Crônica

Hoje

Nenhuma foto, só alguns objetos e lembranças misturadas pelo tempo.

Hoje era dia, não, todo dia é dia de não esquecer. Já não sabia a quanto tempo, mas isso não tinha mais importância. Memórias são imagens em movimento que podemos manter em constante brilho ou dor, as indiferentes vão para o “arquivo morto” dos momentos que não foram importantes. Dizem que não esquecemos nada, mas esquecemos sim, não só do que não chamou atenção, mas também do que já fomos e que não fez muita diferença. Ali não foi o caso, foi como um grande vinho que, depois que se engole, traz um sutil toque amargo. Faz parte da sua raridade esse paradoxo, explica sua exuberância.

Só ele sabia, mais ninguém. Acontecimentos não compartilhados daquele “eu” privado, quem sabe o mais honesto de tantos outros que se moldam às necessidades, medos e caminhos tomados aqui e ali. História que hoje se escreve do mesmo jeito, tendo acontecido ou não. Está certo, afinal o que imaginamos só esqueceu de acontecer como dizia Mario Quintana.

No meio de mais um dia, o dia.

Não havia com quem falar, só lembrar. O tempo passa rápido e parece que foi hoje, a poucas horas atrás. Ainda dá para sentir a garganta apertada do que precisava acontecer, um final  previsto, esperado, inevitável, mas nunca estamos prontos para quando acontece de verdade, quando vira realidade e passa a fazer parte de nós.

Lembranças ritmadas por suspiros de curiosidade para saber o que tempo fez, dali em diante.

Daqui a pouco, precisaria voltar a rotina, o emprego esperava, como sempre. Mas hoje é o dia e se permitiu voltar lentamente, lembrando, quando sempre aos sábados a geografia diminuía e desde o dia anterior o encontro já era vivido intensamente. Foram anos assim, já não lembrava se foram seis, oito. Também não importa mais, tudo passou tão rápido. Se o tempo existisse de verdade, como dizem, teria esquecido ou o nome que se dá quando vira só lembrança, quando parece que nem foi a pessoa que somos hoje que viveu aquilo.

O velho andava devagar. No portão da empresa ergueu a cabeça, cumprimentou os colegas e foi fazer o de sempre. Mas hoje é diferente, até o de sempre perde a naturalidade quando o que fomos e gostamos de ter sido se junta com o hoje. É como se ficássemos maiores, só por um tempo, o tempo de lembrar. Mas não está certo dizer lembrar. A condição da lembrança é o esquecimento e isso nunca aconteceu. Então, como se diz? Tem palavras que ainda não existem, talvez porque mais gente precisa passar por isso, contar esses sentimentos e aí se encontrará um jeito de dizer, de explicar que existe algo que não existe mais de um lado e nunca deixou de existir por outro.

Somos um mosaico, desses de cacos coloridos, uns bonitos e outros nem tanto, pedaços irregulares de nós que vão ficando pelo caminho e que a gente vai guardando, colando para  poder aprender que a vida não pode ter uma só cor.

Vamos misturamos alegrias, tristezas, saudades e sempre esperamos poder colar mais um, aquele que sempre falta. Pensamos que o próximo caco deixará nosso mosaico perfeito, nunca fica. Tem gente que lamenta, diz que deveria ter colado de outro jeito, em uma outra ordem que ficaria ainda mais bonito. Será?

Nenhum caco é só nosso, tudo é compartilhado e tem a forma de cada momento, por isso fica sempre assim, com aquela sensação de como seria se fosse de outro jeito. Não adianta, não adianta!

Amanhã continuará a lembrar, mas será diferente, hoje precisava ser assim.

O outro Mundo

Fiquei sabendo…

Encontrei uma pessoa que conhece o “outro mundo”, aquele que vamos depois desse. Quando ele me disse que sabia, minha primeira reação foi de euforia; tem mais depois! Minha alegria foi recebida por ele com certa frieza. Talvez por já estar acostumado, foi o que pensei, já não era, para ele, nenhuma novidade. Quando perguntei ele respondeu:

– Sabe, quando soube, minha primeira reação foi como a sua. Saber que existe é uma coisa, saber como é, é bem diferente.

Seria pior que esse? Não teria como!

Esse mundo tem no absurdo sua matéria prima. Tudo tão sem sentido; as injustiças, a maldade, guerras e exploração. Na hora, pensei que na verdade havia dois; um para quem fosse do “bem”, que respeita as regras daqui e de lá e o outro, aquele onde tem calor e dor e, na antessala, uma longa noite de séculos, pantanosa, com gritos e uivos, todos enlameados, se arrastando, magros e sem dentes. Só podia!

– É um só, não tem dois. Foi o que ele disse com algum desânimo. Todos vamos para o mesmo lugar, independente do que fizemos aqui.

– Mesmo os bons? Perguntei.

– Sim, respondeu, mesmo eles. Buscam na bondade algum retorno, tem ego em tudo, nem que seja sentir-se bem. Somo animais políticos, lembra?

Agora, já nem sei se quero saber. Ele me olhava como quem sabe qual seria minha reação à medida que minhas perguntas fossem sido respondidas. Mas já era tarde, não teria como recuar e ficar só com essa informação tão importante, seguida desse desânimo. Precisava saber tudo, vai que, como nesse nosso mundo, tudo seja uma questão de ponto de vista e meu amigo está vendo pelo pior ângulo. Fui adiante:

– Me conta, conta tudo.

Depois de um pequeno suspiro, como quem começa sua jornada e sabe que não terá muitas alegrias, mas precisa cumpri-la, começou seu relato:

– Para começar, é preciso entender que sempre terá um “outro mundo” para ir depois de cada passagem. Morrer, só morremos uma vez, aqui, depois é como uma mudança, afinal a vida é eterna, só precisa morrer uma vez, já que essa grande pergunta, do que virá depois, já foi respondida.

Sei que você está pronto para perguntar o motivo, mas é simples; existem dois tipos de eternidade; a primeira é essa que estamos vivendo e a outra depois que percebemos que não morremos de fato. Essa nossa experiencia na Terra eu acho mais interessante, já que o fato de termos medo de desaparecer, dá um certo tempero, nos empurra, como uma certa pressa de viver. Depois, que já temos certeza da eternidade, perde a graça.

– Como é lá?

– Parecido com aqui, com algumas alterações. Como tem um mundo atrás do outro, as mudanças são lentas, para ir se acostumando. Para começar, precisa entender que o fato de não ter mais um corpo muda muita coisa. Já não precisamos de comida e nem cuidar da saúde. Não tem hospital, farmácia nem academia. Também não se usa dinheiro, já que ninguém precisa se preparar para nada, na eternidade, não tem futuro. Ninguém trabalha, e como não sente dor, fio ou calor, também não precisa morar em casas como aqui. É sempre dia, nunca anoitece. A noite existe para lembrar nossa mortalidade e desamparo. Lá, não precisa.

-Então não tem casa, banco e lojas?

– Loja tem, de sapatos e roupas femininas, apenas. De bolsa não tem, já que não precisa carregar mais nada.

-Mas você não disse que não tem corpo? Se não tem corpo, para que loja?

Meu amigo que conhecia o outro mundo e esse, deu uma risada;

-Eu disse que não tem corpo, não disse que não tem mulheres. Mesmo que já não tenhamos corpo, mantemos uma psicologia, como uma certa identidade. Não dá para você chegar em outro mundo como chegamos nesse, um bebe, entende? Lá renascemos, aqui nascemos. Como ia dizendo, os homens usam sempre a mesma roupa, é mais fácil e como as funções físicas não existem mais, a vaidade masculina é desnecessária.

Continuando, tem restaurantes, bares e tudo que tem aqui para diversão. O fato de sermos assim, só espíritos, faz desses lugares ponto de encontro, já que não precisamos mais de alimento, mas tem um “faz de conta”, só para animar.

Por não ter dinheiro, como já disse, além de banco, também não tem igreja. Nesse mundo novo, não precisamos de crédito nem salvação. Chegamos lá como morremos aqui e depois de um tempo, e isso lá é muito relativo, mantemos uma imagem mais para adultos ou meia idade. Já quem chega lá criança ou recém-nascido, infelizmente isso ainda acontece aqui, como todo mundo vai para lá, eles ficam sempre jovens. Os bebes voltam para a Terra, quando morrem aqui é por erro do sistema.

Não resisti e precisei perguntar:

– Como assim, “erro do sistema”? Deus não erra, tudo tem um motivo!

Meu amigo ficou me olhando. Depois de um tempo, apenas disse:

– Se sabemos que tudo no Universo é movimento, não há nada parado ou estático. Erros e acertos em todos os mundos amigo. E essa dúvida se existe mesmo um Deus, tem lá também e, imagino, nos mundos seguintes. Desses não sei nada. Quem me conta de “lá”, também não sabe.

– Mas tudo não fica esclarecido? Não acabam as perguntas? Perguntei ansioso.

– Não, o Universo vive delas, se move por elas! Sem perguntas, não saímos do lugar. A cada resposta encontrada, uma pergunta nova. Nunca acaba. Justamente por isso que Deus precisa ser uma grande duvida.

Resolvi mudar de assunto, estava complexo demais.

– O que se faz lá?

– Nada, se pensa, estuda e reflete. Alguns mandam mensagens para cá, mas é raro. Como para mim. Lá é infinito, por não ter matéria. Só chega gente todo dia que morre aqui e poucos vão para os mundos seguintes. Para sair de lá e ir adiante precisa ser outro, aqui, podemos viver sendo o mesmo. Por isso que precisamos morrer. Na verdade, a eternidade só existe pela nossa demora de entender.

-Entender o que?

– Que não há nada para entender, só viver. Nascemos e morremos com medo. Mesmo que não houvesse nada depois, não tem vida no medo. Depois de um silêncio, disse:

– Preciso ir, estamos nesse mundo e preciso trabalhar.

Antes dele virar as costas perguntei:

– São felizes lá?

– Segundo meu informante não. Ele diz que falta corpo, sensação física. Falta tristeza para perceber alegria, falta a morte para dar intensidade, falta abraço e dor nas costas. Falta juventude e velhice, falta vontade do fim das contas.

Minha última pergunta, só mais essa:

– Qual a receita? “Eles” te disseram?

– Eles também não sabem, estão todos preocupados com o próximo mundo.

Só uma taça

Dessa vez ele entrou só.

 Ninguém lembrava de ter acontecido antes. O dono do Wine bar e o garçom se entreolharam. Claramente havia tristeza no rosto e o andar era pesado, como se houvesse um peso sobre as costas.

A mesa era sempre a mesma desde a primeira vez quando eles entraram de mãos dadas. Em seguida, foram direto para a sala, onde as quatro paredes eram de estantes de vinhos, dos mais especiais e antigos até os mais simples. Era a politica do lugar. Um vinho para cada bolso, o importante era ter um lugar para os apreciadores se reunirem e degustarem suas preferencias e experimentar novidades.

 A cozinha era simples, serviam os “acompanhamentos”, o vinho era o mais importante.

Depois tantos anos, todos se conheciam pelo nome; o casal, o dono e o garçom. Há quem diga que o vinho é uma bebida filosófica, se for, aumenta a sensibilidade por levar por outros caminhos.  Conversas com vinho são outras, precisam de mais tempo e inspirações mais longas. Quando ele procurou uma mesa no outro lado do salão, não havia nada para ser dito, algo havia acontecido, não era uma ausência circunstancial. Era uma mesa nova, sem memórias.

Ele sentou e por um tempo ficou em silêncio. Homens entre si não perguntam o que está óbvio e o garçom soube esperar. Era cedo  para os demais frequentadores, mas não para aquele cliente em especial. Era a hora que eles sempre vinham, sempre as quintas. Enquanto esperava ser chamado, o garçom lembrava do primeiro dia, quando entrou na sala dos vinhos (os frequentadores chamavam de “sala do Paraíso”) para oferecer ajuda aquele casal, visivelmente apaixonado.

Dava para notar que ele já conhecia o mundo dos vinhos e ela estava debutando. Sorridente, ela disse que queria um vinho leve, alegre, mas que tivesse alguma sofisticação e delicadeza. A memória tinha ficado, pois nunca lembrava de alguém pedir indicação de um vinho dessa maneira. Disse para ela que o que ela procurava existia e essa uva se chamava Pinot Noir. Mesmo sendo tinta, era também usada nos espumantes e as francesas reuniam tudo que ela pedia e ainda mais um pouco de sofisticação. Ela abriu um sorriso que preencheu o salão, o homem ao lado estava em um total encantamento.

Quando levou o vinho à mesa, ainda avisou, com aquela solenidade que os bons vinhos exigem:

– Poderá notar no aroma da  Pinot Noir que  é  marcada pela perfeita combinação de aromas de frutas frescas como morango, framboesa, amora e cereja. Nos vinhos franceses, poderá também perceber notas de flores como violeta e rosa. É uma uva frágil, que sofre com intempéries facilmente. Daí vem a delicadeza, mas tem outra curiosidade; ela não gosta de companhia. Praticamente ela está sempre só, não se costuma usá-la misturada com outras tintas. Espero que goste.

Ela sorriu e disse:

-Nada mais feminino que isso, não é?

Era sempre a mesma mesa, a mesma uva. Algumas vezes ela experimentou Pinot de outros países, como Chile, Argentina e Estados Unidos, mas os franceses era o que ela gostava, pelas flores, dizia.

Ele sempre a acompanhava e as conversas entre o dono e o garçom era se algum dia ele teria coragem de pedir outro vinho.

A lembrança foi quebrada quando ele levantou da mesa e foi para a sala do Paraíso. Deu para notar pela parede de vidro que ele se dirigiu a outra estante dessa vez. Enquanto escolhia entre tantas garrafas, passou pela estante dos vinhos franceses mas não parou. Depois de um tempo, pegou uma garrafa e se dirigiu a mesa. O garçom se aproximou e abriu a garrafa em silêncio. Perguntou se queria um acompanhamento e ele maneou a cabeça e disse:

– Só água.

Quando as pessoas começaram a chegar, pouco depois, as mesas foram sendo ocupadas. Alguns frequentadores mais antigos se cumprimentavam, eram quase familiares. O que os unia era o gosto por vinhos e o local fazia parte da vida de todos. Somos seres de referências e lugares e gostos que nos aproximam e são quase extensões do nosso corpo emocional. Era quase uma casa de família onde os clientes se confundem com o proprietário, garçom e pessoal da cozinha, resultado de um amor compartilhado.

Pediu a conta. Quando se dirigiu para a porta, o dono e o garçom estavam conversando com os clientes que estavam na primeira mesa. O dono se antecipou e abriu a porta, uma golfada de vento gelado crispou seu rosto. O garçom percebeu que ele estava saindo e se aproximou.

Ele baixou os olhos e sussurrou:

-Ela não virá mais.

Eles já sabiam, tem notícias que não precisam ser dadas, as respiramos.

Enquanto o garçom recolhia a garrafa e a taça o dono o esperava no balcão.

– O que ele escolheu?

Olharam a garrafa e o dono ergueu as sobrancelhas.

Pressa


Já fazia uma semana do falecimento. Foram os netos adolescentes  que se encarregaram de retirar as roupas e objetos pessoais. No fundo do armário uma caixa de sapatos com abotoaduras, relógios de pulso, foto 3×4 e outras bugigangas. Além disso, apenas duas folhas dobradas, daquelas retiradas de cadernos sem espiral, amareladas pelo tempo. Os meninos sentaram na cama para ler. Datava de mais de vinte anos atrás, escrita, pelas contas que fizeram, alguns anos depois do falecimento da esposa que havia morrido ainda na meia idade.

“Eu estava falando de uma lembrança…fiz as contas e cheguei ao número cinquenta. Aquilo havia ocorrido a cinquenta anos!

Não que tivesse cinquenta anos, era pior, eu já estava vivo quando aquilo tinha acontecido a ponto de lembrar! Pela primeira vez, tomei consciência que o “jogo” já estava mais para o final. O segundo tempo da vida já tinha começado sem que percebesse.

Olhei em volta com um ar de despedida, termo que gosto de usar para perceber a vida mais intensamente, contando com a surpresa da morte que pode chegar sem aviso. Simone de Beauvoir disse que a morte na velhice ou quando estamos cansados e doentes não chega a ser uma má ideia. A vida precisa ter graça, encanto, mistério e muitas surpresas para merecer esse nome.

Depois de muito tempo, nos acostumamos com a surpresa (não pense que isso não é possível), as novidades são poucas por estreitarmos a vida com nossas rotinas, tornando o mundo cada vez menor. Um mundo pequeno é fácil de entender, tem menos leis e regras muito mais flexíveis, afinal, ele é só nosso.

E os encantos?

Eles ficam por conta de um novo olhar, de perceber o que sempre esteve por ali, mas os olhos ainda não estavam prontos. O encanto tem vários tons, alguns com cores mais pesadas, já que nem tudo é amarelo, rosa ou laranja. Tem o que passou, que tornou esse jeito novo de ver possível. Quando não volta mais, e nem poderia, afinal já somos outros, essa cor que nos aparece é uma mistura do vivido e do que ainda esperamos viver. Cor única, feita com matizes da própria história misturada com sonhos.

Ainda é bom, muito bom! As dores ainda não chegaram a ponto de tirar a graça e os exageros daqui e dali podem ser parcelados em um crédito de bons anos que a expectativa de vida nos dá de folga.

Já não me importo com os domingos, faz tempo. As segundas feiras estão longe de representar algum peso. Muitas coisas boas aconteceram e acontecem nesse dia e as sextas não diferem das terças. Todo dia é algo para ser apreciado até no que falta, motivo de buscar, seja o que for.  Já sei que não há nada para ser encontrado, mas depois de um tempo, o bom mesmo é a viagem, chegar só faz parte.

Na volta para casa, não pude deixar de perceber que daqui a pouco acabam as filas e estaciono bem na porta de qualquer lugar. Está certo; quem tem menos tempo precisa de prioridade para sobrar mais para a vida. O que não dá é usar esse tempo para falar do “meu tempo” e contar a vida em porta retratos.

Não consigo imaginar o mundo sem mim, mas isso é um problema meu, já que tinha muita gente quando cheguei e muitos mais vão permanecer quando virar um CPF desativado.

Longe de ficar triste, constatar que já faz tanto tempo que estou por aqui só fez lembrar tudo que já vivi e fiz. Não deu tempo de sentir saudades, mas convivemos com tanta! Ela está sempre ali, esperando nossa atenção, mas os planos são mais importantes. Diz um sábio que caminhar olhando para trás termina em queda. Está certo, a vida é sempre agora e depois.

Vou deixar para olhar para trás quando não tiver mais para onde ir.”

Dobraram as folhas e recolocaram na caixa. Fizeram um para o outro aquela cara de quem não viam sentido naquelas palavras.

Formigas que pensam

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Eles estavam lá. Lado a lado, eram mais de trinta.

Altos e imponentes, eucaliptos tem características próprias; os adultos, como esses que estavam à minha frente, tinham troncos altos e lisos. Só lá em cima, galhos e folhas. Pareciam um muro, uma cerca, de quarenta metros de altura demarcando limites, foi o pensamento que me ocorreu.

Foi quando começou a ventar. Vento e eucaliptos tem tudo a ver, apesar de não precisarem um do outro. Os galhos começam a se mover e fazer um som todo especial.

Fiquei observando.

Enquanto essa “dança” acontecia, percebi que não era uma ação de domingo, dia de descanso para contemplação. Dias da semana, horários, são coisas dessa gente pequena, como nós. Eles, os que vivem vendo no alto, devem ter conosco a mesma relação que temos com as formigas.

Eles estão acima disso, não precisam de nada, só da chuva vez por outra e do vento, para cantar e dançar. De vez em quando, o tronco se libera da roupa velha e eles ficam lisos e nus, para recomeçar. Ano a ano, décadas, sem pressa. Tudo vai acontecendo no instante, sem horário, sem nada que precise ser controlado, esperado ou necessário. Nós, humanos, somos seres que se pressupõem livres. Essa liberdade nos faz agir na natureza como se ela fosse nossa, que estivéssemos acima dela.

Dias, noites, calor, frio, vida e morte. Isso existe só para nós e só pode ser por não entendermos. Deve ser por isso que queremos controlar tudo; o medo que a ignorância traz.

O movimento era lento e os pássaros que também passam rapidamente pela vida, característica de corações acelerados, estavam mais preocupados em cantar seus solos e cada um vivia por si e dava certo no conjunto. Orquestra de estranhos, sem ensaio. Nada tinha a ver o vento com a árvore e os pássaros, tudo age por si, pois essa é a natureza de cada coisa.  Tudo ali estava certo e uma sensação de harmonia era possível, porque ela não era necessária. Quando precisamos de alguma coisa, a tensão e a falta de naturalidade são invitáveis.

Há quem diga que tudo ocorre por necessidade, mas se essa necessidade for natural o nome está errado. Para nós, aqui em baixo, a necessidade é uma espécie de urgência e toda urgência precisa ganhar espaço e prioridade. É quando somos mais importantes que tudo.

Pensei em contar aos eucaliptos sobre alguns pensamentos, coisas que poderiam ser diferentes do que são. Lá estava eu, de novo, querendo que tudo fosse do jeito que eu achava certo. Os eucaliptos talvez não rissem, já que devem saber como somos, mas ficariam impassíveis para que me desse conta que tudo isso é grande demais para ser entendido, ou que não há nada para ser entendido, tudo é como é e pronto. Tanto faz!

Tudo ficou pequeno naquele momento; minhas preocupações, a maldade, a bondade, as grandes e más ações, os crimes, a angústia de não saber isso ou aquilo, o futuro… Não estava acontecendo nada, só o vento de sempre, balançando os galhos, como sempre. Talvez o que não fosse o de sempre foi perceber que não há nada para ser mudado, descoberto ou decifrado.

Eu sei que os eucaliptos não pensam, não ambicionam ou desejam. Estão abaixo na hierarquia desse mundo. Talvez seja por isso que o resultado deles é melhor, assim como o dos pássaros, das formigas e de todo o resto. Somos muito melhores, mais capazes e criativos, mas isso não tem nos ajudado a vivermos melhor. Estamos destruindo a nós e ao mundo. Precisamos atender nossa necessidade, afinal.

Quando eu não estiver mais, seja do jeito que for, o vento vai passar por lá, naturalmente, movendo essas grandes árvores esguias fazendo esse barulho gostoso e poderá ter alguém como eu, esteja lá perdendo tempo pensando em vez de só ver, só ver.

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