Filosofia

A SOLIDÃO

 

 

“Se a demanda do autoconhecimento for desejada pelo destino e recusada, essa atitude negativa pode acabar em morte verdadeira. A demanda não teria chegado à pessoa se ela ainda fosse capaz de guiar para algum atalho promissor. Mas ela está presa a um beco sem saída, do qual somente o autoconhecimento pode arrancá-la.”

                                                            C.G. Jung

 

Há quem diga que a solidão é uma arte esquecida.

O temor de se estar só pode ser visto de algumas formas; uma delas poderia ser o medo de estar ou sentir-se abandonado, o que poderia significar que as pessoas não gostam da nossa companhia, que somos inadequados ou esquisitos. Outra opção pode ter a ver com a ideia de que não nascemos para vivermos em solidão, por sermos animais “sociais”. Quantas pessoas, em momentos de raiva, lançam maldições como essa: “seu destino é ser solitário, ninguém consegue conviver com você!”.

Uma terceira alternativa pode representar o fato de não sermos compreendidos pelos demais, o que nos afastaria do convívio pelo simples fato de falarmos um “outro idioma”, ininteligível pelos outros. Existem tantas outras, mas a chance de se chegar ao autoconhecimento sem passar pela boa convivência consigo mesmo é quase nula.

É interessante observar como em nossos dias tem aumentado o número de pessoas que procuram atividades como retiros, por exemplo, onde faz parte dessa prática muitas horas de solidão e silêncio. Mesmo nos momentos mais angustiados e difíceis de nossas vidas, clamamos para fugirmos ou nos transportarmos para algum lugar, longe de tudo ou de todos, onde possamos encontrar paz. Chega-se ao ponto de, nos momentos de grande tensão, dizermos que precisamos ficar sós, para podermos chegar a alguma espécie de acordo interno sobre a situação que nos aflige. Ficar só, portanto, é bom e saudável, mas sem exageros como manda a receita do “caminho do meio”.

Somos cobrados de alguma forma se queremos ficar sozinhos. Estar só pode significar que nossas companhias não estejam nos fazendo bem, nos trazendo sofrimento, ou até mesmo nos atrapalhando de alguma forma. Nos relacionamentos afetivos, por exemplo, na época da paixão, fundimos nosso “eu” na outra pessoa e só pensamos no “nós”. Passado algum tempo, nosso “eu” volta a clamar por atenção, o que é mais do que normal. Nessa hora, por ignorância, alguns chegam a pensar que não estão gostando mais tanto do seu companheiro(a). O que ocorre, é que estamos voltando ao normal, e a relação saudável passa a se estabelecer em cima de dois “eus” saudáveis e não mais em cima de um “nós” patológico que sufoca a expressão da individualidade.

Nada é mais pessoal e individual que a solidão. Pode até parecer redundante, mas se pensarmos bem, se chega à conclusão que muitas vezes já nos sentimos sozinhos mesmo com pessoas a nossa volta, muitas delas muito chegadas. A solidão que sentimos quando estamos com os outros é completamente diferente da experiência individual. Posso até afirmar que a solidão “acompanhada” é mais dolorosa, justamente por sentirmos isso próximo a pessoas onde esse sentimento não poderia estar acontecendo. Em um artigo intitulado “ego e arquétipo”, Edward Edinger mostra que o significado da palavra “solitário”, no grego original significa “solteiro” ou “unificado”. Como curiosidade ele cita trecho do Evangelho Gnóstico de Tomás: “..Eu (Jesus) digo isto: quando (uma pessoa) se encontra solitária, estará cheia de luz; mas enquanto se encontra dividida estará cheia de trevas.

 Evidente que essa unificação, que nada mais é do que o autoconhecimento, tem como preço o sofrimento, solidão e culpa. Essa culpa vem justamente do paradigma que diz que só estamos completos ou certos, em meio a outras pessoas. A base desse pensamento errôneo é que não estamos inteiros ou completos por nós mesmos, só com alguém ao nosso lado poderemos nos sentir bem e aceitos por todos. Não tem como esquecer o clamor de Sallie Nichols que, ao falar do arquétipo do Eremita (solitário) diz: “Teremos, acaso, aberrado tanto nosso âmago interior de ser, que só existimos em relação aos outros”?

Sem o tempo para si, nossas projeções em relação às outras pessoas e delas sobre nós, vão aos poucos nos afastando de nossa identidade essencial, nos levando a uma infinidade de concessões para estarmos no grupo, querido e respeitado pelos demais.

Sempre digo a meus clientes que a condição básica de bom relacionamento com outras pessoas é um ótimo relacionamento intrapessoal, ou seja, conviver bem consigo e em solidão. É justamente nos momentos que estamos sós que conseguimos avaliar com mais clareza e calma nossos relacionamentos, o que realmente gostamos e queremos para nossa vida, juntando com entendimento nossos “cacos”.

Porém isso precisa ser equilibrado, já que o extremo de não se conseguir estar com os demais, tendo na solidão uma fuga ou solução para relacionamentos frustrados e mal-resolvidos, está longe de ser saudável. A base de tudo é o ponto central entre estar-se bem só e com os demais.

Quando esse ponto é atingido, não se precisa estar longe das pessoas e de todo o caos reinante, já que no silêncio encontramos nosso cosmos, nossa ordem. Ensina-nos a filosofia Zen que no momento que se atinge a auto-percepção, aceitamos a própria vida, por mais simples que seja, cumprindo nossas tarefas, fazendo o que gostamos e administrando muito bem o que fazemos sem gostar tanto assim.

Difícil? Nem tanto, basta querer, fazendo o necessário para chegar lá!

É evidente que quando uma pessoa consegue esse autoconhecimento ela será mesmo uma solitária, já que toda a multidão que a rodeia continua vagando às cegas pelo mundo, comandada por princípios e normas que não só não escolheu, mas que nem pensa sobre eles. Será um solitário blindado por uma identidade completa, em harmonia interior e exterior.

Tirar momentos para si para se “curtir”, fazendo o que gosta no seu ritmo de tempo, saindo da “massa”, se permitindo ser quem se É em total descompromisso. Essa é uma receita para se por em prática e o resultado será um equilíbrio maior, mais tranquilidade e paz interior; precisa mais do que isso?

Curiosamente, nas etapas da evolução, o Eremita, ou aquele que busca a solidão para encontrar a verdade interior, aparece depois do domínio das forças antagônicas interiores (O Carro) e da justiça em relação a si mesmo e aos demais (Justiça). Logo depois desse retiro voluntário vem a mudança inevitável representada pelo arcano da Roda da Fortuna, mostrando a mudança do caminho na existência de quem se arriscou a buscar-se.

Carl Jung dizia que se fugirmos ao chamado dessa introversão, essencial ao nosso desenvolvimento, poderemos encontrar o isolamento forçado de uma moléstia física ou mental. Precisamos partir e voltar, aprendendo a transitar bem entre esse dois mundos: o interno e o externo.

De alguma forma, penso que esse encontro com nossa verdadeira identidade pode representar, porque não, a “jornada do herói” de Campbell. Sairmos sozinhos, vencermos as dificuldades, o medo da solidão, enfrentando nossos “monstros interiores” para voltarmos mais fortes, como heróis de nós mesmos.

Alguns poucos dias por ano, algumas horas por semana, um tempinho todo dia para estar em harmonia, consciente e verdadeiramente lúcido… Lembre que isso não deve ser algo a ser conquistado, mas é o primeiro passo para qualquer verdadeira conquista!

_________________________________________________________________________________

Como podem observar, nesse artigo não tem uma imagem ilustrativa, já que encontrei enorme dificuldade de achar uma onde alguém estivesse solitário e feliz. Isso mostra o paradigma citado acima. Fica então essa bela frase de Fernando Pessoa, que vale por mil imagens.

Suicídio

“O suicídio faz com que os amigos e familiares se sintam seus assassinos.”

Vicent Van Gogh

Esse é um tema difícil, muito pouco abordado em minha opinião. O que pode levar alguém a atentar contra sua própria vida?

Evidente que cada pessoa é um universo, mas existem alguns estudos e estatísticas a respeito sobre as quais poderemos refletir. Um ponto inicial, sobre o qual se tem quase uma unanimidade (quase, porque eu não concordo totalmente), é que o suicídio é resultado de uma perturbação psíquica, ou seja, a pessoa não está de posse de sua razão. Será?

Partindo-se do ponto de vista que temos um instinto natural de preservação da vida, essa teoria é válida, mas e se pensarmos sob o ângulo de quem está desesperado, angustiado e não vê saída? Nesse caso, temos a maioria das pessoas que cometem esses atos. Nessa hora é importante entender que todos os estudos sobre o tema*, demonstram que essa é uma decisão trabalhada internamente por longo tempo. É raro o caso de decidir repentinamente tirar a própria vida, é sempre resultado de um processo. E a razão dessa demora é justamente esse conflito entre a percepção da pessoa de sua situação e o instinto de sobreviver, afinal habitamos um corpo que luta para manter-se vivo.

Durante esse conflito, que pode levar meses ou várias semanas, a pessoa normalmente dá muitas pistas aos amigos e familiares, chegando até a dizer explicitamente que pensa na possibilidade. Nessa hora, normalmente, as pessoas próximas não acreditam que isso acontecerá e não atentam aos sinais.

Nesse ponto é fundamental entender que, das pessoas que cometem suicídio (ou tentam), 80% estão atravessando uma crise depressiva. Portanto, para melhor entendimento, recomendo a leitura do artigo anterior chamado “depressão, o grande vazio”. Em minha opinião, o que faz a pessoa optar pelo suicídio na verdade é um fator temporário. A angústia e a tristeza profunda que se experimenta nessas horas trazem a quem está sofrendo a percepção de que isso nunca acabará. E sempre acaba, mais rapidamente ou não, de acordo com os recursos que se busca para o enfrentamento da depressão. Mesmo a medicação, que não promove a cura na sua base, apenas atenua os sintomas, pode trazer uma sensação de melhora em algumas semanas. O problema é que, quem está passado por isso imaginar seus próximos 20 ou 30 anos com esse sofrimento, nesse caso a morte termina sendo mesmo um alívio. Para alguns terapeutas, uma fuga ou mesmo uma transferência da culpa pelos seus problemas para a família, amigos ou sociedade, como um revide ou mensagem ao seu ambiente.

Poderemos ir um pouco mais a fundo e pensarmos, por exemplo, que nos campos de concentração da 2ª guerra, onde as condições eram sub-humanas tanto no aspecto de condições materiais oferecidas como psicológicas, os índices de suicídios eram baixos, assim como nos países mais ricos, onde o próprio estado oferece uma série de comodidades, os índices são altíssimos. Por quê?

A resposta confirma que a questão não é de “ambiente”, mas de conflito interno. Penso que na sua raiz mais profunda, o suicídio esteja intimamente ligado à tensão entre o que realmente somos e queremos viver e aquilo que vivemos no dia a dia. Na percepção da pessoa que jamais conseguirá por em prática seus desejos, suas aspirações que, na sua ideia, lhe faria feliz.

Nossa enfermidade essencial é a dualidade! Isso faz com sempre estejamos entre o “certo” e o “errado” que sempre são conceitos ou normas vinda de fora, impostas pela cultura vigente, que pensa o ser humano como massa de manobra, nunca respeitando a individualidade. A busca da “unidade”, conquista evolutiva final, é o fim desse pensamento antagônico que nos coloca, muitas vezes, diante da seguinte questão: Meu desejo não é “certo”, o que quero para mim, para os outros é “errado”, ou todos se colocariam contra mim, etc.

Thorwald Dethlefsen e Rüdiger Dahlke em seu brilhante livro “A doença como caminho” define essa questão de forma contundente: “Parece-nos muito importante que o homem aprenda a aceitar sua culpa, sem se deixar oprimir pelo peso da mesma. A culpa humana tem natureza metafísica, e não é provocada diretamente pelas ações dos homens….A tentativa de fugir do pecado fazendo o bem nos leva a ser desonestos. …O caminho para atingir a unidade, ao contrário, exige mais do que simplesmente fugir ou olhar para o lado. Exige que nos tornemos mais conscientes da dualidade que existe em todas as coisas, sem ter medo de passar pelos conflitos inerentes a natureza humana. O desafio não é redimirmo-nos dos conflitos, mas permitindo-nos vivências. Portanto, é necessário estar sempre questionando nosso sistema de valores fossilizado, e reconhecer que o segredo do mal está, em última análise, no fato de que ele nem sequer existe.”(pg. 52)

Muito mais do que uma alteração na química cerebral, a depressão que leva a pensar que morrer é uma solução para esse conflito mostra que todo problema está sempre na natureza humana que busca a felicidade e chega à conclusão de que ela não é possível. Quando a pessoa perde a capacidade de acreditar, não há porque continuar. Nem todos, ou quase ninguém, tem as condições de buscar um auxílio que tenha uma visão evolutiva da existência. Nossa medicina é somática apenas, ou seja, trata o corpo como algo completo por si só, esquecendo os fatores evolutivos que afetam as emoções e assim por diante. Como disse certa vez Roberto Crema: “Cuidar somente do corpo não diferencia o médico do veterinário”.

A maioria das pessoas fica abandonada a essa visão estreita, a uma psicologia que não contempla a evolução, buscando somente a adaptação, a uma maneira de viver doente, estudando um ser que não se conhece, quando deveria encaminhá-lo a seu potencial evolutivo, ajudando-o a “tornar-se” o que É, como dizia Nietzsche.

Nas últimas décadas, o número de suicídios tem aumentado em mais de 40% e continua crescendo. A cultura que vivemos fomenta a ansiedade, tornando as pessoas cada vez mais angustiadas pelo medo de não conseguirem atingir o patamar de felicidade vendido pela mídia, representado pela aquisição de bens materiais, de relacionamentos afetivos ou corpos hollywoodianos. Os números mostram que a classe média é a mais atingida, ou seja, depois de já ter conquistado o que se exige a felicidade não está presente. E agora? Alcoolismo, drogas, compulsões e depressão, por consequência, é o caminho natural. Pensar seriamente em morrer chega a ser lógico, afinal, a ideia sobre a qual toda a vida foi estruturada foi descoberta como sendo uma grande mentira.

Sentimo-nos culpados por querer ser quem somos, e se isso não está dentro da “cartilha”, dos mandamentos ou da moda, vem a culpa de se sentir inadequado, não compreendido ou taxado como louco ou doente por não aceitar as normas do rebanho e de seus condutores, mais doentes ou simplesmente mais espertos que suas ovelhas. Essa culpa, que com o tempo vai afetando a química do corpo, já que nosso metabolismo acompanha nossa imaginação e pensamentos.

A depressão, que causa mais de 80% dos suicídios, deveria ser tratada simplesmente pelo conceito de que a pessoa não está no seu “rumo” e que a mudança precisa ser feita. Mas não é assim, ela é medicada, anestesiada no seu sintoma que deveria ser ouvido e compreendido como a necessidade de mudar. Mantê-la assim triste por estar distante de si mesma e sem saída, em minha opinião, é a causa da maior parte dos suicídios, ou você já soube de alguém realizado, contente ou que faz o que gosta que tenha se matado?

Os números mostram que a idade média das pessoas que buscam o suicídio está entre os 15 e 44 anos, ou seja, na busca de identidade da adolescência e a “meia” idade, onde já percebemos que tudo que nos foi vendido e pelo que lutamos a vida toda não trouxe o resultado esperado.

Estima-se que se suicidem, em média, 2000 pessoas por dia no mundo, sendo que todas as estatísticas não contemplam as tentativas frustradas nem os casos considerados “acidente” pelas autoridades. Na verdade, os números são bem maiores! Alguns estudos chegam a citar 1.000.000 (um milhão) de suicídios anuais.

Já se chegou à conclusão de que a mídia deve evitar divulgar casos de suicídios, já que eles podem incentivar quem ainda está em dúvida a buscar essa saída. Os números do mercado farmacêutico de remédios para depressão e ansiedade geram bilhões de dólares anuais, movimentando em muito a indústria da saúde, e isso pode explicar porque se fala tão pouco do assunto e as autoridades não fazem do suicídio um caso de saúde pública. O que se considera aceitável, pelos números da Organização Mundial da Saúde, são 4 suicídios anuais para cada cem mil habitantes.

A saída é evolutiva, via a busca pelo autoconhecimento e a realização pessoal, de vivenciar o que se é, e se para isso precisar enfrentar as dificuldades e obstáculos que o ato de estar vivo traz, que se faça! Mas e a coragem de enfrentar inclusive paradigmas religiosos, que na sua maioria, não aceita que se seja “diferente” ou dessa cultura que trata o ser humano só como uma máquina que produz, onde está?

Não existe e nunca existiu algum caminho que seja ruim ou errado. Tudo é “uno” e a divisão é diabólica. Não pode existir um padrão para pessoas, todas diferentes entre si.

Em Shinjinmei, o mais antigo texto do Zen Budismo, diz o seu versículo 22: “Se restar em nós a mais leve ideia de certo e errado, então nosso espírito se perderá na confusão”.

A busca da paz interior (felicidade) está em averiguar o que, para cada um é certo e respeitar a ética mínima do limite do outro. Cada um no seu caminho, na sua estrada!

Por mais que as religiões façam do suicídio um pecado duramente punido, nem mais isso está impedindo cada vez mais os números de aumentarem. Precisamos mudar a abordagem, a maneira de entender o ser humano ou os números não pararão de crescer.

____________________

*Estudos fartamente disponíveis na internet. Como todos, os estudos estatísticos referem-se à maioria ou a média dos casos. Lembrando que a exceção justifica a regra.

Nós que aqui estamos por vós esperamos

Para quem gosta de um documentário de “primeira”, minha indicação dessa semana com certeza o deixará satisfeitos. Documentário brasileiro de 1998, dirigido por Marcelo Masagão, foi premiado no Festival de Gramado em 2000 por sua montagem e no Festival do Recife como melhor filme, melhor roteiro e melhor montagem. E como isso só não bastasse, uma trilha sonora que encaixa perfeitamente na proposta do filme. Porém não é para ser visto de qualquer jeito, precisa que você disponha a ter esses 70 minutos para, com atenção, viajar pelo século XX. Sem diálogos (são mesmo desnecessários), o documentário nos mostra a caminhada da humanidade desde 1900 até o ano 2000 e explica como estamos onde estamos. Se puder, baixe o documentário e guarde em sua biblioteca na pasta “melhores”.

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=maDnJcVbAoQ[/youtube]

O Intermediário

 

   “O universo não foi feito à medida do ser humano, mas tampouco lhe é adverso:  é-lhe indiferente.”

Carl Sagan

Uma leitura um pouco mais atenta do Gênesis poderá aguçar nossa curiosidade sobre um ponto sobre qual tratará nosso artigo dessa semana. Diz o livro que Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo, e que, em cada dia algo foi feito. Resumidamente foi assim:

No princípio Deus criou o céu e a terra, mas como a terra estava sem forma e em trevas, primeiro criou a luz e ficou satisfeito (algumas bíblias trocam por “e viu que era bom”). E assim terminou o primeiro dia.

No segundo dia, Deus separou a terra das águas e ficou satisfeito…

E assim, foram passando os dias onde foram criados os animais, as plantas e, ao final de cada, dia lá estava Deus se dizendo satisfeito com sua criação.

Pois, chegamos ao sexto dia, onde Deus criou o homem e a mulher a sua imagem e semelhança, abençoando-os, pedindo para se multiplicarem e dominarem as criaturas da terra, do mar e as ervas e plantas. Mas, por algum motivo, depois da criação do homem e da mulher, Deus não externou sua satisfação. Por quê? Esqueceu? Tinha outra coisa para criar em outro lugar? Afinal seria muita pretensão nos acharmos a última e melhor criação de Deus, tenho certeza que depois da terra outros milhares, se não bilhões de planetas e galáxias foram criados, maiores que nosso minúsculo planeta.

Se observarmos bem, veremos que de todas as criações de Deus, talvez o homem seja a única que não esteja completa em si mesma. O mar é o mar e isso não muda, assim como nenhuma planta fica diferente de sua natureza. Uma semente de rosa não nos trará um girassol quando florescer, muito menos algum animal excederá sua natureza. Assim, um cachorro, cavalo ou qualquer outro animal nunca será diferente do seu potencial inicial. Existe até um princípio na Cabala que diz que o potencial inicial de qualquer coisa é sempre inversamente proporcional no seu desenvolvimento. Se, por exemplo, observarmos qualquer animal recém-nascido em comparação a um bebê, esse animal parecerá muito mais desenvolvido, já que em poucos dias estará se movendo, comendo sozinho etc. Enquanto isso, o bebê humano se não for cuidado morrerá em poucos dias ou horas, já que nessa fase inicial não tem nenhuma autonomia e é totalmente dependente.

Por outro lado, assim como nenhum animal se supera, o ser humano pode tornar-se desde uma pessoa cruel até mesmo um santo ou iluminado, como foram Buda, Cristo, Mahavir, Maomé entre tantos outros.

Recentemente ao ler uma palestra de Osho, me chamou a atenção ele dizer que o ser humano é um ser “transitório” que não tem as limitações do animal, mas em sua grande maioria não consegue atingir, quase nunca, o último estágio evolutivo possível. Foi nessa hora que me lembrei dessa curiosidade da não manifestação de satisfação de Deus quando da criação do homem. Ele não disse que ficou satisfeito, justamente porque não estava “pronto” ou “acabado” como os animais e as plantas, por exemplo.

Podemos nos tornar tudo que quisermos, desde alguém mal e cruel como nenhum animal é, até mesmo alguém que se dedica a humanidade de corpo e alma como muitas pessoas ditas “santas”, os grandes cientistas e pensadores e como os Mestres espirituais cultuados pela história.

Concordo plenamente com essa ideia e nem precisa ir tão longe; é só observar a história de muitas pessoas consideradas comuns, que fizeram revoluções em suas vidas, só não mudando o nome e a identidade, mas se transformando em pessoas completamente diferentes do que eram antes. Isso demonstra realmente que não estamos prontos, mas em constante aperfeiçoamento, conforme a teoria do bom e velho Darwin, mas também com o potencial inesgotável como “semelhante” ao Criador. Não existe outra maneira de juntarmos a ciência (a teoria evolutiva já provou ser verdadeira, afinal nosso DNA é 98,5% igual ao dos macacos), e a religião pela nossa capacidade de darmos saltos gigantescos sobre nós mesmo a qualquer momento da vida realizando verdadeiros milagres evolutivos.

Deus que, segundo consta, é perfeito em si mesmo não poderia gerar algo imperfeito como o homem, e seu silêncio sobre sua satisfação significa esse potencial que todos temos de nos transformarmos no que quisermos desde que tenhamos a vontade e a ousadia necessária  que as grandes obras necessitam (recomendo aqui a leitura do artigo intitulado “Os quatro pilares da realização”).

Mas, como humanos que somos, habitando um corpo que perecerá, inevitavelmente temos sempre medo de mudarmos pela insegurança que isso traz. E isso é característica de animais e não de deuses que tem a plena consciência de sua eternidade. Estamos sempre transitando entre os opostos, ora com medo, ora, arriscando tudo pela busca de felicidade e da realização. Não dá para discordar que realmente somos algo transitório entre o inferior e o superior.

Justamente por isso, temos épocas ou fases em que nos sentimos sem futuro, apenas sobrevivendo como os animais e, em outros momentos, sonhando e criando como Deuses. Somos os dois, dependendo de onde está nossa consciência: se ligada ao corpo com seus medos ou a eternidade onde todas as possibilidades são possíveis. Nessa hora sempre lembro que as pessoas têm uma mania de se permitirem sofrer até onde não aguentam mais, para só assim, se lançarem em busca de seus sonhos e criarem seus próprios mundos e universos. Não precisa esperar tanto, precisa?

A mitologia, que nos ensina tanta coisa, mostra que heróis como Hércules, Perseu e tantos outros sempre foram filhos de deuses com humanos. Já quando nos fala de sermos dominados pelos instintos, assim como os seres considerados inferiores, as figuras que os simbolizam são sempre uma mescla de homens com animais, como o deus Pan por exemplo, que é metade homem, metade bode.

Acredito ser interessante refletirmos sobre essa essência ambivalente que temos e por onde sempre estamos oscilando, ora para o inferior, ora para o superior. Talvez seja essa nossa grande tarefa a empreender nesse mundo; assumir qual dos dois queremos ser.

Hércules
Deus Pan

A Criatividade

 

“Criar é matar a morte.”

 Romain Rolland

Estive pensando que a criatividade, por ter sua raiz na palavra “criador” não pode ser algo desse mundo, de dualidade onde impera o ego, o criado. Assim, depois de algumas leituras de relatos sobre como algumas obras foram criadas, cheguei à conclusão de que, para termos uma percepção, insight ou ideia criativa, precisamos nos desconectar desse mundo.

Vou relatar alguns exemplos e depois continuamos nossa reflexão sobre esse assunto, mas procure perceber a semelhança nos relatos. Vou citar apenas cinco, poderiam ser muito mais, mas qualquer pesquisa mais a fundo e até mesmo suas experiências pessoais poderão fazer o caro leitor (a)  abraçar essa teoria.

Começamos por Paul McCartney, músico inglês, que em uma bela manhã do ano de 1964 acordou inspirado por um sonho e compôs a música “Yesterday”. Esse sucesso ficou na história e agora você já sabe que essa música tocou primeiro no sonho que ele teve naquela noite.

Passando para o mundo da ciência, temos o caso de Dmitri Mendeleev (1834-1907), químico Russo que realizava estudos sobre os elementos químicos e suas propriedades. Uma noite do ano de 1869 inspirou a organização da Tabela Periódica, o cientista sonhou com um diagrama em que todos os componentes se encaixavam, e criou assim a Tabela Periódica moderna. Graças a Mendeleev os elementos foram organizados em períodos e famílias para facilitar seus estudos.

No mundo das artes, podemos citar o pintor Salvador Dali (1904-1989), que teve todas as suas obras inspiradas em sonhos. Para Dali nos sonhos estamos livres de toda e qualquer amarra e essa liberdade o inspirava e o resultado são suas fantásticas obras que, para mim, não são mesmo desse mundo.

Já, em época remota Arquimedes (287 A.C a 212 A.C), a história conta sobre como ele inventou um método para determinar o volume de um objeto de forma irregular. De acordo com Vitrúvio, uma coroa votiva para um templo tinha sido feita para o Rei Hierão II, que tinha fornecido ouro puro para ser usado, e Arquimedes foi solicitado a determinar se alguma prata tinha sido usada na confecção da coroa pelo possivelmente desonesto ferreiro. Arquimedes tinha que resolver o problema sem danificar a coroa, de forma que ele não poderia derretê-la. Enquanto tomava um banho, ele percebeu que o nível da água na banheira subia enquanto ele entrava, e percebeu que esse efeito poderia ser usado para determinar o volume da coroa. Para efeitos práticos, a água é incompressível, assim a coroa submersa deslocaria uma quantidade de água igual ao seu próprio volume. Dividindo a massa da coroa pelo volume de água deslocada, a densidade da coroa podia ser obtida. Essa densidade seria menor do que a do ouro se metais mais baratos e menos densos tivessem sido adicionados. Arquimedes teria ficado tão animado com sua descoberta que teria esquecido de se vestir e saído nu gritando pelas ruas “Eureka!” (em grego: “εὕρηκα!,” significando “Encontrei!”). O teste foi realizado com sucesso, provando que prata realmente tinha sido misturada.

Outro caso curioso é de Madame Curie que recebeu dois prêmios Nobel e foi a primeira mulher a lecionar na Sorbonne. Conta-se que uma de suas descobertas deu-se de forma “estranha”. Ela deixou suas anotações sobre a mesa do quarto e foi dormir. Na manhã seguinte elas estavam preenchidas e com os problemas todos resolvidos. Depois de investigar se alguém havia entrado ou, como todo o cientista, avaliado racionalmente como aquilo poderia ter acontecido, observou que a letra que completava as análises e teoremas era a sua. Isso a levou a conclusão de que, dormindo, ela levantou da cama e resolveu os intrincados problemas que estavam pendentes de solução.

Mas qual a coincidência nos relatos acima? Em nenhum desses momentos privilegiados, nossos artistas e cientistas estavam de posse do seu ego. O momento era de relaxamento e entrega, seja nos sonhos ou no relaxante banho que Arquimedes tomava em sua banheira. Evidente que, só mesmo quem não está de posse do seu ego sairia gritando nu e molhado pela rua, assim como nos sonhos estamos entregues ao nosso inconsciente, que segundo Jung está ligado ao “todo”, ou seja, a Criação.

Nesses momentos em que “esquecemo-nos de nós mesmos” é que poderemos nos conectar com essa inteligência que cria e permeia todo o universo. Esse abandono nada mais é do que nos afastarmos do que é desse mundo, ou seja, a ansiedade, a expectativa, os desejos e tudo que se baseia em vivermos em um corpo que perece. Quando acessamos esse infinito, essa eternidade que é nossa essência, estamos  em uno com o Todo. Quando criamos, somos deuses, mas para isso precisamos nos desconectar do que é finito e buscarmos o infinito. Tantos outros gênios fazem os mesmos relatos de que, muitas vezes, não estavam “pensando” no assunto quando veio a solução.

Hoje alguns teóricos da física quântica, baseados nos estudos de Jung, afirmam que existe um “campo” onde toda a informação estaria disponível e em determinados momentos, sob algumas condições, esses saberes seriam acessados. O que explica o fato de muitas descobertas terem sido feitas quase que simultaneamente por mais de uma pessoa. Uma descobriu, a informação ficou liberada em nível humano e outros que estavam nessa mesma busca horas, ou poucos dias depois também fizeram a “descoberta”. Talvez o mais famoso exemplo desse tipo de “coincidência” seja da paternidade do cálculo entre Isaac Newton e Leibniz que, cada um a seu modo, chegaram quase que simultaneamente ao mesmo resultado praticamente juntos.  Imagino que devam estar em algum restaurante chique, lá na eternidade, tomando um vinho e ainda discutindo quem chegou primeiro.

Isso tudo para mim significa que só poderemos acessar nossa divindade, se é que posso usar esse nome, quando nos desligarmos desse “eu” vinculado à matéria onde estamos habitando nessa etapa de nossa eternidade.

Todos temos esse tipo de momento em nossa vida, quando nos desligamos e relaxamos e, de repente,  “descobrimos” ou chegamos a alguma definição importante para nossa vida. Isso sempre acontece em momentos de “abandono” desse eu que está sempre com medo, baseado em sua finitude. Até mesmo a sociologia já entende o ócio como criativo como nos mostra o trabalho de Domenico de Masi.

Quer ser Criador (criativo)? Esqueça-se de si mesmo! Divirta-se, relaxe e se preocupe menos. Não precisa ser como Arquimedes e sair pelado pela rua gritando, mas aprenda com ele e com os demais que seu ego nunca vai levá-lo a nenhum outro lugar em que as companhias não sejam as preocupações e as dúvidas. Criar algo assim, angustiado, é mesmo impossível.

É claro que precisamos trabalhar e buscar nossos objetivos, mas o que erroneamente fazemos é colocar nosso lazer em segundo plano como se fosse algo supérfluo. Sempre digo aos meus clientes viciados em trabalho que o descanso e o divertimento é uma forma de trabalhar melhor, de ser criativo em encontrar novas soluções e métodos. Nunca ninguém descobriu nada importante pensando nisso o tempo todo. Nem aquele nome que está na “ponta da língua” conseguimos lembrar se pensamos nisso demais. Precisamos esquecer do assunto, mudar o foco e o nome vem a mente suavemente. Isso vale para tudo.

Até porque é na diversão que a vida mostra seu lado agradável e quem acha que isso não é importante, que só os compromissos contam é sempre uma pessoa com quem não gostamos muito de estar, chata, em outras palavras…

É na alegria (recomendo a leitura de artigo anterior com esse título) que nos desconectamos, rimos e nos “soltamos” e essa palavra diz tudo o que quero transmitir sobre a principal fonte da criatividade.

Bernard Shaw disse certa vez que as pessoas morrem cedo, apesar de serem enterradas muito tempo depois, quase quarenta ou cinquenta anos se passam entre a morte e o funeral. A criatividade pode matar a morte ou fazê-lo ressuscitar.

E você que está lendo esse artigo, permita-me perguntar: está morto ou vivo?

_____________________

Os dados sobre as descobertas foram obtidas no site “Brasil Escola” e “Wikipedia”

Optimized with PageSpeed Ninja