Felicidade

A escolha de Páris

“Numa luta de gregos e troianos

Por Helena, a mulher de Menelau

Conta a história que um cavalo de pau

Terminava uma guerra de dez anos

Menelau, o maior dos espartanos

Venceu Páris, o grande sedutor

Humilhando a família de Heitor

Em defesa da honra caprichosa

Mulher nova, bonita e carinhosa

Faz o homem gemer sem sentir dor

A mulher tem na face dois brilhantes

Condutores fiéis do seu destino

Quem não ama o sorriso feminino

Desconhece a poesia de Cervantes

A bravura dos grandes navegantes

Enfrentando a procela em seu furor

Se não fosse a mulher, mimosa flor

A história seria mentirosa

Mulher nova, bonita e carinhosa

Faz o homem gemer sem sentir dor…

                            Zé Ramalho – Mulher nova, bonita e carinhosa.

A escolha de Páris - Tarô Mitológico - Os Enamorados
Tarô Mitológico – Os Enamorados – A escolha de Páris

Nenhuma mitologia fala tanto a nós ocidentais como a Grega. Não são só uma infinidade de palavras que utilizamos em nosso dia a dia, bem como muitos conceitos e ideias que nunca paramos para pensar de onde vem e que estão introjetados em nós pela cultura.

Seus mitos e histórias, muitos séculos depois, continuam falando de nós e nos influenciando grandemente e, para quem por ela se interessa, trazendo muitas respostas e entendimento.

A história que vou contar é uma dessas que falam do feminino, masculino, e da “fortuna” que costumamos chamar de destino. A guerra de Troia foi narrada pela primeira vez por Homero e, tenho certeza que você lembra daquela história do cavalo de madeira, que foi visto como um presente (hoje dizemos quando se recebe um presente inconveniente é um “presente grego”),  que estava com centenas de soldados escondidos em seu interior que puseram fim a uma longa guerra. A ideia foi de Ulisses, mas tudo começou muito antes de um jeito inesperado…

A história de Paris que contarei será acrescida de “detalhes”, ou uma licença poética, se preferir, vinda do filósofo francês Luc Ferry em seu livro “A sabedoria dos mitos gregos” e desse que vos escreve, afinal, como psicoterapeuta, é sempre uma oportunidade trazer a mitologia para explicar quem e como somos e  entender nossos comportamentos.

Tudo começou em uma festa de casamento de Tétis (uma divindade marinha) e Peleu (um mortal, rei de uma cidade da Tessália), que seriam futuramente os pais de Aquiles, personagem importante na guerra de Tróia. Tétis, como toda mãe de menino, temia que seu filho sofresse e o mergulhou no rio Estige logo após o seu nascimento para que fosse protegido pelas águas sagradas do rio. Claro que precisava segurar a criança, e o fez pelo calcanhar, assim essa parte ficou desprotegida e Aquiles morreria com uma flecha envenenada no calcanhar durante a guerra de Troia, desferida por Pária, filho do rei da Etiópia. A morte de Aquiles nos lembra que nada é seguro e que quem nasce, necessariamente morrerá, independente de toda a proteção ou riqueza que venha a possuir. Além disso, todos temos um ponto frágil, nosso “calcanhar de Aquiles”, onde nosso ego sucumbe, perdemos força e poderemos desmoronar se formos atingidos.

Voltando a casamento, a festa foi prestigiada pelos deuses e deusas do Olimpo e até Zeus compareceu, assim como mortais poderosos, semideuses, ninfas etc. Mas uma deusa foi propositalmente “esquecida” de ser convidada, já que sua presença nunca era bem vinda em qualquer evento. Éris, a deusa da discórdia (é isso que significa seu nome e a palavra oposta em grego é harmonia), foi deixada de lado já que era dia de festa e ninguém queria desentendimentos. Onde ela estava, o ódio e a raiva sempre suplantavam o amor e a alegria. Você conhece alguém assim? Se a resposta for sim, então Éris tem seus seguidores até hoje.

Éris era filha de Zeus e Hera, mas fora desprezada pela mãe por não ser bela e foi daí que ela se dedicou a discórdia como forma de vingança. Se Éris nascesse hoje, faria sucesso em um consultório psicanalítico, onde sua relação com a mãe daria bons anos de análise além de processar a própria mãe por bullyng.

Mas Éris não precisou de convite, foi assim mesmo. Ela não perderia uma ocasião tão propícia para gerar desentendimentos e conflitos.

Ao chegar na festa, Éris coloca na mesa principal, onde todos estavam reunidos um pomo* de ouro onde estava gravado “para a mais bela”,  daí vem a conhecida expressão “pomo da discórdia”.

 Pronto, Eris que sabia como causar problemas, acertou em cheio, tocou na competitividade entre as mulheres! Sejam elas mortais, deusas ou simples mamíferas do reino animal, fêmeas disputam o tempo todo quem desperta mais desejo, afinal, são elas que escolhem os genes, sendo responsáveis diretamente pela manutenção e progresso da raça. Nenhuma fêmea desse ou de outro mundo aceita a segunda posição. Conta a história que todas gritaram em uníssono “É para mim então!” Estava armada a discórdia! Éris, sorria!

Por hierarquia, nenhuma semideusa ou mortal se meteria nessa disputa, as postulantes foram Hera, a esposa de Zeus, a quem ele nada podia negar, Atena (Minerva para os Romanos), filha predileta de Zeus, deusa da sabedoria, inteligência, das artes e da justiça e Afrodite, deusa do amor e da beleza. Como se percebe, não eram concorrentes quaisquer.

Éris, como era de se esperar, pede para Zeus decidir, colocando-o em situação delicada. O grande chefe do olimpo, que de bobo nada tinha, se eximiu de responder, já que sua decisão, seja ela qual fosse, traria imediatamente uma alegria e dois problemas.

Zeus então pede para Hermes, seu ajudante para assuntos complexos, difíceis e desagradáveis, buscar nas redondezas, sem chamar muito atenção, algum jovem inocente para fazer o julgamento. Hermes sai para cumprir sua tarefa e encontra um rapaz que, à primeira vista (aqui é um ensinamento importante sobre julgamentos apressados), era um simples pastor troiano. Mas o rapaz era ninguém menos que Páris, um dos filhos de Príamo, rei de Tróia.

Páris fora abandonado ao nascer pelos pais, pois segundo o oráculo ele seria responsável pela destruição da cidade. Foi salvo por um pastor que se apiedou do recém-nascido e o criou como filho. Se você sabe da história de Édipo (oráculo previu que ele mataria o pai e casaria coma mãe) e Moisés, colocado bebê em uma cesta no rio, pode perceber que, livrar-se de crianças que poderiam trazer problemas era comum na época!

Então, sob a aparência de um jovem camponês, esconde-se um príncipe troiano. Com a ingenuidade típica da juventude, Páris aceita ser o juiz e escolher entre as três mulheres poderosas, a mais bela.

Colocado diante delas, cada uma oferece ao jovem o que representam, para convencê-lo na escolha. Hera, que reina ao lado de Zeus no universo inteiro, promete que, sendo escolhida, ele também teria um reino sem igual na terra.

Atena, deusa da inteligência, garante que, sendo eleita, Páris terá vitória em todas as batalhas.

Afrodite, sussurra ao seu ouvido (ela sabia mesmo como fazer), que, se fosse eleita, ele poderia seduzir a mais bela mulher da terra.

Aqui paramos para duas reflexões, antes da escolha de Páris. A primeira; as mulheres e isso simbolicamente é mostrado nos artifícios para permanecerem belas, lutando contra o tempo, valorizam suas qualidades e escondem o que pode tirar-lhes a competitividade e, como os homens, diante da sedução e do poder da beleza feminina, mudam o parâmetro de suas decisões. Ponto para Freud, que, com certeza, buscou na mitologia sua tese sobre a importância da libido. As ofertas de Atena e Hera eram para uma vida inteira e a de Afrodite era um convite ao prazer imediato. Fica a pergunta; se Páris já tivesse tido a experiência do casamento, teria feito a escolha que fez? Nunca saberemos, e isso vale para a nossa e todas as vidas, não é mesmo?

Pelo que se sabe, Páris não demorou muito a decidir, a emoção é sempre muito veloz. A escolha recaiu em Afrodite que oferecia beleza e sedução. Como bem disse Nietzsche, séculos depois, algo em nós pensa, o corpo!

O problema, é que a mais bela mulher do mundo, Helena, era casada! E seu marido, também não era nenhum desconhecido, aliás não é comum mulheres de exuberante beleza escolherem desconhecidos. Helena era esposa de Menelau rei de Esparta, a mais guerreira das cidades, dona de um exército de dar medo (lembra dos 300 de Esparta, o filme?).

Cabe pensar que Páris, se estivesse em casa dormindo quando Hermes foi a procura de um juiz, teria evitado anos de guerra e milhares de mortes. Então, inspirado ou seduzido por Afrodite, tanto faz, raptou Helena, que obviamente se apaixonou por ele, colocando em guerra Gregos e Troianos. Daí também vem a expressão popular “agradar gregos e troianos” como algo quase impossível.

Foi por causa dessa guerra que Ulisses deixou sua Penélope e o filho Telêmaco para ir lutar e ter a ideia do cavalo de madeira, mas a saga de Ulisses é outra bela história de amor, astúcia e escolhas, ligada a essa, assim como nossa vida é resultado de uma séria de causas que se interligam e que desconhecemos suas origens.

Éris conseguiu o que queria e mais, além de colocar três deusas em discórdia, ganhou de bônus a luta de Páris, o fim do casamento de Menelau, a morte de Aquiles para desespero de sua mãe, Ulisses e suas aventuras depois da guerra para voltar para casa e tantas outras coisas.

No fim, a beleza da mitologia grega é mostrar deuses como quase humanos, com suas falhas, inclinações e até ações inconscientes e reativas, como nos mostra a história da escolha de Páris. Deve ser por isso que falamos deles, contamos e recontamos suas histórias até hoje e continuaremos a fazê-lo por muito tempo. São quase humanos, só a imortalidade nos diferencia e isso só acontece porque morremos. Tudo que se diz ser imortal, só acontece por quem os idolatra morrer.

Deuses que erram e tem falhas tem mais a ver com o que observamos acontecendo todo dia na vida. Já os perfeitos, parados, esses que, se existirem (o que é improvável em um Universo que muda a cada instante), não se metem no nosso mundo, como nos ensinou Epicuro.

Qual o problema de estarmos por conta das circunstâncias e vivendo a maravilha da imperfeição? Só assim poderemos continuar evoluindo, sendo um “devir” de causas desconhecidos e futuro imprevisível. Isso é a Vida, que insistimos em tentar prender com nossos conceitos de bem e mal, justo e injusto. Vida não se prevê, é uma força caótica e transbordante!

A imagem que abre esse texto é do Tarô Mitológico e a escolha de Páris ilustra o arcano dos “Enamorados”, sexta etapa do processo de autoconhecimento. Ali, discutimos nossa capacidade de fazer escolhas e suas consequências, sempre muito difíceis de prever, como sabemos, já que razão e corpo nunca se separam.

Só não esqueça que Éris continua por aí, se deliciando com nossos medos, verdades e disputas imaginárias para termos a ilusão de que dominamos ou controlamos o incontrolável e que nos fazem discordar, discutir e disputar por verdades que nunca existiram!

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*Pomo – pseudofruto formado pelo ovário envolvido pelo receptáculo floral, carnoso e muito desenvolvido, e que é a porção comestível de frutos como por exemplo a Pera e a Maçã. Dicionário online.

Eternidade, para quê?

“O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel”.

                                              Platão

“Nós somos cidadãos da eternidade”.

                                           Fiódor Dostoiévski

Foi com a chegada do cristianismo que surgiu no ocidente a ideia de permanência da identidade após a morte. Na época, o que se acreditava, era que, ou éramos compostos de átomos e vazio (ler artigo “Demócrito, o quântico”), ou que nossa alma retornava ao mundo das ideias sugerido por Platão de onde viemos para esse mundo de formas e imperfeições.

Querer continuar a “viver”, mais que um desejo ou medo de desaparecer sempre foi resultado dos nossos apegos a coisas e pessoas que, por comporem nossa identidade, são a razão de existirmos. Em outras palavras, somos nossas relações. Continuar nossos relacionamentos em outro mundo nada mais é do que querer continuar a ser quem somos. Chega ser engraçado que pessoas com vidas sofridas e cheias de problemas de toda ordem, não querem ser outra pessoa nessa próxima vida. Sofrimento e dor também geram pego.

Na dúvida, como bem diz Saramago em seu ótimo livro “Todos os nomes”, escrevemos nomes em lápides, quase indestrutíveis a passagem do tempo. Tudo com objetivo de sermos, pelo menos, uma lembrança que teima em continuar.

Em muitos outros textos, lembrei que esse tipo de interesse em vidas futuras, tem um efeito colateral irrecuperável que é a perda de foco, interesse e vontade de melhorarmos ou vivermos melhor essa vida presente, inquestionavelmente verdadeira. Adiar planos ou realizações, também explica um pouco de preguiça e vontade de arredar algumas pedras pesadas, que preferimos atribuir ao carma ou outra fantasia. Mas, quando isso é uma escolha consciente, longe de ser um problema, é um exercício de decisão, de saber por que dissemos um sim ou um não. Fazer da vida, algo que estamos longe de entender pela sua complexidade, algo tão simples como sofrer agora e ter créditos depois, beira um pouco de irresponsabilidade existencial, mas o medo sempre é o pano de fundo desse triste enredo.

Se a vida são os encontros e troca de afetos, busca de crescimento, pensar, agir e ser diferente, então Viver é um ato subversivo em essência, já que a previsibilidade é o que se busca para que o rebanho não se disperse. Como bem disse Foucault, sempre teremos um padre, psiquiatra ou delegado para dar conta de nos trazer de novo para a obediência.

O ineditismo da vida, movida pelo verdadeiro desejo (ver texto anterior “Spinoza e o desejo”), não necessita que se precise viver novamente. Afinal, quer queiramos ou não, sempre que nos relacionamos com a vida, e isso acontece sempre, estamos alterando a realidade com a nossa presença. Seja o que fazemos, dizemos ou nos verem ou imaginarem, provocamos transformações na realidade que repercutirão eternamente, já que o mundo não será o mesmo depois de nós. Como todos, chegamos “in media rés”, ou seja, no meio do que já existe, que assumimos como verdadeiro e seguimos dali em frente com o tempero da nossa existência.

Ninguém passa em branco, mesmo que faça o melhor esforço para tal, já que sempre despertará, pelo menos, curiosidade sobre o motivo dessa pessoa ser tão ausente do mundo e, alguém sempre poderá achar que isso é uma boa política. Assim, mesmo a interpretação que as pessoas fazem de nós, que pode estar longe da realidade, já uma herança que deixamos. Somos então capazes de influenciar o mundo não só pelo que somos, mas pelo que se imagina que somos.

Nossas ações, aquilo que fizemos, vivemos, nos alegramos e mesmo o que nos entristece constrói essa jornada e, de alguma forma, a verdadeira eternidade (além dos genes) serão esses ecos que deixamos no mundo e nas pessoas voluntariamente ou não.

Quando passamos por ruas de cidades onde não moramos, quantos nomes e vidas que, de alguma forma, mudaram aquele lugar que a cidade se preocupou em não esquecer? Onde moramos, alguns são famosos e sabemos sua origem, e outros nem tanto. Muitas vezes, passamos pela rua que leva um nome que nos é indiferente, não temos ideia do que aquela pessoa fez que afetou esse lugar. A eternidade está em todos os lados! Já estamos nela, já que tudo que existiu antes, existe e existirá será o resultado da ação de pessoas. Na verdade, ninguém nunca morreu, já que sua marca, seja qual foi, ficou.

Nos preocupamos demais, perdemos tempo demais em querer saber se viveremos novamente, sobre a vida que já vivemos antes dessa e deixamos de perceber a realidade. Praticamos rituais e fazendo ações que buscam garantir essa possibilidade tão incerta em troca de avançarmos naquilo que é o mais verdadeiro de tudo.

Adoramos o mistério e o invisível, já que são ótimas telas onde podemos projetar o motivo de nossos medos e adiamentos. Queremos controlar o incontrolável, prever o imprevisível, subindo contra a força desse rio gigantesco chamado vida, quando poderíamos aproveitar a correnteza, fazendo sim nosso percurso, assinando a autoria da nossa existência naquilo que nos é possível. Para isso, simplesmente parar de brigar, de lutar uma luta que nem percebemos que estamos sós no ringue e que conseguimos, ainda assim, perder, nocauteados pela tristeza e a ansiedade. De uma lado, a tristeza, de sempre esperarmos que a vida deveria ser diferente, de outro, o medo que aconteça o que tememos, justamente por nunca ser como esperamos. Esse é o círculo vicioso do sofrimento.

A eternidade nunca foi um tempo contínuo, mas a ausência do que chamamos “tempo”, diferença entre o nascer e o morrer de cada um. Como bem diz o poeta Mário Quintana, a eternidade é um relógio sem ponteiros. Quando estamos “vivos”, exercitando nosso desejo, sendo causa de si mesmo, não lembramos do tempo, do passado ou futuro, já que tempo e vida são coisas muito diferentes.

Ser eterno é obrigatório por fazer parte do mundo, buscar permanecer além da vida já é desnecessário. Cuide das marcas que sua existência deixa, elas ficarão de qualquer jeito.

E depois?

Não importa!

A maior das utopias*

        “Os que procuram ouro cavam muita terra e acham pouco”.

             Heráclito

A felicidade é a ideia mais idiota já inventada”.

Luc Ferry

No meu canal do You Tube gravei um vídeo com o título “Uma vida cada vez mais veloz”, onde falei sobre o aumento da incerteza, na medida em que nossas necessidades para nos sentirmos ajustados e respeitados pelo meio cultural, exige cada vez mais itens e, esses itens perdem validade cada vez mais rápido. Assim, não são só profissões que estão desaparecendo com o desenvolvimento tecnológico, mas tudo fica sem valor muito rápido e isso traz um alarmante aumento da incerteza com todas suas consequências**.

 Podemos também, utilizarmo-nos do conceito de “desamparo aprendido” do psicólogo Martin Seligman que busca explicar a ansiedade e a depressão como consequência de um conjunto de estímulos negativos/opressores sobre os quais não temos controle nem previsão de um dia termos. Ora, além do já exposto com relação a incerteza, temos, por exemplo, nossos relacionamentos importantes; aqueles onde a ideia de perda ou afastamento nos gera intensa angústia. Relacionamentos esses que começam com quem nos cria, que fazem parte de nossa convivência mais estrutural e dos que vamos criando com o passar da vida, como amigos ou pessoas importantes que se fastam por vários motivos, cônjuges. Esse mesmo descontrole vale para a vida profissional, saúde, etc.

 Só de pensar nisso não há felicidade que aguente, ou há?

Nota-se, principalmente pelas redes sociais, que o conceito de estar bem ou feliz é quase uma lista do mês no supermercado, senão vejamos:

Precisamos chegar ao primeiro milhão cada vez mais cedo. Três décadas atrás, o sonho era uma casa própria, um carro e pagar a faculdade do filho. Hoje, isso precisa andar junto com o carro do ano, o melhor celular, casa ou apartamento na praia dos bem sucedidos, que estejamos sempre plenos, sorrindo, viagens inesquecíveis, finais de semana “perfeitos”,  mais tempo para a família, atividade física para a foto não precisar de retoque, um emprego com propósito, tornar o mundo melhor, honrar os antepassados e, é claro, escrever mil vezes a palavra “gratidão”.

Veja caro leitor, como as vírgulas são importantes, afinal, sem elas, teria acabado seu ar antes de chegar ao final da nossa lista.

Toda essa lista (com certeza esqueci de alguns itens), pode ser o objetivo de uma vida, mas do jeito que estamos, tudo precisa acontecer simultaneamente. Obviamente isso não é e nunca será possível, já que o dia ainda tem só míseras vinte e quatro horas.

Nesse mundo contemporâneo, como talvez só nos primórdios da humanidade, o perigo de não subsistirmos é muito real. Podemos, a qualquer momento, passarmos a experimentar necessidades primárias, já que tudo custa e não ter o meio de compra leva a carência. O mundo globalizado e conectado cria uma necessidade coletiva de comparação. Posso estar bem agora, mas ao ver em uma rede social alguém (parecendo) mais feliz e mais bem sucedido a frustração aparece, já que nos cobramos do motivo de não estarmos vivendo aquela felicidade ou sucesso. Tudo isso é uma grande bobagem, já que ainda nos surpreendemos com pessoas felizes, realizadas e milionárias experimentarem depressão e suicídio. Está na nossa cara e não vemos!

Da mesma forma a precisamos continuar a crescer profissionalmente e socialmente como mostra inquestionável de  sucesso, sempre em comparação. Com tantas necessidades, a tal felicidade, só de pensar, gera cansaço!

Aprendemos com Platão que o amor é algo que nunca acontece por estar ausente, que o mundo perfeito é em outro lugar, logo desejado pela falta e idealizado por não ser confrontado com a realidade, sempre especialista em tirar a graça das fantasias que criamos. Dessa forma, não entendemos que nos viciamos na ausência, na falta e é por isso que a corrida nunca termina. Todo esse roteiro é inalcançável e sempre faltará alguma coisa para a tal felicidade, e essa sensação de frustração tende a tirar o sabor daquilo que foi conseguido. A impossibilidade dessa vida idealizada só gera estresse e suas variáveis como a necessidade de remédios, depressão, pânico etc. Corremos atrás do impossível, que não existe como possibilidade real, afinal, sempre haverá algo que não tenho, que tema, seja o que for.

Na vida real, desconsiderada a idealização, que só serve para girar a máquina do consumo, é feita de erros, tropeços, decepções e recomeços. Como já cansei de escrever, a perfeição não é possível na impermanência, mas não desistimos!

Mesmo que o trabalho tenha o famoso “propósito”, é normal que, vez ou outra, estejamos cansamos e, se pudéssemos, tiraríamos sessenta dias de férias, afinal nada é como queremos em nossos sonhos e temos frustrações mesmo na atividade que nos realiza. Imaginar mais um dia pode trazer a sensação de que nosso corpo pesa toneladas e que não conseguiremos sair da cama. Mas isso não quer dizer que preciso de outra profissão empolgante, só estamos, de vez em quando, de saco cheio.

Recentemente ouvi a história de um senhor que sempre se veste de Papai Noel e se realiza em visitas as crianças no natal levando presentes e doações. Em um dezembro desses, estava “cansado de tudo” e decidiu parar até de ser o “bom velhinho”. Precisou ser duramente convencido a cumprir seu compromisso com as crianças por não ter como ser substituído em cima da hora. Lá foi fazer o que sempre gostou contrariado. A vida nesse mundo é assim, para que negar e fingir que tudo é perfeito?

Podemos ter um bom relacionamento e isso inclui momentos em que estar só está longe de ser uma má ideia, termos raiva ou chateação em relação ao parceiro(a), ficarmos decepcionado dentre outros sentimentos faz parte da vida real. Qual o problema, quem foi o sonhador que espera um relacionamento sem rusgas e uma ou outra decepção? Só quem nunca teve um e apresenta sua teoria dos “dez passos para um casamento feliz” que só pode partir do pressuposto que todos são como o autor imagina em seus devaneios, estando, provavelmente, solteiro.

Todos temos compromissos de trabalho, estudo (que hoje não tem fim para qualquer profissão), precisamos pagar as contas e falta tempo, o dia é curto e no mundo real não dá para termos muitas horas com os filhos, por exemplo. Não esqueça que eles também têm compromisso com a escola, atividades paralelas (pensando no futuro), chegam cansados em casa e não estão a fim de longas conversas. Quantas vezes, nem um simples namoro cabe na vida de um adolescente atualmente? Esse tempo de convivência virá de um esforço para fazê-lo acontecer, mas teremos ocasiões que, talvez, percebamos que nos últimos dias não deu, simplesmente não deu.

Quem não ama seus filhos, mas quem nunca se decepcionou com alguma ação ou escolha e vice-versa? Pais não são heróis e perfeitos, muito menos filhos são anjos que vieram diretamente do paraíso celeste.

O futuro já é hoje, precisa ser antecipado para que essas mudanças cada vez mais rápidas não nos peguem de surpresa. Temos muitos medos! Qual o problema?

São escolhas, todas tem um preço e estar consciente delas é a única possibilidade. Se a lista da felicidade for vencida em sessenta ou setenta anos, temos uma vida que valeu a pena e superou expectativas, mas se alguém tem a ilusão de cumpri-la simultaneamente, esqueça! Isso só fará a frustração e um sentimento de incapacidade tomar conta. Mais um sentimento negativo que nos escapa por simples ignorância de acreditar nas fantasias da felicidade duradoura.

Buscamos, desesperadamente, ser diferente entre quem tem vidas e necessidades iguais e precisamos mostrar isso, por exemplo, em uma foto de um domingo de chuva fazendo algo “sensacional” que desperte inveja e curtidas. Na vida real, tem a tristeza, saudade disso ou daquilo, medo de que algo aconteça ou não, além uma lista secreta de esperanças que jamais publicamos. Se a fizermos, todos descobrirão que a nossa lista da vida ideal está com vários itens sem o devido “Ѵ” de realizado.

Nada, nem ninguém nos faz feliz o tempo todo. Até para perceber felicidade, o contraponto é fundamental. Essa ideia absurda e infantil de estar sempre “feliz” nos desconecta de um senso de realidade. Essa busca insana pode ser apenas um álibi para abandonarmos projetos realmente importantes que precisarão ser acompanhados de alguns abandonos (afinal escolher é também dizer não), além do medo de fracassarmos.

A lista toda não rola e é uma idiotice como bem diz o filósofo francês Luc Ferry. Não é à toa que nosso personagem que ilustra esse texto nunca consegue saborear sua noz, ele é nossa metáfora. O conceito de estar feliz, ligado a ideia de 100% de alegria e ausência de tristezas e decepções não merece outro adjetivo.

Nosso conceito de felicidade é irreal e forçar a barra para ser feliz não vai ajudar. Essa palavra (felicidade) precisa ser reescrita sob o prisma do nosso tempo e não tem como conceituá-la sem levar em conta que momentos difíceis e desagradáveis precisarão fazer parte dessa nova definição, salvo que continuemos a viver de sonhos impossíveis.

Quem sabe, sugere Ferry,  possamos usar a palavra “Serenidade”, sentimento de estar em paz, apesar das incertezas e medos. Isso advém de compreensão, lucidez e consciência de si e do mundo que se vive. Isso é mais do que possível e talvez seja o máximo que chegaremos. Somos animais racionais e isso quer dizer razão e realismo. Nem damos conta disso ainda e queremos transcender a mente, sem sequer entendê-la…

 Escolha o que realmente importa e deixe o resto para outro momento, quando o tempo tornar seja o que for importante. Por hora, respire e relaxe! Veja beleza em não fazer nada ou em algo que não mereça uma postagem, é bom também! Tenha uma vida que possa ser mantida sem o preço da sua saúde física e emocional. Pode ter uns quilos a mais, um passeio a um lugar comum, um carro usado ou um dia na praia levando o almoço de casa, voltando à tardinha. Mas, se for acompanhado de leveza e alegria daquele momento vivido sem medo, parabéns, você chegou lá, mesmo que no outro dia alguns aborrecimentos ocorram. Você vive em mundo assim, não esqueça!

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*Sobre esse tema “Felicidade”, nos próximos dias um vídeo no canal, associando a frase de Luc Ferry com o pensamento de Aristóteles sobre o assunto.

**Tema também trabalhado no texto: “Ilusão, a grande mercadoria”

 Fé: confiança, crédito. Crença nos dogmas de uma religião. Assegurar como verdadeiro.

                                                                 Dicionário Caldas Aulete

Fé (filosofia): É um sentimento de total de crença em algo ou alguém, ainda que não haja nenhum tipo de evidência que comprove a veracidade da proposição em causa.

 

 “A fé é uma conduta de obediência”.

                                                                   Spinoza

fé

Quem já não ouviu que precisa ter fé? Pessoas mais religiosas detectam que a falta de fé é não entregar a situação aflitiva a alguma divindade ou providência. Também aproveitam para dizer que seu coração está vazio, que deveria ter “alguém” morando lá. Aqui no ocidente, ou falta Deus ou Jesus no coração. Quando vejo pessoas famosas no mundo religioso passarem por crises de depressão ou de ansiedade, imagino como eles se sentem quando sua doença é associada a falta de fé. Afinal, se você tem fé, como algo assim poderia acontecer?

Não precisa ser muito entendido para saber que esses problemas não têm a ver com fé, mas fazem cada vez mais parte do mundo em que vivemos. Nossa fé não nos impede de adoecer em um mundo doente, assim como a fé não nos salva de sentir calor no verão, frio no inverno e muito menos transforma a fome em saciedade.

Se a definição da palavra nos fala em confiar, aceitar como verdadeiro algo que estamos longe de ter a comprovação, o que nos cabe perguntar é: qual a finalidade da fé?

Em vários textos anteriores, tenho mostrado, sob diferentes pontos de vista, uma análise dessa angústia que chamo de essencial, que temos desde que descobrimos o que realmente é morrer e a consequente percepção de nossa fragilidade diante da vida.

Somos seres de sentido, precisamos de um propósito, não só para nos esquecermos dessa situação angustiante, mas também para tenhamos a percepção que produzimos realidades que nos tragam uma identidade, ser alguém além da multidão ou rebanho. Mas, o que nunca podemos esquecer, é nossa condição biológica, de termos consciência da presença da morte em nossa vida, na das pessoas que amamos e de nossos apegos, afinal esse não é um mundo de Budas, mas de pessoas que lutam por coisas e, portanto, a elas atribuem valor,  justamente por lutarem para conquistá-las.

Essa condição vulnerável torna nossa mente muito insegura e é essa a origem de nossas preocupações e medos; tememos situações que, se ocorrerem, o sofrimento será tal que podemos não suportar. Um mundo tão complexo ou caótico, tão vasto que nossa capacidade está muito aquém de entendê-lo nos assusta, a insegurança é nossa companheira, como uma sombra que não nos dá folga nem a noite, pelo contrário.

Assim, essa mente insegura, precisa ter uma compreensão desse mundo vasto e sem sentido. Criamos conceitos de certo, errado, justiça e injustiça, dentre tantos, com objetivo de diminuir essa vasta ignorância sobre a realidade. Esse “Absurdo” como definiu Camus, precisa ser entendido (ter razões para as coisas serem como a realidade nos mostra), sem isso não suportaríamos tantas coisas que não fazem sentido. Aí entram, em primeiro lugar as religiões, oferecendo uma maneira de entender tudo que acontece ou deixa de acontecer. Nota-se um esforço hercúleo ou teimoso de fazer o mundo ter sentido, de dar uma lógica para o que chamamos de vida, nossa e dos que nos cercam mais proximamente ou de todo mundo, hoje globalizado.

Temos acesso a absurdos diários que chegam pela internet em incrível velocidade, somada a volatilização de quase tudo, inclusive das relações. A consequência é óbvia; uma superficialização de tudo e aumento da insegurança, como se não bastasse a que temos naturalmente. Não temos mais tempo para aprofundar nada, são tantas demandas que só as farmácias dão conta para alegria dos laboratórios e do mercado, cada vez mais sedento para que compremos coisas com o objetivo de nos sentirmos melhores. Essa reflexão, já consta de outros textos, mas como nem todos leem tudo,  o contexto precisa estar presente.

Esse mundo, que nunca nos levou em conta, se visto friamente, muito maior que nossa capacidade de entendê-lo, como já disse, torna a fé necessária. Necessária porque é justamente ela que nos preencherá os espaços de compreensão que não somos capazes de ter. É como fazer um quadro de um quebra-cabeças de 1500 peças, onde estão faltando várias para que figura tenha sentido e possamos ver a paisagem completa.

Não que essas peças não existam na realidade, não sei, talvez estejam bem diante dos nossos olhos, mas eles não são bons para ver tudo.  Não vemos o ar que respiramos, não cheiramos tão bem quanto qualquer cachorro vira latas e muito menos percebemos o básico do mundo pela perda de nossa conexão com a natureza, além de não paramos de imaginar o tempo todo.

A fé torna-se necessária para pensarmos: Ah! Agora entendi por que essas coisas acontecem…  Aí, como em um supermercado, dá para escolher entre a vontade, ira, sabedoria, amor divino, um carma de uma vida que você viveu e não lembra, dentre tantas outras opções disponíveis. Quando a vida mostra que não é assim, que a explicação se mostra falha ou fracassa rotundamente, trocamos de fé, afinal, a “verdade” pode estar em qualquer lugar, não é mesmo?

Ter fé é aceitar uma explicação que estamos muito longe de comprovar e algumas são tão incríveis, que precisamos  de muita fé para aceitar. O que importa é o resultado, deu certo, ou está dando certo, mantemos!

Eu sei que a razão, por si só, manterá o quebra cabeça incompleto eternamente e não pode ser diferente, já que ela usa o que os sentidos falhos trazem e o que cérebro acumulou de conhecimentos e experiências para chegar a alguma conclusão. A conclusão da razão é simples; não tem como entender, minha lógica não alcança e preciso conviver com essa falta de peças. Nunca vou saber como a paisagem do quebra cabeça é de verdade, então sigo, dando um sentido particular à minha vida, tendo os bons e maus momentos, não contando com nada além dela, sendo um fim em si mesma.

O problema da fé, é que, na grande maioria dos casos, por não ser comprovável e muitas vezes ilógica, o mamífero que somos fica com um “pé atrás”, com uma leve dúvida que só aumenta com os acontecimentos diários, além de nos culparmos por não conseguir essa fé convicta ou como se diz hoje em dia, “raiz”. Com isso a angústia não diminui, e percebemos que o exemplo de Jó não anima ninguém, faz tempo. Essa falta de bom senso de algumas superstições, faz com que muitas pessoas adicionem mais uma ou duas no seu carrinho de fé, totalmente diferentes e antagônicas entre si. O medo faz nos cercamos de possibilidades, se uma estiver errada, já tenho outra em uso ou prática.

A fé não precisa ser só religiosa ou metafísica, pode ser em nossa capacidade de encontrarmos melhores saídas, uma vida mais alegre e buscar seu propósito de fazer alguma diferença. Sermos mais fortes e tornar nosso destino uma necessidade imperiosa. Confiarmos que podemos aprender mais, sentir mais, conhecer mais e ir além de si, transcender! Quando estamos no caminho, “potentes” de vida como diria Nietzsche, a fé em nós, não só supera todas as outras, como as torna desnecessárias.

Como diz Spinoza, a fé cobra o preço da obediência e só fizemos isso esperando alguma coisa em troca, nada é de graça para quem luta para sobreviver.

A fé em si mesmo é de todas a mais possível de se tornar real, já que só precisa que mudemos de atitude e criemos um foco. Em outras palavras; sermos aquela pessoa que queremos ser e para isso precisamos agir, ter ações novas que mostrem que essa pessoa, que antes era fé, agora é real!

A fé em si é temperada por essa dura incompreensão natural desse mundo, grande demais para entender. A razão nunca é fria, como acusam seus detratores, ela é consciente de suas possibilidades e limitações e as aceita, serenamente.

As pessoas de fé, principalmente religiosas, acusam a razão de limitada e a tratam com o desdém de quem tem pena do pobre incauto de coração desabitado.  O que elas lutam para não ver é que estão assentadas em crenças, formas de poder e manipulação que normalmente cobram o preço da anulação de sua individualidade em troca dessa “proteção” que nunca existiu.

Se o caro leitor, durante o começo desse artigo pensou que não acredito na fé, pode perceber que defendo a fé naquilo que pode ser comprovado; em nós, afinal, existimos de verdade e se o Universo não é abundante, como tratei em um vídeo do nosso canal no YouTube ( https://www.youtube.com/watch?v=Nq0rWparpdw&t=81s ), ele é repleto de possibilidades e caminhos. Com certeza, tem um ou mais de um para todos poderem escolher e vivenciá-los!

Para encerrar, essa bela letra do músico Oswaldo Montenegro da canção “A lógica da criação” (https://www.youtube.com/watch?v=7W80ZCHfVKw ):

O mérito é todo dos santos

O erro e o pecado são meus

Mas onde está nossa vontade

Se tudo é vontade de Deus?

 

Apenas não sei ler direito

A lógica da criação

O que vem depois do infinito

E antes da tal explosão?

 

Por que que o tal ser humano

Já nasce sabendo do fim?

E a morte transforma em engano

As flores do seu jardim

 

Por que que Deus cria um filho

Que morre antes do pai?

E não pega em seu braço amoroso

O corpo daquele que cai

 

Se o sexo é tão proibido

Por que ele criou a paixão?

Se é ele que cria o destino

Eu não entendi a equação

 

Se Deus criou o desejo

Por que que é pecado o prazer?

Nos pôs mil palavras na boca

Mas que é proibido diz

 

Porque se existe outra vida

Não mostra pra gente de vez

Por que que nos deixa no escuro

Se a luz ele mesmo que fez?

 

Por que me fez tão errado

Se dele vem a perfeição?

Sabendo ali quieto, calado

Que eu ia criar confusão

 

E a mim que sou tão descuidado

Não resta mais nada a fazer

Apenas dizer que não entendo

Meu Deus, como eu amo você!

O salto de Kierkegaard

                                                     “A angústia é a vertigem da liberdade”.

 “A coisa crucial é encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar a ideia pela qual eu esteja disposto a viver e morrer”.

Kierkegaard

 

 

                                                                                                                                                                                salto 2

Kierkegaard viveu pouco, morreu com apenas 42 anos, mas deixou um pensamento marcante, sendo considerado o primeiro Existencialista. Além de filósofo, foi teólogo, poeta e crítico social. Uma vida voltada ao estudo e reflexão, mesmo com seus amores e aventuras de juventude, seu pensamento faz companhia para muita gente até hoje e persistirá. Tem vidas que ganham sentido após terminarem. Aliás, sobre o Existencialismo, já comentei sobre essa corrente de pensamentos em textos anteriores, bem como no meu canal no Youtube. Hoje, quero falar muito resumidamente da maneira como ele entendeu essa angústia, quase nossa natureza, enquanto seres conscientes da própria finitude e de sua fragilidade diante da vida.

Há quem possa pensar que a angústia tem uma saída que se chama “felicidade”. Em nossa cultura, a felicidade criou para si um problema, já que, para atender os interesses da máquina produtiva, ela está posta em modelos. Ser feliz, em regra geral, é poder adquirir alguns símbolos de sucesso, ter viajado para determinados lugares, já que ninguém demonstra seu sucesso em viagens para lugares que não possam ser “perfeitos” ao fundo de uma foto com um sorriso aberto, ou ter dias também “perfeitos” para compartilhar. Existe um modelo para como deve ser um corpo de alguém feliz, dentre tantas outras exigências que a tecnologia pode fornecer em até dez vezes sem juros.

Se existe um jeito da felicidade ser alcançada, que posso comprar, seja do corpo, passando pelo sorriso, casa, carro etc., ser infeliz é incompetência.

Mesmo com tantos exemplos de felicidade que desabam a cada dia para as drogas, as doenças emocionais e o suicídio de gente que tendo “tudo”, descobriu que a vida não tinha um sentido, mesmo assim os modelos ainda são metas para a maioria. Cartilha cultural atendida, e nada da tal felicidade, sobra o entorpecimento ou a via rápida.

 Kierkegaard percebeu isso desde cedo, até por ser muito introvertido, além dos problemas específicos de seu próprio contexto. Dizem que ele se achava feio, muito magro e desajeitado, deve ter passado o que hoje chamamos de bullying, o que, para um existencialista é um prato cheio para reflexões complexas sobre essa apreensão que nunca nos abandona. Por não ter um “rosto”, podemos projetá-la no próximo desejo de ter ou desfazer. Fora um ou outro momento de esquecimento, como já citei em textos anteriores, ela nos acompanha como uma sombra que não nos deixa mesmo quando a noite chega.

A vida nos traz repetições diárias que, muitas vezes colocam a necessidade antes do sentido, como bem lembra Sísifo, e ficamos ainda mais diminuídos por não conseguirmos sair disso sem um preço tão caro. Preferimos transferir essa luta para os super-heróis do cinema ou nas conquistas improváveis dos mais fracos nos esportes, por exemplo, que nos emocionam. Choramos o que gostaríamos de viver.

Foi então que Kierkegaard, fez em sua filosofia, uma profunda análise e percebeu que as pessoas buscam sua saída de três maneiras diferentes, a maioria passa pelos estágios que descreve e sua reflexão segue, atualíssima, mais de duzentos anos depois. Mas, não ficou só na constatação. Ofereceu uma solução, claro, dentro de sua crença cristã. Falarei resumidamente sobre elas, deixando de fora os exemplos e personagens que ele traz, com objetivo de ser mais conciso. Lembrando que essa é minha interpretação.

O primeiro é o que ele chama de Estágio Estético. São aqueles que buscam fugir da angústia através de sensações, desejos materiais e outras saídas mágicas. Para Kierkegaard a angústia sempre volta, cada vez mais rápido. Isso explica o motivo dos nossos desejos serem crescentes. Quanto mais difícil de ser obtido, ter gerado mais sofrimento ou custado mais caro, a “anestesia” dura um pouco mais. Mas, como nos acostumamos com tudo, o grande sonho de seis meses atrás, hoje já está incorporado à vida, não é mais desejo pois já obtido e quase não o notamos o mais. Aos poucos, a inquietação vem voltando e precisamos definir um novo sonho. Claro que buscá-lo, seja qual for, ajuda, se conseguido, a trazer mais confiança, mas nunca mudará nossa condição essencial.

O segundo é o que ele chama de Estágio Ético. Aqui, a ilusão sai da materialidade e da tecnologia e ruma para o campo da cultura religiosa ou de uma justiça, inerente a esse mundo. Para as pessoas que pensam por esse viés, se for uma pessoa “boa” ou “de bem” essa angústia deixará de existir, já que ela é resultado de um agir correto, seja pela cultura social ou religiosa. Por trás, penso, está uma espécie de “negociação”; faço o “bem”, sou uma pessoa boa, logicamente, serei protegido nessa vida e na que vier depois da morte. O estágio ético é o que rompe mais facilmente, já que, quando acontece alguma coisa, que a pessoa vê como uma injustiça consigo, tende a aumentar a angústia. Nem sendo “bom” tem saída! O grande problema desse tipo de atitude é que, claramente, a pessoa muitas vezes se anula, vive dando a outra face, restringe suas ações e vontades que demarcariam sua identidade, anulando-se em troca de “proteção”. Posso até pensar que esse agir de forma correta, também é uma culpa pelos exageros do estágio anterior. Os bem-intencionados, são destinados a habitar um lugar bem diferente do que esperam por suas boas ações, pelo menos segundo a sabedoria popular. Aceite, curve-se, perdoe infinitamente, aceite o mundo como ele lhe parece, não reaja, não lute, negue-se e espere a recompensa!

Já no Estágio Religioso, quando os anteriores não conseguiram resultado, a saída é encontrar na religião e em suas explicações o final da angústia pelo, finalmente, entender o mundo. As religiões têm em sua metafísica uma explicação para tudo, para os absurdos, para o que não entendemos ainda (milagres), para o que está por vir e uma matemática fascinante: Faça o que dissemos e lhe daremos (depois da morte, sempre) sua recompensa. Todo sofrimento e injustiças (sempre em comparação com uma ilusão do que deveria ser), faz parte desse mundo de provações. Depois da dor, exploração e sofrimento onde sua resignação, modernamente chamada de resiliência, será recompensada com o pagamento somente para os que mereceram e padeceram. Todos os maus pagarão, enquanto os demais, viverão na bem-aventurança, sem corpo, sem luta e sem desejos. Aqui, a lei dos homens pode ser facilmente transgredida por uma lei de Deus. Até por tê-los decepcionado nos estágios anteriores.

Mas Kierkegaard, oferece o quarto caminho; o do Salto da Fé. Aceitar e conviver com a angústia, confiando em Deus, seus desígnios e sua sabedoria infinita. Aqui é a escolha quando os demais estágios falharam e a razão é transcendida pela fé. É um verdadeiro “salto no escuro”, pois, como sabemos, a fé não apresenta nenhuma garantia racional, mas, para Kierkegaard é justamente por isso sua salvação. Esse salto não é passagem, pois não é gradual ou feito de forma suave, como um dar-se conta, é o que sobra para quando nada que foi tentado antes tenha tido resultado. É salto, pois é ruptura de uma antiga atitude perante a vida, baseada em algum raciocínio, para outra.

 Parecido com o “salto”, encontramos o conceito de “beatitude” em Spinoza e “Amor-Fati” em Nietzsche, e “conciliação” em Camus, só que, neles sem a questão religiosa, apenas no que se refere a essa aceitação da vida com seus, para nós, paradoxos. O “salto” parece ser o único ato livre, até então, reagimos ao mundo, seguindo padrões e confiando em receitas prontas, renunciando à liberdade, conceito tão bem trabalhado pelos existencialistas.

Cabe a você, leitor e a mim, decidir se é ato livre ou desespero. Filosofia vive de perguntas, nunca esqueça!

Para os que estudaram sua vida, Kierkegaard parece que passou pelos estágios que descreve e ler mais sobre ele e suas ideias é a sugestão que fica para quem quer saber mais desse pensador, que não saiu de moda e pelo visto, ficará muito tempo nos lembrando que aceitar como somos, desse jeito inquieto e insatisfeito, pode ser o motor para uma vida bem melhor do que aqueles que nossos pensamentos nos mostram, quando a eles estamos entregues.

Se a angústia é a condição em que o homem se percebe em relação a um mundo que não entende, muito menos domina, o desespero é a maneira como nos percebemos diante de nós, inseridos na angústia. Ao dar o Salto de Fé, a fé substitui o desespero pela esperança em Deus, a solidão encontrou amparo.

A questão é:  já vivemos o suficiente para “saltar”? Existe mesmo felicidade?

Se fomos felizes em algum momento e não percebemos, e essa é uma lamentação comum, talvez só falte abrir melhor os olhos, e perceber que nosso problema seja em estar sempre insatisfeito, esperando de nós e da vida sempre outra coisa.

Kierkegaard dizia que algo só seria verdade, se fosse verdade para ele.

Ele encontrou sua saída, mas como as pessoas não se repetem, quem sabe cada um de nós tem uma que lhe caiba, que seja sua verdade, somente para si!

Não somos iguais em nada, quem diz que sim, ofende evidências.

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