é luta”! Para Heráclito tudo que acontece é resultado de conflito, e é! Dentro do nosso corpo, milhares de células nascem e morrem, lutam contra invasores o tempo todo, como já citei anteriormente. Do lado de fora, seres de todos os tipos com objetivos diferentes convivem no mesmo espaço e tempo, se entrechocando constantemente, já que tem formas de viver que se contradizem. Se a cobra pica com seu veneno para sobreviver, ou você foge ou mata para não morrer e isso vale para tudo, até para pessoas que disputam mesmos objetivos ou se cruzam atrás de sonhos diferentes, lutando por espaço ou até mesmo causando acidentes por estarem no mesmo lugar.

Se tudo é resultado dessa luta constante, Heráclito dirá que não existe injustiça, já que o mais forte sempre vencerá e tudo só poderá ser do jeito que é, como resultado necessário da luta empreendida. Em outras palavras, nada falta a vida! Ela é necessariamente só o que pode ser. Se pensamos ser boa ou má, se desejamos, se falta algo, isso é resultado do nosso medo da nossa falta de controle, chamamos isso de ansiedade.

E a segunda e mais revolucionária constatação; diferente dos que pensam que a natureza de tudo que vive é se preservar e propagar descendentes, nossa verdadeira natureza, como resultado da luta constante é muito mais do que simplesmente sobreviver, é ser mais forte e capaz! Nossa natureza é evoluir como resultado dos aprendizados das vitórias e derrotas que temos todos os dias. A Vida não pede que sobrevivamos, pede que vamos atrás de cada vez mais desenvolvimento, de mais Vida e mais vitórias. A isso Nietzsche chamará de “Vontade de Potência”, Espinoza de “Potência de agir” e Freud de “Libido”.

Heráclito chama os vitoriosos de livres e os derrotados de escravos. Claro que não podemos e conseguimos vencer todas as batalhas, mas a vida que vale a pena precisa de saldo positivo. A cada luta nos transformamos, nunca somos os mesmos depois de cada vitória ou derrota. Aprender com tudo nos tornas deuses, criadores da própria realidade e causa de si mesmo, objetivo último que ultrapassa o limite entre a liberdade e a escravidão.

Em algum lugar do que hoje é a Turquia, 2600 anos atrás Heráclito apenas observou, olhou em volta, para cima, para os lados e para baixo e teve tempo para pensar. Nós estamos sempre ocupados, buscando diminuir nossos medos, buscando uma estabilidade impossível, ou como diria Sidarta; tentando segurar o rio com as mãos.

Enquanto isso, a vida passa e acabará em algum momento para todos que nascem, mas continuará a ser como sempre foi antes e depois de cada um de nós.

___________________________________________________________-

Para saber mais:

Heráclito, fragmentos contextualizados – Alexandre Costa, ed. Odysseus.

Optimized with PageSpeed Ninja