Filosofia

A escolha de Páris

“Numa luta de gregos e troianos

Por Helena, a mulher de Menelau

Conta a história que um cavalo de pau

Terminava uma guerra de dez anos

Menelau, o maior dos espartanos

Venceu Páris, o grande sedutor

Humilhando a família de Heitor

Em defesa da honra caprichosa

Mulher nova, bonita e carinhosa

Faz o homem gemer sem sentir dor

A mulher tem na face dois brilhantes

Condutores fiéis do seu destino

Quem não ama o sorriso feminino

Desconhece a poesia de Cervantes

A bravura dos grandes navegantes

Enfrentando a procela em seu furor

Se não fosse a mulher, mimosa flor

A história seria mentirosa

Mulher nova, bonita e carinhosa

Faz o homem gemer sem sentir dor…

                            Zé Ramalho – Mulher nova, bonita e carinhosa.

A escolha de Páris - Tarô Mitológico - Os Enamorados
Tarô Mitológico – Os Enamorados – A escolha de Páris

Nenhuma mitologia fala tanto a nós ocidentais como a Grega. Não são só uma infinidade de palavras que utilizamos em nosso dia a dia, bem como muitos conceitos e ideias que nunca paramos para pensar de onde vem e que estão introjetados em nós pela cultura.

Seus mitos e histórias, muitos séculos depois, continuam falando de nós e nos influenciando grandemente e, para quem por ela se interessa, trazendo muitas respostas e entendimento.

A história que vou contar é uma dessas que falam do feminino, masculino, e da “fortuna” que costumamos chamar de destino. A guerra de Troia foi narrada pela primeira vez por Homero e, tenho certeza que você lembra daquela história do cavalo de madeira, que foi visto como um presente (hoje dizemos quando se recebe um presente inconveniente é um “presente grego”),  que estava com centenas de soldados escondidos em seu interior que puseram fim a uma longa guerra. A ideia foi de Ulisses, mas tudo começou muito antes de um jeito inesperado…

A história de Paris que contarei será acrescida de “detalhes”, ou uma licença poética, se preferir, vinda do filósofo francês Luc Ferry em seu livro “A sabedoria dos mitos gregos” e desse que vos escreve, afinal, como psicoterapeuta, é sempre uma oportunidade trazer a mitologia para explicar quem e como somos e  entender nossos comportamentos.

Tudo começou em uma festa de casamento de Tétis (uma divindade marinha) e Peleu (um mortal, rei de uma cidade da Tessália), que seriam futuramente os pais de Aquiles, personagem importante na guerra de Tróia. Tétis, como toda mãe de menino, temia que seu filho sofresse e o mergulhou no rio Estige logo após o seu nascimento para que fosse protegido pelas águas sagradas do rio. Claro que precisava segurar a criança, e o fez pelo calcanhar, assim essa parte ficou desprotegida e Aquiles morreria com uma flecha envenenada no calcanhar durante a guerra de Troia, desferida por Pária, filho do rei da Etiópia. A morte de Aquiles nos lembra que nada é seguro e que quem nasce, necessariamente morrerá, independente de toda a proteção ou riqueza que venha a possuir. Além disso, todos temos um ponto frágil, nosso “calcanhar de Aquiles”, onde nosso ego sucumbe, perdemos força e poderemos desmoronar se formos atingidos.

Voltando a casamento, a festa foi prestigiada pelos deuses e deusas do Olimpo e até Zeus compareceu, assim como mortais poderosos, semideuses, ninfas etc. Mas uma deusa foi propositalmente “esquecida” de ser convidada, já que sua presença nunca era bem vinda em qualquer evento. Éris, a deusa da discórdia (é isso que significa seu nome e a palavra oposta em grego é harmonia), foi deixada de lado já que era dia de festa e ninguém queria desentendimentos. Onde ela estava, o ódio e a raiva sempre suplantavam o amor e a alegria. Você conhece alguém assim? Se a resposta for sim, então Éris tem seus seguidores até hoje.

Éris era filha de Zeus e Hera, mas fora desprezada pela mãe por não ser bela e foi daí que ela se dedicou a discórdia como forma de vingança. Se Éris nascesse hoje, faria sucesso em um consultório psicanalítico, onde sua relação com a mãe daria bons anos de análise além de processar a própria mãe por bullyng.

Mas Éris não precisou de convite, foi assim mesmo. Ela não perderia uma ocasião tão propícia para gerar desentendimentos e conflitos.

Ao chegar na festa, Éris coloca na mesa principal, onde todos estavam reunidos um pomo* de ouro onde estava gravado “para a mais bela”,  daí vem a conhecida expressão “pomo da discórdia”.

 Pronto, Eris que sabia como causar problemas, acertou em cheio, tocou na competitividade entre as mulheres! Sejam elas mortais, deusas ou simples mamíferas do reino animal, fêmeas disputam o tempo todo quem desperta mais desejo, afinal, são elas que escolhem os genes, sendo responsáveis diretamente pela manutenção e progresso da raça. Nenhuma fêmea desse ou de outro mundo aceita a segunda posição. Conta a história que todas gritaram em uníssono “É para mim então!” Estava armada a discórdia! Éris, sorria!

Por hierarquia, nenhuma semideusa ou mortal se meteria nessa disputa, as postulantes foram Hera, a esposa de Zeus, a quem ele nada podia negar, Atena (Minerva para os Romanos), filha predileta de Zeus, deusa da sabedoria, inteligência, das artes e da justiça e Afrodite, deusa do amor e da beleza. Como se percebe, não eram concorrentes quaisquer.

Éris, como era de se esperar, pede para Zeus decidir, colocando-o em situação delicada. O grande chefe do olimpo, que de bobo nada tinha, se eximiu de responder, já que sua decisão, seja ela qual fosse, traria imediatamente uma alegria e dois problemas.

Zeus então pede para Hermes, seu ajudante para assuntos complexos, difíceis e desagradáveis, buscar nas redondezas, sem chamar muito atenção, algum jovem inocente para fazer o julgamento. Hermes sai para cumprir sua tarefa e encontra um rapaz que, à primeira vista (aqui é um ensinamento importante sobre julgamentos apressados), era um simples pastor troiano. Mas o rapaz era ninguém menos que Páris, um dos filhos de Príamo, rei de Tróia.

Páris fora abandonado ao nascer pelos pais, pois segundo o oráculo ele seria responsável pela destruição da cidade. Foi salvo por um pastor que se apiedou do recém-nascido e o criou como filho. Se você sabe da história de Édipo (oráculo previu que ele mataria o pai e casaria coma mãe) e Moisés, colocado bebê em uma cesta no rio, pode perceber que, livrar-se de crianças que poderiam trazer problemas era comum na época!

Então, sob a aparência de um jovem camponês, esconde-se um príncipe troiano. Com a ingenuidade típica da juventude, Páris aceita ser o juiz e escolher entre as três mulheres poderosas, a mais bela.

Colocado diante delas, cada uma oferece ao jovem o que representam, para convencê-lo na escolha. Hera, que reina ao lado de Zeus no universo inteiro, promete que, sendo escolhida, ele também teria um reino sem igual na terra.

Atena, deusa da inteligência, garante que, sendo eleita, Páris terá vitória em todas as batalhas.

Afrodite, sussurra ao seu ouvido (ela sabia mesmo como fazer), que, se fosse eleita, ele poderia seduzir a mais bela mulher da terra.

Aqui paramos para duas reflexões, antes da escolha de Páris. A primeira; as mulheres e isso simbolicamente é mostrado nos artifícios para permanecerem belas, lutando contra o tempo, valorizam suas qualidades e escondem o que pode tirar-lhes a competitividade e, como os homens, diante da sedução e do poder da beleza feminina, mudam o parâmetro de suas decisões. Ponto para Freud, que, com certeza, buscou na mitologia sua tese sobre a importância da libido. As ofertas de Atena e Hera eram para uma vida inteira e a de Afrodite era um convite ao prazer imediato. Fica a pergunta; se Páris já tivesse tido a experiência do casamento, teria feito a escolha que fez? Nunca saberemos, e isso vale para a nossa e todas as vidas, não é mesmo?

Pelo que se sabe, Páris não demorou muito a decidir, a emoção é sempre muito veloz. A escolha recaiu em Afrodite que oferecia beleza e sedução. Como bem disse Nietzsche, séculos depois, algo em nós pensa, o corpo!

O problema, é que a mais bela mulher do mundo, Helena, era casada! E seu marido, também não era nenhum desconhecido, aliás não é comum mulheres de exuberante beleza escolherem desconhecidos. Helena era esposa de Menelau rei de Esparta, a mais guerreira das cidades, dona de um exército de dar medo (lembra dos 300 de Esparta, o filme?).

Cabe pensar que Páris, se estivesse em casa dormindo quando Hermes foi a procura de um juiz, teria evitado anos de guerra e milhares de mortes. Então, inspirado ou seduzido por Afrodite, tanto faz, raptou Helena, que obviamente se apaixonou por ele, colocando em guerra Gregos e Troianos. Daí também vem a expressão popular “agradar gregos e troianos” como algo quase impossível.

Foi por causa dessa guerra que Ulisses deixou sua Penélope e o filho Telêmaco para ir lutar e ter a ideia do cavalo de madeira, mas a saga de Ulisses é outra bela história de amor, astúcia e escolhas, ligada a essa, assim como nossa vida é resultado de uma séria de causas que se interligam e que desconhecemos suas origens.

Éris conseguiu o que queria e mais, além de colocar três deusas em discórdia, ganhou de bônus a luta de Páris, o fim do casamento de Menelau, a morte de Aquiles para desespero de sua mãe, Ulisses e suas aventuras depois da guerra para voltar para casa e tantas outras coisas.

No fim, a beleza da mitologia grega é mostrar deuses como quase humanos, com suas falhas, inclinações e até ações inconscientes e reativas, como nos mostra a história da escolha de Páris. Deve ser por isso que falamos deles, contamos e recontamos suas histórias até hoje e continuaremos a fazê-lo por muito tempo. São quase humanos, só a imortalidade nos diferencia e isso só acontece porque morremos. Tudo que se diz ser imortal, só acontece por quem os idolatra morrer.

Deuses que erram e tem falhas tem mais a ver com o que observamos acontecendo todo dia na vida. Já os perfeitos, parados, esses que, se existirem (o que é improvável em um Universo que muda a cada instante), não se metem no nosso mundo, como nos ensinou Epicuro.

Qual o problema de estarmos por conta das circunstâncias e vivendo a maravilha da imperfeição? Só assim poderemos continuar evoluindo, sendo um “devir” de causas desconhecidos e futuro imprevisível. Isso é a Vida, que insistimos em tentar prender com nossos conceitos de bem e mal, justo e injusto. Vida não se prevê, é uma força caótica e transbordante!

A imagem que abre esse texto é do Tarô Mitológico e a escolha de Páris ilustra o arcano dos “Enamorados”, sexta etapa do processo de autoconhecimento. Ali, discutimos nossa capacidade de fazer escolhas e suas consequências, sempre muito difíceis de prever, como sabemos, já que razão e corpo nunca se separam.

Só não esqueça que Éris continua por aí, se deliciando com nossos medos, verdades e disputas imaginárias para termos a ilusão de que dominamos ou controlamos o incontrolável e que nos fazem discordar, discutir e disputar por verdades que nunca existiram!

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*Pomo – pseudofruto formado pelo ovário envolvido pelo receptáculo floral, carnoso e muito desenvolvido, e que é a porção comestível de frutos como por exemplo a Pera e a Maçã. Dicionário online.

Eremita, solidão e descoberta

” A solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais!”

Arthur Shopenhauer

Existe um momento na vida que uma espécie de recolhimento se fará necessário. Isso sempre acontece depois de uma grande desilusão ou perda. Seja uma ideia, conceito ou mesmo uma pessoa, quando algo importante sai de nossa vida ela precisa ser refeita, recomposta de alguma forma. É como se um pedaço de nós fosse retirado e o corpo precisasse repor essa perda de alguma forma, voltarmos a ter uma identidade sem aquele pedaço. É sempre um luto, não são só pessoas que morrem, sentimentos, “verdades” e crenças também.

No Tarô, a carta do Eremita representa um ponto que talvez seja acessível a todos nós, já que viver é estar em constante regeneração. No caso dele, esse momento chega quando na sua jornada atrás do autoconhecimento, o personagem (que somos nós), sai de cena para assumir algumas desilusões. Primeiro, ele descobre que vive em um mundo que tem regras e limites, que intuição e agir por impulso normalmente não dão muito certo. Depois, ele descobre que poder e riqueza não só não eliminam sua angústia como não trazem respostas, mas sim problemas novos, aqueles em que a solução não tem preço monetário. Depois, busca nas religiões respostas para esse mundo que estão fora dele e descobre que o que está por trás é o controle não o paraíso. Se assim fosse, teriam surgido outros Cristos, mas a religião não os produz, apenas inibe que apareçam. A ideia não é formar, mas domar.

Depois, pensa que a resposta está nos relacionamentos, nessa tal incompletude que Platão nos legou e transformou pessoas em tampas de panelas e meias laranjas. O que vemos? Os relacionamentos não se sustentam, não por não serem ótimos de se ter, mas porque estão fracassando em cumprir uma missão que não lhe compete.

Nesse momento, não é difícil perceber que o programa cultural não tem nenhuma preocupação com o ser humano, mas só com sua capacidade de produzir e gastar. Suicídios em alta, psicotrópicos vendendo como nunca e cada vez mais pessoas sofrendo com ansiedade. Um mundo que ultrapassa sua imprevisibilidade natural e ruma ao absurdo.

O que sobra depois de tantas decepções? Com certeza a última esperança: a existência da justiça!

Mas, ela é fruto da ideia grega de um universo inteligente que funciona harmonicamente e finito, como uma máquina de um relógio antigo. Quando Zeus formou seu time no Olimpo, a ideia era que a justiça mantivesse o Cosmo em sua perfeita ordem, que ela se encarregaria de que nada destoasse do logos. Bastaram alguns séculos e algumas boas lentes para percebermos que ele é infinito e não tem nada de organizado, é o próprio caos em escala imensurável. Dessa forma, a justiça não é possível, salvo a individual, da própria consciência.

Depois de tantas constatações e pedaços arrancados, não tem outro jeito, a não ser se recolher, assimilar e voltar renovado. Expectativas e histórias da carochinha? Nunca mais!

Quando o Eremita se recolhe parece que abandona o mundo, de fato é o que faz temporariamente, porém, o que realmente abandona são todas as expectativas em relação ao mundo. A sua última desilusão foi a Justiça, a partir de agora desiludido, no bom sentido, porque somente a desilusão mostra a verdade (que não existe verdade), passa a se encontrar.

Desde que nascemos somos para fora e Ele descobriu que essa não é a melhor maneira de viver. Inclusive, já entendeu que nem o que está vendo é o que realmente acontece, é na verdade o que ele projeta no mundo com suas ilusões de como o mundo deveria ser.

 Para ver o mundo, precisará ver a si.

 Tudo é uma representação, vemos o mundo metaforicamente. Quando vemos o mundo, essa é uma visão védica, vemos a capa do mundo, quando usamos nossos sentidos vemos a superfície do mundo. A medida que vamos nos interiorizando, são quatro estados, primeiro é esse dos sentidos, estamos vendo a capa do mundo, depois vem o segundo estágio chamado “sono”, que é quando em uma interiorização maior, fazemos uma alegoria em relação ao sono mesmo, mas um sono de interiorização em que começamos a aumentar nossa realidade interna através até das nossas próprias imaginações, depois vem o terceiro estágio que é o “sono profundo” que é o sono de sonhos, nessa parte do sono não tem separação entre nós e o mundo, ou seja, quando mais vamos nos interiorizando mais iremos realmente vendo o mundo além da capa.

Para que realmente entendamos a realidade, precisamos entender a nossa interioridade, é a frase de Jung que se tornou famosa: “Quem olha para fora, sonha; quem olha para dentro, acorda”.

 O Eremita chega a essa conclusão, por isso foi necessário se retirar para conhecer a sua interioridade e quando volta, muda completamente porque volta outro, aquele que conhece seu mundo interior, que se completará na carta chamada “O Mundo”, que representa essa união final com a vida. No estágio do Eremita, alcançou um certo padrão de autoconhecimento, de uma visão completamente diferente da vida. A sua relação com o exterior termina na Justiça, a partir de então irá trabalhar outras coisas, as mudanças, os apegos, vai se aprofundando cada vez mais, até entender-se completamente. Se o “Eremita” é a nona etapa e “O Mundo” a vigésima primeira, ainda há o que aprender, sempre haverá!

Nós e o mundo estamos em caos, o mundo está sempre em nós e estamos junto dele e através dessa desordem nós nos recompomos em cada nova fase, por isso não tem como não passar pela desordem, ela é essa necessidade de arrancar pedaços que nada mais tem a ver conosco ou coisas que percebemos que nunca existiram, só na nossa fértil imaginação.

Cada momento de nossa vida tem um tempo e esses tempos não são regulares, a cada fase ganhamos conhecimento e ela tem começo, meio e fim. A ordem manda que quando terminarmos cada fase, que sigamos para outra, mas muitas vezes gostamos da fase em que estamos, porque já a dominamos e estamos seguros, então vamos para a próxima fase empurrados, saímos da zona de conforto na marra, naquilo que chamamos de crise.

O processo do mundo de impermanência nos empurra, ou vamos por vontade própria, o que ninguém faz, ou vamos no desespero, na crise, esse é o processo entrópico do cosmos e do caos. A cada crise quando bem vivida, ficamos mais elevados, mais maduros. A pergunta é: por que vamos no sofrimento? Porque somos mamíferos e para sobreviver preferimos o conhecido. Lembre-se que temos dois impulsos: de sobrevivência e de vida. O impulso de vida nos empurra para o novo e o impulso de sobrevivência (medo), quer fiquemos onde já conhecemos, sua preocupação não está se estamos felizes e sim se estamos sobrevivendo.

 Somos seres mamíferos, esquecemos isso com uma grande facilidade e não me canso de repetir. Será mais fácil quando nos vermos como mamíferos de grande potencial, ao invés de seres elevados, achamo-nos transcendentais, praticamente deuses, a fonte da criação divina, mas somos 1% diferentes dos macacos e isso é fato científico. Como mamíferos temos medo de mudar e perdemos esse medo quando não aguentamos mais, então não mudamos, somos levados pela “força do vento”.

O processo do caos é condição para a formação do eu, da individualidade, por isso que o mundo é caos, quando estamos bem, estamos em ordem no caos. Quem somos nós? Somos alguém que, quando está em ordem no caos, tem uma identidade. Estamos passando de fase, mas não queremos, é confortável ficar onde conhecemos. Vamos entrando em desordem, em processo de entropia, o que poderia acontecer de forma fácil, fazemos ser doído, porém iremos de qualquer jeito, por isso que toda crise sempre é uma mudança de processo evolutivo. Quanto mais a pessoa se mantém onde está, mais sofre.

Minha opinião é que mais de 95% das crises emocionais são processos evolutivos que não se confirmam, a pessoa precisa avançar, mas não está conseguindo fazer essa transposição. Isso acontece porque tem medo daquilo que aquela pessoa que será poderá fazer, tem medo dela mesma, não se conhece agora e tem medo de não conhecer o que ela será depois de mudada. Talvez também pense que terá que fazer outras coisas que hoje não quer fazer. O Eremita atingiu o primeiro passo da iluminação, que é perceber que é Ele e com Ele, não tem nada a ver com o mundo que sempre foi e será um conjunto de vários tipos de vida que se movem simultaneamente.

Estudar o Tarô é estudar as etapas de um caminho longo, cheio de descobertas, desilusões e perdas. Mas não se preocupe, tudo que você perderá nada mais é do que um excesso, como se estivéssemos, sem perceber, com 5 calças e 15 camisas.

O Eremita já retirou algumas peças desnecessárias, mas ele ainda tem muito que aprender, mas já é de longe um outro ser, que se tornou humano. Como dizia Joseph Campbell , humanidade é uma possibilidade, ninguém nasce com esse status. Só com esforço se transforma 1% em 10%. E o mais engraçado que é tirando, deixando mais leve que a mudança acontece.

Ele sempre aparecerá como um velho, que sempre representa quem aprendeu com o tempo, com uma luz na mão. Isso mostra que parte da escuridão acabou, mas essa luz não veio de fora, nunca vem, mas isso eu tenho certeza que você já percebeu.

Wanderley e a invisibilidade

Perdi tudo doutor, tudo!

– Me explique melhor, o que é esse “tudo” que você diz que perdeu?

Tudo é tudo! É como se, simplesmente, deixasse de existir. Nem no meu próprio apartamento posso voltar. Precisarei de ajuda até para isso! Sabe, tenho 53 anos e isso tudo é tão irreal, mesmo para mim que já vivi meio século... Não basta nem dizer que eu sou eu. Acabei de vir do banco e a moça que me cuida da minha conta há muitos anos não pode me ajudar. Eu disse: Você sabe que eu sou eu! Ela respondeu que sabia, mas que não bastava, mesmo sabendo que eu era eu.

   O terapeuta respeitou o silêncio, parecia que estava diante de uma grave crise de identidade. Revolveu não fazer mais perguntas e esperar. O cliente, ainda com o olhar vazio, estava tentando colocar isso tudo dentro da vida real.  Depois de alguns segundos, fitou os olhos do terapeuta e prosseguiu:

– Estou com fome. São 18 horas agora e estou só com o café da manhã que tomei em casa. Ainda terei que voltar a pé, mas que bom que o senhor me atendeu doutor. É tudo tão sem sentido.

– Você não almoçou, por quê?

Não tinha como pagar.

– Não tinha dinheiro?

Claro que tinha, como tenho para estar aqui.

O terapeuta não podia adiar novas perguntas, estava também ele sem entender o que estava acontecendo. Como profissional, não poderia deixar o cliente sair do consultório sem alguma melhora ou entendimento.

– Tudo que você falou até agora está confuso. O que ocorreu no banco, de não poder entrar em seu apartamento, o fato de não ter almoçado mesmo tendo dinheiro e estar agora com fome. Seja mais específico em me dizer o que está acontecendo. Você não sabe quem é, perdeu a memória?

– Claro que sei quem sou e muito bem! Mas é como não existisse para a mundo desde hoje pela manhã. Descobri que não basta simplesmente existir, já não é mais suficiente.

– Mas o que, afinal, o que aconteceu hoje pela manhã que lhe trouxe tanto incômodo e a fazer essas reflexões existenciais. Pelo visto, você gosta de filosofia?

Não doutor, nunca me interessei por filosofia. Sempre achei que sabia quem era e até achava esse negócio de autoconhecimento bobagem. Todo mundo sabe quem é!

O terapeuta preferiu não adentrar ao tema. O tempo estava passando e não era hora de explicar o que Sócrates queria com suas perguntas. Precisariam de uma sessão só para isso e ele ainda não tinha compreendido nada sobre o que estava atormentando aquele homem. Então, decidiu dizer:

– Podemos então deixar o assunto da filosofia para outro dia, caso você resolva voltar. Quero que me diga o que houve para que possa atentar ajudá-lo.

Eu perdi, doutor, simplesmente perdi! Sempre fui um cara esquecido. Sempre temi esquecer as coisas desde a escola. Sabia que com dez anos já tinha uma agenda? Minha mãe dizia que era estabanado e sempre teria problemas. Ela tinha razão. Mães sempre sabem não é doutor?

– Sim, mas, por favor, o que aconteceu, o que o senhor diz que perdeu quando disse que tinha deixado de existir?

O cliente olhou para baixo, parecia exausto.

Descobri que não sou o Wanderley que sempre pensava que era. Não adianta ser o Wanderley, não basta!

– Por que não basta Wanderley?

– De nada adianta ser o Wanderley, ter um apartamento, uma conta no banco. Mesmo agora, ser quem sou de nada vai adiantar.

– Por que Wanderley?

Perdi um papel doutor, sempre estava na minha carteira e, simplesmente, perdi.

– O que tinha nesse papel Wanderley?

Wanderley notou assustado que gotas de suor brotavam da testa do terapeuta.

Perdi o papel onde anoto todas as minhas senhas, todas estavam lá. Não pude tirar dinheiro do banco, não lembrava da senha dos cartões, de nenhum deles para pagar o almoço, também não lembro da senha do aplicativo para chamar o Uber para voltar para casa. Também não sei de cabeça a senha da porta do prédio onde moro. Sou estabanado, muito estabanado! De que adianta ser Wanderley, sem as senhas? Tem senhas de quatro, seis, oito números. Outras que tem letras e números, letras maiúsculas e minúsculas. Tudo pede senhas “fortes” e essas são tão difíceis de lembrar, precisam de números, letras, caracteres, impossível lembrar, não consigo! E nenhuma deixa colocar a data de nascimento, que seria a mais fácil para mim, já que nunca esqueço o dia que nasci. Essa ninguém esquece, não é doutor?

Wanderley não percebeu, mas o terapeuta já não estava mais ouvindo.

– Doutor, o senhor acha que com essa tecnologia toda, daqui a pouco também teremos números minúsculos?

O terapeuta estava, agora, ele, atônito!

Doutor, doutor…

– Sim Wanderley, voltando do transe que estava, fale.

Posso pagar a consulta quando achar o papel ou refizer as senhas?

Eternidade, para quê?

“O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel”.

                                              Platão

“Nós somos cidadãos da eternidade”.

                                           Fiódor Dostoiévski

Foi com a chegada do cristianismo que surgiu no ocidente a ideia de permanência da identidade após a morte. Na época, o que se acreditava, era que, ou éramos compostos de átomos e vazio (ler artigo “Demócrito, o quântico”), ou que nossa alma retornava ao mundo das ideias sugerido por Platão de onde viemos para esse mundo de formas e imperfeições.

Querer continuar a “viver”, mais que um desejo ou medo de desaparecer sempre foi resultado dos nossos apegos a coisas e pessoas que, por comporem nossa identidade, são a razão de existirmos. Em outras palavras, somos nossas relações. Continuar nossos relacionamentos em outro mundo nada mais é do que querer continuar a ser quem somos. Chega ser engraçado que pessoas com vidas sofridas e cheias de problemas de toda ordem, não querem ser outra pessoa nessa próxima vida. Sofrimento e dor também geram pego.

Na dúvida, como bem diz Saramago em seu ótimo livro “Todos os nomes”, escrevemos nomes em lápides, quase indestrutíveis a passagem do tempo. Tudo com objetivo de sermos, pelo menos, uma lembrança que teima em continuar.

Em muitos outros textos, lembrei que esse tipo de interesse em vidas futuras, tem um efeito colateral irrecuperável que é a perda de foco, interesse e vontade de melhorarmos ou vivermos melhor essa vida presente, inquestionavelmente verdadeira. Adiar planos ou realizações, também explica um pouco de preguiça e vontade de arredar algumas pedras pesadas, que preferimos atribuir ao carma ou outra fantasia. Mas, quando isso é uma escolha consciente, longe de ser um problema, é um exercício de decisão, de saber por que dissemos um sim ou um não. Fazer da vida, algo que estamos longe de entender pela sua complexidade, algo tão simples como sofrer agora e ter créditos depois, beira um pouco de irresponsabilidade existencial, mas o medo sempre é o pano de fundo desse triste enredo.

Se a vida são os encontros e troca de afetos, busca de crescimento, pensar, agir e ser diferente, então Viver é um ato subversivo em essência, já que a previsibilidade é o que se busca para que o rebanho não se disperse. Como bem disse Foucault, sempre teremos um padre, psiquiatra ou delegado para dar conta de nos trazer de novo para a obediência.

O ineditismo da vida, movida pelo verdadeiro desejo (ver texto anterior “Spinoza e o desejo”), não necessita que se precise viver novamente. Afinal, quer queiramos ou não, sempre que nos relacionamos com a vida, e isso acontece sempre, estamos alterando a realidade com a nossa presença. Seja o que fazemos, dizemos ou nos verem ou imaginarem, provocamos transformações na realidade que repercutirão eternamente, já que o mundo não será o mesmo depois de nós. Como todos, chegamos “in media rés”, ou seja, no meio do que já existe, que assumimos como verdadeiro e seguimos dali em frente com o tempero da nossa existência.

Ninguém passa em branco, mesmo que faça o melhor esforço para tal, já que sempre despertará, pelo menos, curiosidade sobre o motivo dessa pessoa ser tão ausente do mundo e, alguém sempre poderá achar que isso é uma boa política. Assim, mesmo a interpretação que as pessoas fazem de nós, que pode estar longe da realidade, já uma herança que deixamos. Somos então capazes de influenciar o mundo não só pelo que somos, mas pelo que se imagina que somos.

Nossas ações, aquilo que fizemos, vivemos, nos alegramos e mesmo o que nos entristece constrói essa jornada e, de alguma forma, a verdadeira eternidade (além dos genes) serão esses ecos que deixamos no mundo e nas pessoas voluntariamente ou não.

Quando passamos por ruas de cidades onde não moramos, quantos nomes e vidas que, de alguma forma, mudaram aquele lugar que a cidade se preocupou em não esquecer? Onde moramos, alguns são famosos e sabemos sua origem, e outros nem tanto. Muitas vezes, passamos pela rua que leva um nome que nos é indiferente, não temos ideia do que aquela pessoa fez que afetou esse lugar. A eternidade está em todos os lados! Já estamos nela, já que tudo que existiu antes, existe e existirá será o resultado da ação de pessoas. Na verdade, ninguém nunca morreu, já que sua marca, seja qual foi, ficou.

Nos preocupamos demais, perdemos tempo demais em querer saber se viveremos novamente, sobre a vida que já vivemos antes dessa e deixamos de perceber a realidade. Praticamos rituais e fazendo ações que buscam garantir essa possibilidade tão incerta em troca de avançarmos naquilo que é o mais verdadeiro de tudo.

Adoramos o mistério e o invisível, já que são ótimas telas onde podemos projetar o motivo de nossos medos e adiamentos. Queremos controlar o incontrolável, prever o imprevisível, subindo contra a força desse rio gigantesco chamado vida, quando poderíamos aproveitar a correnteza, fazendo sim nosso percurso, assinando a autoria da nossa existência naquilo que nos é possível. Para isso, simplesmente parar de brigar, de lutar uma luta que nem percebemos que estamos sós no ringue e que conseguimos, ainda assim, perder, nocauteados pela tristeza e a ansiedade. De uma lado, a tristeza, de sempre esperarmos que a vida deveria ser diferente, de outro, o medo que aconteça o que tememos, justamente por nunca ser como esperamos. Esse é o círculo vicioso do sofrimento.

A eternidade nunca foi um tempo contínuo, mas a ausência do que chamamos “tempo”, diferença entre o nascer e o morrer de cada um. Como bem diz o poeta Mário Quintana, a eternidade é um relógio sem ponteiros. Quando estamos “vivos”, exercitando nosso desejo, sendo causa de si mesmo, não lembramos do tempo, do passado ou futuro, já que tempo e vida são coisas muito diferentes.

Ser eterno é obrigatório por fazer parte do mundo, buscar permanecer além da vida já é desnecessário. Cuide das marcas que sua existência deixa, elas ficarão de qualquer jeito.

E depois?

Não importa!

Spinoza e o Desejo

“Compreendo pelo nome de desejo, todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com seu variável estado, que não raramente são opostos entre si, em que o homem é arrastado por todos os lados, não sabendo para onde se dirigir”.

                                                                 Spinoza, Ética, III

“…o desejo é o pensar que sobe do coração, ansiando pela vida que lhe falta”.

                                                                  Marilena Chaui

Para começar, busquemos a origem da palavra “desejo”. “Desidero” deriva de “sidero” que é relativo aos astros ou estrelas. Desidero, então, seria ignorar ou deixar de ver as estrelas. Ora, se eram elas, as estrelas, que guiavam os navegantes na antiguidade, deixar de vê-las, é ficar à deriva, por conta da sorte ou da fortuna, termo que significa estar entregue ao acaso, valendo o mesmo raciocínio para as estrelas enquanto informações do destino, tarefa da astrologia. Assim, desejo é estar sendo dominado por forças externas, justamente por estar perdido no caminho que se deve seguir.

Desejo enquanto falta, teve sua definição mais famosa nos escritos de Platão, especificamente no “Banquete”. Ali, o amor é pelo que não temos, que nos falta, por isso com sensação de vazio, carência. Mitologicamente associado a figura de Eros, ou do amor erótico. Como já escrevi em textos anteriores, essa forma de desejar ou amar, é sempre baseada na carência e nunca termina, visto que o conceito de desejar está ligado a não ter. Como uma consequência, se o que me fará feliz é o que me falta, o que tenho, sabidamente não satisfaz ou não tem mais valor.

Mas não só Platão tem esse enfoque. Em outro clássico do pensamento filosófico, Thomas Hobbes escreve no Leviatã: “Do que os homens desejam, se diz também que amam, e que odeiam as coisas pelas quais sentem aversão. De modo que desejo e amor são a mesma coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência do objeto e quando se fala de amor, geralmente, se quer indicar a presença do mesmo”. Sempre é importante ressaltar que esse desejo não é específico dos sentimentos, mas dos bens, ideias e relacionamentos de todas as esferas.

 Já nas relações afetivas, de forma direta, desejo é bem definido pela antiga frase, que Marilena Chaui traz em seu livro, bibliografia desse texto, onde diz: “Forma de nossa relação originária com o outro, o desejo é a relação peculiar porque, afinal, não desejamos propriamente o outro, mas desejamos ser para ele objeto de desejo. Desejamos ser desejados, donde a célebre definição: o desejo é desejo do desejo do outro”.

Para Aristóteles, desejo é o movimento em busca da perfeição, de um sentido, de um lugar no “Kosmo”. Faltou a Aristóteles, uma informação indisponível em sua época; o Kosmo não é finito nem ordenado como imaginava, a realidade é oposta. Assim, o desejo tem seu fim no aumento da potência do homem, não em encaixá-lo em uma máquina perfeita. O homem, mesmo em constante relação é um universo em si, não uma peça!

Spinoza, então, revê o conceito de desejo e causa uma verdadeira subversão, afirmando que desejo é nossa natureza, nossa essência. Particularmente, sempre resisti a essa ideia de que temos uma “essência”. Como simpatizante do existencialismo, penso que, fora a genética, da qual não escapamos, seja pela altura, o nariz de um jeito ou de outro ou até mesmo a certeza pelo avô e pelo pai, que a calvície será inescapável, somos o que a vida fez conosco e da interpretação que damos a o que nos acontece. Spinoza abriu um clarão na minha percepção, trazendo para o conceito de essência todo sentido. Logo, se desejo é natureza ou essência, não é falta, sempre fez parte, está dentro! Se o desejo do pássaro é voar, do cão de latir, do gato de miar e do limoeiro de produzir limões, nosso desejo é ser mais do que somos. Não desejo o que não tenho mas desejo “ser” cada vez mais!

Desejo pela falta é impotência e servidão, já que está a quem de nossa possibilidade, sendo o homem desejante pela falta claramente controlado por forças externas, controle esse que nunca terá fim, já que o homem é alguém a quem sempre haverá algo a ser preenchido, independente da obtenção de desejos, pois sua natureza é a carência, o vazio da incompletude. É assim que pensavam os Estoicos e os Budistas quando diziam que a saúde é não desejar. Não desejar o desejo da falta é mesmo uma libertação!

Para Spinoza, desejo é uma força, da qual o homem se vale para criar realidades, se expandir, tornar-se outro, por provocar encontros com o mundo que lhe tragam cada vez mais alegria, afeto que em sua filosofia, aumenta a vontade de viver, em ações positivas para si que também alteram o mundo a sua volta. Em outras palavras, se relacionar com a vida de forma positiva, onde a troca com o mundo nos faça mais e melhores. Assim, desejo é interior, não movido externamente. O desejo não será suprido externamente, mas internamente e isso faz toda diferença. Desejo pela falta faz rodar a economia, riqueza, produção e, obviamente, angústia. Desejo gerado pela expansão, gera alegria, liberdade e vida, cada vez mais vida!

Desejo é nossa natureza de nos esforçarmos para o que julgamos útil à nossa conservação e expansão, com o fim de preservar nosso corpo e mente em estado cada vez mais elevado. Assim, não agimos por vontade, como afirma Schopenhauer, mas pela necessidade de nossa natureza desejante de mais alegria, que, posteriormente Nietzsche chamará de “Vontade de potência”. O desejo é a causa eficiente (vindo de nossa natureza), de nossas ações, já que a vida é uma infinita troca de afetos entre o homem e o mundo (cada vez maior e com mais força de nos afetar pela tecnologia), representada por outros corpos, pelas forças naturais e de outras formas de vida. Quer queiramos ou não, estamos em constante relação com o mundo e essa “contabilidade” precisa ser positiva.

Sob esse ponto de vista revolucionário, desejar não é estar dependente de nada, mas é sinônimo de saúde, já que desejamos mais força, expansão e alegria. Spinoza não distingue em sua filosofia nenhuma separação, seja entre a mente e o corpo ou entre o corpo e o mundo, tudo e uma só realidade, em constante busca de conservação e de mais vida, onde nada acontece sem uma causa, sendo portanto, tudo necessário, não podendo nada ser diferente do que é. Assim, não existe culpa, nem livre arbítrio, só existe a vida em essência com suas forças de preservação e expansão. De uma arvore, passando por qualquer ser vivo, tudo no mundo busca “ser” sua natureza, desejando ser mais forte, perseverar e conservar-se!

Para pensar, não precisamos parar de desejar, já que é o desejo que faz pensar. Quando o desejo tem origem em nossa própria natureza, somos livres para Spinoza, se sua origem é externa, como manda nossa cultura, somos escravos, prisioneiros da ignorância.

Quando conceitua “Virtude”, Spinoza afirma que é “desejar por nossa própria natureza”, com objetivo de aumentar nossa potência, ou vontade de viver. Com o exercício da virtude, até o próprio conceito de “paixão” muda. Se, normalmente ela é definida como algo que nos domina, nesse caso é uma parte de nós, nos impulsionando cada vez mais para a alegria, vivendo de maneira a estarmos de acordo com a vida, em sintonia com o mundo que o desejo cria, em uma conciliação com a realidade que Spinoza chamará de “beatitude”.

A ideia de desejo spinozana será fundamental para muitas reflexões de Freud e fará parte de muitos dos conceitos estruturais da psicanálise, como o recalque, ira, inveja e outros. Da mesma forma, a contenção da força interna do desejo é parte indispensável para entender o conceito junguiano de “sombra”, por exemplo.

Obviamente que a sociedade, precisa, para a convivência pacífica, ter mecanismos de controle e punição. O desejo em si, como já ressaltei é uma força de expansão ou crescimento, e sua impossibilidade de manifestação sadia pode provocar seu deslocamento para ações danosas contra si e contra outras pessoas. Justamente por isso que, em textos anteriores, disse que a sociedade é sempre um “organismo” prestes a explodir, já que sua natureza é a contenção, já que impõe limites para todos os indivíduos.

Se você acompanha o blog, poderá dizer que já falei muitas vezes de desejo em outros textos onde essa ideia fazia parte do contexto que ali era tratado. Se hoje trato mais especificamente do assunto e, provavelmente, o farei em futuras oportunidades, é por pensar que, se você entender o que é desejo e isso passar a fazer parte da sua vida e ações, talvez não haja mais nada para entender ou aprender.

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Desejo, paixão e ação na ética de Spinoza – Marilena Chaui, Cia das Letras.

O Leviatã – Thomas Hobbes, domínio público

 

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