Filosofia

Sintomas

É minha primeira vez, nunca fiz terapia antes. Por onde começamos doutor?

– Por onde você achar melhor, não temos um roteiro, obrigatoriamente.

Bom, estou aqui por estar me sentindo estranho. Por um lado, não tenho do que me queixar. Minhas coisas estão em ordem, está tudo bem com a família e nos negócios, mas percebo um desconforto difícil de explicar.

– Começou a se sentir assim quando? Perguntou o terapeuta.

Não consigo precisar, é uma sensação, vaga, indefinível. Como tenho ouvido falar muito dessa questão de sentido, propósito e autoconhecimento, pensei ser meu caso. Pensando em sua pergunta, tem algum tempo, talvez um ou dois anos que posso detectar que percebo isso.

– Você está com quantos anos, perguntou o terapeuta enquanto fazia anotações.

Fiz quarenta e quatro no começo do ano. Isso tem a ver com a idade?

– Não necessariamente, disse em tom enigmático, enquanto ainda anotava.

Não entendi. Como assim “não necessariamente”?

O terapeuta não respondeu.

Entendi, quer me fazer pensar, por isso não responde. Pensei que poderia ter a ver com meia idade. Mas não é só comigo, pelo visto. Esses assuntos estão na moda, pode ser uma questão desse momento que estamos vivendo.

– O sentido da vida e o autoconhecimento estão na moda desde Sócrates, disse o terapeuta olhando para o teto, em tom de divagação.

Mas não me lembro disso nos anos anteriores, pelo visto estava ocupado demais para perceber.

O terapeuta sorriu com o canto da boca.

Você está dizendo que isso tem a ver com estar com mais tempo livre? Quem está muito ocupado não pensa no sentido da vida ou em um propósito? Será que o autoconhecimento é fruto da “oficina do diabo” como dizia minha mãe?

Novamente o terapeuta faz silêncio.

Essas grandes questões são para quem tem tempo? Mas eu conheço gente super ocupada que se preocupa com isso. Querem saber se sua vida está certa? Se estão vivendo como devem?

– Você acha que tem um jeito certo de viver então?

Pensei em vir buscar respostas nessa sessão e só ouço perguntas! Se soubesse não estaria aqui!

 A irritação do paciente era evidente.

– Minha função é, na maioria das vezes, fazer perguntas. Se tivesse as respostas, seria um político ou religioso. Eles têm um jeito “certo”, você não acha?

Mais uma pergunta… Concordo com isso, mas não existe um jeito de viver que satisfaça a todos?

– Se fossemos todos iguais, poderia.

Entendo, então não tem um jeito certo. Verdade, as religiões têm e a sociedade também por nos tratar como iguais. Deve ser no sentido de nos controlar, só pode! Não tinha pensado desse jeito antes. Se fosse assim, não teria tanta gente tomando remédios psiquiátricos, não é? Esse jeito único pode adoecer as pessoas, afinal elas não podem viver de um jeito que seria só delas. É isso?

– Boa reflexão, disse o terapeuta. É uma boa possibilidade essa que você trouxe.

Então, chego à conclusão de que minha insatisfação pode ser eu estar vivendo a vida que querem que eu viva, não a que gostaria de viver, é isso?

– Como seria a vida que gostaria de viver?

Não sei, nunca pensei nisso antes. Agora entendo.

– Entende o quê?

Não vivi, fui “vivido” por crenças que não escolhi. Como nunca pensei em outras formas, esse jeito era o único que poderia ser.

– E por que não pensou em outras formas?

Olhando para baixo, em profunda reflexão:

Porque eu fui conquistando os resultados desse tipo de vida e estava embutido nessa crença que se isso acontecesse me sentira feliz. Se tivesse dado tudo errado, essa questão de buscar o autoconhecimento teria vindo antes? O sentido da vida e tudo mais ganha importância quando não temos resultados ou já temos e descobrimos que está faltando alguma coisa? Só se busca isso para preencher uma vida que se percebe sem sentido, quando se está sofrendo? Não é uma busca voluntária então, é uma ação que só visa trazer vantagens. Mas o que é felicidade então?

– Dentro desse seu raciocínio da diferença entre as pessoas, essa ideia do que seja “felicidade” também não existe, já que cada um pode ter a sua, sendo do jeito que é.

O terapeuta cruzou as pernas e se recostou na poltrona, como se pudesse descansar, já que seu trabalho estava feito!

Entendi, entendi. Você diz que eu vivi uma ilusão esse tempo todo?

– Não disse isso, mas você disse.

Sim, eu sei. Foi tudo errado?

– Foi?

Tudo não, tem coisas legais que aconteceram. Mas me sinto estranho, como se tivesse sido enganado apesar das coisas boas. A escola deveria ter me ajudado a entender. É por isso que andei lendo que querem terminar com o ensino de filosofia e sociologia?

O terapeuta não respondeu.

Você acha que devo voltar, fazer mais sessões?

– Você é quem sabe. Terapia é uma escolha voluntária, uma das poucas.

Engraçado, saio daqui pior e mais confuso que quando cheguei, mas me sinto melhor. Sim, quero voltar, cavar mais fundo nesse assunto.

Enquanto se levantava da cadeira, o terapeuta disse em tom irônico:

-Estar confuso não é ruim. Significa que aquilo que estava “certo”, já não está mais pela reflexão feita. Pense no seguinte; se não existem pessoas iguais, também mudamos o tempo todo, sendo assim, como algo poderia estar “certo” para todos, sem mudar?

Agora quem ficou em silencio foi cliente, pensativo, exposto a última reflexão do dia.

Ao sair do consultório, virou-se e fez sua última pergunta:

Doutor, quem me indicou o senhor disse que você é “esquerdista”, é verdade?

O terapeuta sorriu e fechou a porta.

A Política da Impotência

“O Poder necessita de corpos tristes. O Poder necessita de tristeza porque consegue dominá-la. A Alegria, portanto, é a resistência porque ela não se rende”.

                                                                                        Gilles Deleuze

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Uma vida triste, impotente com pouca alegria não é uma circunstância, sorte ou azar, mas uma política, uma forma de controle. Não existe efeito sem causa, e a tristeza como modo de vida foi uma das mais inteligentes formas de dominação já criadas e mantidas, justamente por se retroalimentar.

Tornar o sofrimento uma purificação ou vantagem futura, desmerecer a vida real em troca de outras mais perfeitas e utópicas, programar a justiça para outra instância não terrena, tornar a exploração um investimento em paraísos etc. A política da tristeza é o maior estelionato já criado em nome da política de rebanho, além de movimentar a roda sempre sedenta do capital.

Tudo começa pelo aprisionamento do desejo, como já tratado em textos anteriores. Torná-lo uma carência constante que nunca pode ser suprida pelo desvio de sua natureza que é a nossa necessidade de evolução que tem a alegria e liberdade como condição, em troca de promessas e símbolos de sucesso com duração cada vez mais efêmera. Depois, investir no medo da não obtenção desses símbolos, da perda de respeito e deterioração da identidade pelo olhar social, criando uma angústia e necessidade de controle dessa mesma angústia, obviamente ficcional, desfocando o olhar de quem deveria querer ser mais forte e conhecedor com novas possibilidades para quem está constantemente com medo e triste.

Existir é desviar-se do que está pronto, como lembra Deleuze.

Nosso desejo nos pede que se torne ação na vida, esse é o “propósito”, viver quem somos em ações concretas e diárias. Quando isso não acontece, o propósito se torna uma vida focada fora de si, no outro. Como levar potência para alguém se estou sem essa potência? Nosso desejo busca essa liberdade de viver quem somos e a política da impotência diz que a realização é fazer a vida do outro melhor, como uma compensação a minha falta de alegria na minha própria vida.

Desejo é criar realidade e isso não se parcela sem jutos no cartão.

Essa tristeza busca ser “solucionada” por mais objetos e compulsões que alimentam a máquina, fazendo-a girar cada vez mais rápido e com alta lucratividade. Bancos e laboratórios farmacêuticos lucram cada vez mais; os primeiros financiando os valores para adquirir os “remédios” que o mercado oferece, e o segundo, com medicamentos de manutenção constante dessa tristeza em níveis suportáveis. Tudo isso justificado pela superstição de uma vida futura mais abundante de paz, sendo resiliente, é só saber aguentar, esperar e conviver com a impotência, garantia de uma pulseira para a área Vip do paraíso.

Para quem não se conforma ou não aguenta, um delegado, padre ou médico, para lembrar que essa política é para iguais, não para indivíduos, como diz Foucault. Esse sistema de domínio não tolera pessoas livres e isso já é assim a séculos. Historicamente, esses “desordeiros” normalmente são eliminados, viram história para serem admirados muito tempo depois de suas mortes. Sobre isso, fiz um vídeo em meu canal no You Tube chamado “O que é ser normal”, que convido a assistir.

No modo ativo de viver, a diferença (individualidade) é sua base, no passivo, é anulada em troca do comum.

É importante estar sempre feliz, confiante, jovem a qualquer custo, competitivo e é claro, empoderado. Buscar empoderamento, por exemplo, nada mais é do que uma constatação de fraqueza no presente e da incapacidade de entendê-la como um modo de vida. Uma sociedade impotente, obviamente, sonha com empoderamento!

Com nosso desejo capturado, passamos a viver à custa de idealizações, salvação e da necessidade do empoderamento. Buscamos o reconhecimento através de redes sociais para sair do óbvio ostracismo por sermos iguais, sem identidade, portanto. Daí, para necessitar de salvação é um passo curto. Caberá a qualquer messias ser potente por nós. Passar a viver na imaginação e na esperança é a receita de continuação da tristeza e da falta de força de criar situações por ato livre. Imaginação e esperança é a combinação de quem já não tem saída, quem tem sua força natural suprimida.

Quando Nietzsche define o “sacerdote” mostra que ele inverte os valores, criando uma ficção como ideal, ele oferecerá um meio para o ressentido “sobreviver”, tornando-se parte de um rebanho que ele cuidará, que estará “salvo”. Mergulhados na tristeza e impotência, o Estado precisa nos proteger na pessoa do tirano de plantão.

Não somos o que se passa conosco, é isso que essa política quer fazer acreditar.

Liberdade é devir, é um vir a ser dos encontros que escolhemos ter com o mundo, onde nosso desejo de alegria se concretize. O previsível, sonho de quem teme, precisa dessa falta se vir a ser, dessa ausência de perspectiva e de um futuro que repete o passado e presente. Não existe uma vida sem tristeza, mas a contabilidade precisa ser positiva. Quando o suicídio se torna uma escalada geométrica é a constatação de um saldo devedor na vida, alguém duvida?

Quantas vezes nos pegamos delirando em um ideal? Medicado ou não, todo delírio mostra um potencial criativo submerso, sendo, portanto, uma realidade virtual. Toda virtualidade é resultado de um concreto frustrante, assim como idealismo é uma desqualificação do que acontece.

Como diz Deleuze, ao desejo nada falta. Essa cultura platônica da carência que dá base a essa política de impotência e subordinação. Quando o mundo fica maior pela informação, quando a tristeza é compartilhada em rede e o medo aumenta, só desejamos parar de sofrer.

Isso nunca acontecerá, até que o que se ensine nas escolas, por exemplo, não seja a manutenção dessa cultura, mas o reforço da diferença e dos potenciais criativos de cada um.  A luta conta a massificação do igual, da uniformidade, defendendo que a diferença é a gênese que cada um precisa experienciar em si e no outro é uma das muitas revoluções necessárias para um futuro com mais alegrias e menos necessidade de compensações e salvação.

Não diga mais “é assim mesmo”, “fazer o quê” ou “vamos confiar”. A vida não precisa ser assim! Faça a pergunta “nietzschiana”: a quem interessa?

Comece a conspirar, aqui e ali na micropolítica da sua própria existência. Faça pequenas revoluções e vá ganhando confiança em escolhas mais livres.

A soma das mudanças é que derrubará a política da impotência!

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Inspiração:

 Anti Édipo , Capitalismo e esquizofrenia – Deleuze e Guattari

Além do bem o do Mal – Nietzsche

Vigiar e Punir – Michel Foucault

Força ou Inteligência?

       “A natureza nunca nos engana; somos sempre nós que nos enganamos.”

                                                                                 Jean-Jacques Russeau

        “Há uma pergunta que me parece dever ser formulada e para a qual não creio que haja resposta: que motivo teria Deus para fazer o universo? Só para que num planeta pequeníssimo de uma galáxia pudesse ter nascido um animal determinado que iria ter um processo evolutivo que chegou a isto?”

                                                                                    José Saramago

Desde os primórdios, o homem se prostra diante da natureza pedindo clemência, por sentir-se fraco diante de tamanha potência do mundo, que, ainda hoje não consegue entender. Ventos, raios, trovões, infestações e tempestades eram vistos como punições divinas e, de joelhos, pedíamos, e ainda pedimos, perdão por sermos somente humanos, frágeis e impotentes.

Nossa incapacidade de entender a natureza nos encaminhou para um raciocínio simples para conter essa sensação de vulnerabilidade; “alguém” comanda tudo isso. Da época dos vários deuses com especialidades (assim como na medicina e no direito, por exemplo), a divindades únicas isso ainda vigora. Incrivelmente, o homem não percebe que a natureza não é inteligente, mas sim uma força que empurra a vida para frente em busca de mais vida, cada vez, mais vida!

A natureza vista com olhos desapaixonados é insana! Milhares ou milhões de espécies já desapareceram por vários motivos e novas vão surgindo. A humana, por exemplo, tem registro de atividade inteligente que datam de 300.000 anos, quando as primeiras pedras foram afiadas com objetivos de facilitar as atividades. Ou seja, começamos a usar nossas capacidades ontem!

Mesmo com toda tecnologia desenvolvida a vida nos parece um mistério, já que sua força não tem um sentido que possamos controlar ou antever o que sempre nos angustia cada vez mais.

Para que esse entendimento surja, mesmo que desesperadamente, precisamos criar figuras míticas com uma inteligência superior, não afetadas por essa natureza e para que isso seja possível, atribuímos a ele(s) sua criação. Das vontades misteriosas e incompreensíveis chamadas de “linhas tortas” em nosso tempo, continuamos a buscar o consolo de que por trás de tudo exista Alguém que tudo controle e comande por ter sido seu criador, estando, portanto, fora desse mundo onde tudo se move, parado, eterno e infalível.

Quando, antigamente, pela criação de técnicas de cultivo, conseguimos passar a ter tempo para pensar, observávamos as estrelas se moverem durante períodos de tempo cíclicos, percebemos a mudança que sua posição no céu poderia ser prevista, daí, chegamos à conclusão que tudo estava traçado não só para estrelas, mas também para nós com o nome de “destino”, acontecimentos previamente estipulado pela inteligência que tudo comanda, nos trazendo situações que estavam ali para nosso desenvolvimento, purificação ou aperfeiçoamento. A partir daí, começamos a tirar de nós muita das nossas responsabilidades sobre o que nos acontece, o que não deixa de ser uma espécie de entendimento ou aceitação confortável.

Não é fácil estarmos submetidos a uma vida sem sentido, imersos em um processo natural caótico e potente, portanto, imprevisível para nossos limitados sentidos. A inteligência de tudo não está por trás, está em nós e ela existe para aprendermos a conviver e lidar com a força que é a vida, essa força de impulso, criando sentido individual. Como essa força é mais forte e ininteligível, sobram deuses e fé para nos apegarmos a esperança, sempre carente, impotente e ignorante, como nos ensina a filosofia, de que tudo tem um porquê.

Vivemos tempos em que o Absurdo, como definiu Camus, é muito mais provocado pela nossa ignorância do que pela força natural, deixando claro que continuamos crianças, esperando que um pai venha nos tirar das enrascadas e que as forças naturais sejam clementes, “punindo” quem merece e preservando os de bom coração.

Na Vida, dos seres gigantes aos microscópicos, todos buscam mais vida, novas formas se criam e outras desaparecem nesse entrechoque constante desse caos cheio de possibilidades de sentido que nos é oferecido pela Natureza, sempre potente e furiosa em busca de preservação de todos que aqui vivem, excluindo outros, e a ciência buscando as respostas para que elas nos tragam alguma segurança e controle. Nós, humanos, somos desse mundo, temos inteligência que pode parecer que nos separa dele, mas, como podemos observar, ela também pode tornar-se destruição e medo.

Provavelmente, um dia também desapareceremos, e a vida continuará a se propagar pelo universo infinito que os cientistas dizem estar ainda se expandindo, fruto da grande explosão inicial, belo simbolismo dessa fúria que é o que chamamos de vida. Imaginar tudo isso nos traz a certeza do quanto não sabemos e estamos sempre por um fio, como uma formiga que pode ser esmagada simplesmente por estar sob um peso do que é mais forte que ela.

Quando precisamos acrescentar figuras divinas para a vida, quando precisamos que ela tenha algum sentido, mostra que continuamos a não entender o que se passa. Clamar por um deus, seja qual for, é um atestado de que a vida ainda nos dá mais medo que alegria e desfrute. Infelizmente, precisamos esquecer nossa condição, seja mergulhando nas rotinas ou nos desejos carentes para nos distrairmos do medo da morte e do sofrimento. Ainda vemos a vida como o copo meio vazio.

Nossa inteligência poderia estar a serviço da vida e a vida é força, potência e furor. Se Darwin defendia que sobreviver e perseverar está em nossa capacidade de adaptação, entendendo e sabendo reagir ao meio, Bergson via essa capacidade como criativa, sinal de inteligência superior. Seja como for, somos daqui e ainda não entendemos que a casa onde moramos não nos oferece segurança. Não estamos aqui para nos sentirmos seguros, mas para vivermos, olhando para a vida como um girassol, como ensina Fernando Pessoa*, e isso é sempre muito arriscado!

Olhar para o céu e se ajoelhar, clamar por auxílio e pedir proteção não difere do ursinho de pelúcia que as crianças precisam ter ao seu lado para poder enfrentar o escuro do quarto.

Elas fazem isso por temer o desconhecido e os adultos também, cada um a seu modo.

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Fernando Pessoa – O meu olhar (poema)

O Eu e o Devir

“É absolutamente necessário pular no real, atirar-se nele, mexer-se lá dentro, pois é a única maneira de mudar o mundo. A vida é apenas isso: mudar o mundo, transformá-lo, inventá-lo, revolucioná-lo”.

                          Antonio Negri – De volta, pg. 220

“Reconhecemos o escravo por suas paixões tristes e o homem livre por suas alegrias”.

                          Gilles Deleuze

Autoconhecimento nunca sai de moda desde Sócrates, e talvez valha à pena pensar um pouco de porque isso acontece. Não tenho essa resposta, aliás, perguntas como “quem sou eu”, subsistem há séculos, talvez por nunca existir uma resposta definitiva. Isso acontece não só por sermos diferentes, como prova a biologia, mas por nunca termos um Eu estável que possa ser definido assertivamente, já que isso anularia o princípio da impermanência.

Existimos por nós? Talvez não, já que desde que nos damos conta, precisamos uma diferenciação, uma identidade e ela seguirá os caminhos da comparação, afinidade, oposição e, sempre, da necessidade!

Começamos por ser uma cópia adaptativa de quem nos cria e da cultura em que estamos inseridos. Sobreviver é vital para qualquer mamífero, seja de nossa classe ou de outras com menos recursos. Aprendemos a levantar do chão por vermos os maiores em pé, assim como adquirimos a interpretação do mundo que eles nos transmitem, intencionalmente ou não. Daí elegemos a quem imitar e isso sempre vai longe, quase como um financiamento da casa própria, que carregamos por tanto tempo quanto os resultados nos obrigarem a mudar de “casa”.

Da mesma forma, muitas vezes antes de sermos alguém por si, somos uma oposição a outra pessoa. Construímos uma identidade em não ser quem outra pessoa é e isso é fácil de encontrar entre irmãos e na política. Quem se constrói assim, não é alguém por si, mas sua referência é ser quem um outro não é. Qual o problema? O problema é quando essa identidade negativa não consegue se sustentar por si. Mudar como, já que a base identitária é só uma oposição e nunca uma individualidade?

Vale também para cópias, com objetivo de conseguirmos os resultados que outro consegue. Fazer o que ele faz, usar a roupa, falar como, ter os mesmos adereços etc. Da mesma forma, uma ausência de resultados (inevitável), levará a um beco sem saída, também por não partir de algo próprio. Desse modelo vive o marketing com suas figuras de sucesso, que tem uma identidade reconhecida por todos, coisa que todos querem, já que também somos alguém quando somos reconhecidos pelo olhar do outro. A própria cultura cria seus modelos utópicos de como é o jeito “certo” de viver. Como isso é inatingível, mais insatisfação que nem nos permite perceber que tudo pode estar sendo da melhor forma possível. Precisa piorar para percebermos. Quem nos reconhece também é moldado por todo isso, e é desse olhar, onde sempre estamos “errados” de algum jeito é que constatamos que existimos.

A busca de um “ser”, portanto, precisa de uma referência, para termos os benefícios que precisamos, sempre nos comparando de alguma forma, afinal tudo vem de fora. Quando os prejuízos chegam, os primeiros culpados ou quem tem que mudar são os outros, o modelo cultural utópico que usamos ou o mundo. Aliás, mundo, vida, universo ou qualquer outra metáfora, serve para projetarmos as responsabilidades pela nossa expectativa frustrada de como tudo deveria ser. Quando se descobre que isso tudo nunca existiu, somente nos nossos sonhos herdados, nos deparamos com o que resta; precisamos encontrar em nós essa saída ou mudança. Tudo sempre reativamente, sendo empurrado por dificuldades, perdas e desilusões.

O que queremos descobrir com essa busca atrás de saber quem somos? Apenas uma maneira de voltar a sentir-se bem e, nesse caso, não importa a resposta a essa questão primeira, mas somente se os resultados voltaram a ser obtidos. Quando nos deparamos com a impermanência de tudo, principalmente a nossa, descobrimos que somos sempre algo que “está sendo”, na medida em que já não somos mais o que já passou e estamos sempre querendo ser alguma outra coisa.

E o agora? O poder do agora é a constatação desse vazio de insatisfação, de “não ser”, desse caminho até um horizonte que nunca existe para ser atingido e a caminhada já feita, condiciona, pela experiência, passos inéditos a seguir. Nem sempre o passado explica o futuro, já que não somos mais quem caminhou.

Somos esse transitório de uma identidade volúvel, em comparação com outros, em expectativa, angústia e desse desejo platônico da falta. Também somos, portanto, o que nos falta, o que esperamos encontrar em algum lugar, dentro ou fora de nós que possa trazer essa percepção que temos alguma previsibilidade, nem que seja um mínimo controle.

 Com tudo nos escapando pelas mãos de uma reflexão lúcida nos voltamos para nós em busca de algo que nos seja estável, algum “Eu” original, imaculado, não tocado pela experiência que possa na sua natureza pura e imóvel dizer, afinal, quem somos. Quando isso não é encontrado, partimos para a segunda busca; da “criança” que ficou congelada em algum canto da nossa psique. Aquela criança que só brincava, que não tinha medo (por não conhecer a morte), que se sentia livre e segura. Tudo isso porque tinha algum adulto oferecendo essas condições, claro! Mas será que essa ignorância em relação ao mundo é algo possível de reencontrarmos? Aquela criança já se desiludiu porque a vida a brigou a entrar no ritmo das responsabilidades, de atender por si suas necessidades e de temer o que o futuro possa estar guardando. Não penso que ela, caso exista, possa ajudar o adulto sofrido e preocupado.

A mobilidade de tudo nos assusta, daí alguns buscam na criação ou no seu autor algo que seja sempre imutável. É estranho que qualquer criação não seja parte de seu criador e se a realidade é instável, essa imagem e semelhança é negada, como os cegos o fazem com o sol, como diria Victor Hugo.

Quem sou eu?

Um Eu “que não é”, mas que “está” fluindo com o corpo em constante mudança, com pensamentos muitas vezes negando a ideia que se tem de si, suas inclinações, necessidades, dores e medos em uma vida imprevisível, com um sentido (se tiver) muito aquém de nossa capacidade. A vida nos afeta a todo momento não tendo, nem poderia, um futuro que se possa tocar ou ter a certeza de sua existência.

Quando tudo muda o tempo todo, as definições ou descrições são falhas e provisórias, portanto, é mais do que compreensível nossa necessidade de sanar a incerteza da impermanência com alguma palavra que nos descreva, para que a aflição termine.

Quem sabe, se souber quem sou, saberei o que é o mundo ou a vida, quem sabe o universo e seus deuses? Sócrates fez essa promessa e, como nunca parou de perguntar, ele também não encontrou.

Não há nada a ser encontrado, mas provavelmente para ser vivido pela experiência, vendo esse devir incerto pela sua própria natureza, motivo de preocupação, como algo misterioso em si mesmo, que nem ele mesmo saberia se descrever.

Afinal, como viver sem saber quem somos mergulhados nas improvisações de uma vida que é pura força, onde cada ser busca, movido pela sua natureza, sua afirmação e continuidade?

Abandonando essa busca de querer respostas que nos afastam do simples e ao mesmo tempo complexo processo da vida. O Eu será sempre esse vácuo, inserido na vida que nos molda como o vento faz com a areia da praia, mudando a paisagem constantemente.

O Eu nunca existiu como resposta possível e o autoconhecimento é esse caminhar em direção ao nada. A esse horizonte inalcançável por mais que se caminhe. Correr não adianta, parar nos é impossível já que a vida nos empurra.

Nada a fazer a não ser observar essa mudança constante que somos e, ao invés de se entregar ao medo, quem sabe aproveitar essa curiosidade pode ser mais divertido.

Nada está certo, garantido, estável ou pode ser previsto.

Emocionante, não é mesmo?

Quando Deus foi embora

“O império da transcendência, ao mesmo tempo frágil e agressivo, nunca hesitou em recorrer ao etnocídio, ao genocídio e ao ecocídio para estabelecer sua soberania universal”.

                                                           Eduardo Viveiros de Castro

“O mundo começou sem o homem e terminará sem ele”.

                                                           Lévi-Strauss

Para os que sempre moraram aqui, deus nunca morou em outro lugar, em algum “céu”, “Olimpo” ou esteve fora desse planeta. Para eles, Deus é a soma de toda a vida em seus vários níveis, ou seja, própria natureza da qual fizemos parte, assim como as plantas, outros animais, pedras, clima etc. Para os índios, aborígenes ou nativos, pode escolher, ter uma rocha como irmã, o rio como um pai ou a Terra como mãe faz todo sentido. Interessante que, nessa cultura algumas ideias se assemelham mesmo que separadas por continentes. Uma delas é que, antes de nascermos homens, fomos antes plantas e animais. Diferentes das nossas tradicionais expectativas de vidas passadas em locais charmosos como Europa, Egito e Grécia, sempre estivemos aqui, em estágios anteriores de consciência, daí que vem esse respeito que eles tem pelo meio, essa imanência de sempre sermos daqui, nunca de outro lugar.

Estamos inseridos dentro de um contexto, de uma geografia, é dela que respiramos, bebemos e nos alimentamos. Sem essa natureza ou sistema, morreríamos. Por mais óbvio que isso possa parecer, não é assim que vivemos. Em determinado momento histórico ocorreu o que Karl Jasper chamou de “Era Axial”, que, segundo essa teoria, seria uma mutação intelectual em diversas sociedades eurasiáticas entre os séculos VIII e III antes de Cristo, que gerou o profetismo judaico, a filosofia grega, o budismo indiano etc. Foi a partir daí que nos desconectamos dessa visão integrativa, sendo a partir dessa ideia o homem uma criação à parte, onde nosso planeta está a nosso serviço, para nos desenvolvermos. Daí surgiu o que chamamos de transcendência, que coloca deus fora desse mundo, como um gestor do universo que nos vê do alto, de outro lugar. Zeus o deus da antiga Grécia morava no Olimpo que ficava fora do planeta, onde ele ou seus deuses vinham vez por outra para interferir na nossa vida. Séculos depois, veio o cristianismo que só melhorou essa ideia criando um “céu” administrativo, “paraíso” e o “inferno”, lugares para onde vamos, dependendo do nosso comportamento.

Tudo, nós e o planeta (criados separadamente, como mostra o Gênesis cristão), fomos criados por um Deus, que não morava aqui, estava em outro lugar. Segundo essa visão, tudo que nos cerca está a nosso dispor (fomos criados depois que tudo estava pronto), como se fossemos outra coisa, desconectada por chegar depois. É como se o planeta fosse a casa que o criador nos deu para vivermos. Por trás dessa ideia, como já coloquei em texto anterior, está a “certeza” de que esse deus que mora fora, não vai deixar que nada aconteça a sua suprema criação, que é a sua imagem e semelhança…

Imagino que o caro leitor já tenha ouvido falar nos termos imanência e transcendência que significam estar dentro e fora, respectivamente. como já citei acima. Assim, para os imanentes, Deus nunca esteve fora daqui e fizemos todos parte dele. Para eles, o vento, a chuva, as nuvens sobre a montanha trazem sinais e a Lua é boa conselheira para a agricultura e muitas outras coisas. Estamos integrados, nunca separados!

Já para os transcendentes que tem um Deus que mora em outro lugar, que os vigia, pune e dá graças, nós somos uma coisa e o planeta outra. Assim, fica fácil, destruir a biodiversidade, poluir, matar e depredar em nome do “progresso” que nada mais é que tornar tudo uma mercadoria, para aumentar nosso prazer e fazer a máquina girar pelo consumo.

Se esse homem transcendente, que destrói tudo a sua volta, suicidando-se de várias formas foi a melhor obra dessa criação, fiquei preocupado! E você?

Ser filho de Deus que mora fora é do âmbito da fé, já ser filho dessa natureza é uma certeza inquestionável. Somos água, compostos de substâncias químicas todas disponíveis na natureza, somos feitos de imanência!

Como bem diz Ailton Krenak*: “Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivamente humano, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista”.

Assim, desmatar para fazer um estacionamento tem toda uma lógica que nossos ancestrais, que ainda conseguem sobreviver, olham e não acreditam. Sem problema em poluir um rio, afinal é necessário para alocar os dejetos industriais, grandes queimadas para aumentar os pastos e todos os crimes possíveis em nome das coisas que podemos comprar em dez vezes sem juros no cartão.

Para os imanentes não tem sentido poluir um rio, afinal os peixes vêm dali e a água também. Tudo que pode ser industrializado, aromatizado artificialmente é um substituto para o que precisou ser destruído. Pagamos caro para passarmos um fim de semana ou pequenas férias em lugares “paradisíacos” que mantem sua natureza, suas águas limpas e impedem a matança dos animais da região. Em outras palavras; os transcendentes adoram tirar férias na imanência.

Quando Deus foi colocado fora daqui seus seguidores sentiram-se no direito de, como diz nossa citação de abertura, dizer que raças são melhores e tornar as demais descartáveis, afinal só atrapalham, matar quem acredita em outros deuses e destruir o ambiente em nome da sua ideia, chamada de civilização. Os resultados? Uma sociedade cada vez mais doente, ansiosa, suicida e drogada, que se perde em excessos de todos os tipos por pura falta de conexão, de ritmo.

Como não caminhamos mais, corremos nas folgas, como não tem mais rios e mares saudáveis, nadamos em piscinas com cloro, como não temos tempo, tem o fast food, como não dormimos mais de preocupação, temos os remédios que lhe garantem um sono falso e tantos outros exemplos que poderia listar.

Todos chegamos “agora” se formos levar em conta a existência da espécie humana em relação ao tempo de vida do planeta, mas o pessoal da transcendência pensa que tudo foi feito para seu prazer. A ganância traz cegueira, se não saberiam que milhões de espécies já existiram e desapareceram e somos só mais uma, que por ter o potencial de pensar, veio para dominar, segundo sua crença. O problema, então, é o pensamento! De uns chatos e entraves do progresso, criar e integrar com respeito, tendo a natureza como seu Deus maior, de outros destruir por ambição, chancelados por frases escritas em livros, criados pelos idealizadores dessa ideia nefasta. Se o planeta ainda tiver vida após nossa saída, com certeza se recuperará com esplendor. Durante a pandemia do Covid-19, nos locais onde o isolamento aconteceu e as pessoas ficaram em suas casas, a natureza deus fortes sinais de revigoramento, animais voltaram a circular, as águas se purificaram e o ar aumentou de qualidade, mostrando que nossa presença civilizatória é um atentado à vida.

Tem saída?

Encontrar um meio termo, procurando sair dessa Matrix transcendente, diminuindo o ritmo, respirando melhor, buscando alguma espécie de conexão com o que está a nosso lado. Qualquer ato de respeito a imanência, uma simples caminhada, um copo de água, um tempo para relaxar e estar com outras pessoas que nos fazem bem já ajuda. Não precisa fazer como os índios e conversar com árvores, pedras e rios, apenas pare, e observe sem pressa.

A transcendência, desse deus que mora fora tem muita urgência, projeto e metas, justamente para que não percebamos que diminuir o ritmo e olhar a paisagem e não só pensar em chegar ao objetivo (sempre tem um novo, nunca descansamos), é a saída.

Em algum momento, como diz Jasper, tiramos deus desse mundo e o homem assumiu seu lugar e já que tudo é como se fosse uma empresa, merecemos demissão por incompetência!

O deus imanente fala da vida, o transcendente promete outra vida melhor depois dessa, que nos é roubada enquanto corremos atrás da nossa “cenoura”.

Não tem nada em cima, sempre esteve ao lado!

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*Para saber mais: Ideias para adiar o fim do mundo – Ailton Krenak,  Cia das Letras.

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