Crônica

Vô Baruch

Vô Baruch sempre foi muito reservado. Falava pouco, da mesma forma que seus amigos eram raros. Gostava de escrever cartas e dizia que era do tempo em que era um desrespeito para o destinatário escrever de outro jeito que não fosse a mão.

Já estava velho, com problemas no pulmão por ter trabalhado muito tempo polindo lentes para óculos, já que as máquinas que fazem esse serviço chegaram tarde demais para ele. Estava viúvo a algum tempo e vivia de suas leituras de clássicos da filosofia. Dizia que gostaria de ter conhecido Descartes, que o admirava, mas também discordava em algumas coisas importantes. Escreveria cartas longas para ele se pudesse, mas nem sempre a vida nos coloca todos juntos. Falava pouco de seu passado, e isso sempre intrigou seu neto mais velho. Quando perguntava do passado do avô, sempre desconversavam, até que, quando fez 18 anos, sua mãe contou o que tinha ocorrido.

Fascinado pela história, o neto o procurou em uma tarde de domingo, onde o tempo sempre se arrasta. Além disso, a idade do avô não era garantia de que outras oportunidades surgiriam.

– Vô, andei conversando com a mãe. Sempre que perguntava de você, como tinha sido sua vida me enrolavam. Quando fiz dezoito anos, semana passada, pressionei e ela me contou uma história que achei muito louca. Ela me disse que o senhor foi expulso, excluído ou coisa parecida da sua religião. É verdade?

– A palavra certa é excomungado meu neto. Excomungado!

– Que significa vô?

– Que ninguém da minha família ou da congregação poderia conversar comigo, falar meu nome, ou ler meus livros. Todos deveriam agir como se eu não existisse.

– Você escreveu livros?

– Sim, mas não com meu nome. Depois que morrer, aí saberão que fui eu.

– Por quê?

– Para que nossa família não fosse prejudicada ou perseguida. Alguns amigos sofreram por gostarem das minas ideias.

– O que o senhor fez vô?

– Pensei diferente, só isso.

– Como assim, diferente?

– Vejo a vida, como somos, as religiões e Deus de uma maneira que incomoda as pessoas.

O jovem estava curioso! Nunca poderia ter imaginado que aquele sempre silencioso velhinho tivesse uma vida tão agitada. Finalmente entendia o motivo de nada contarem quando perguntava. Agora, a curiosidade era saber que ideias eram essas.

– Vô, me conta, me conta tudo!

O brilho nos olhos do neto encantou o velho Baruch. Alguém finalmente disponível para pensar diferente, ser afetado por ideias que poderiam aumentar sua capacidade de entender e, como consequência, de viver. Abertura para passar de um estado de ignorância para conhecimento, enfim, a liberdade!

– O que quer saber?

– Vamos começar pela Bíblia, o que o senhor disse que deu problema?

– Só falei que era um livro de normas de conduta da época, que nada havia de “revelação” ali. Como tudo, deveria ser lido dentro do contexto histórico em que foi escrito. De preferência, lido no idioma original. Traduções podem ser perigosas, ainda mais depois de tantas edições. Deveríamos lê-la como faria um historiador, não como algo que ultrapassasse seu tempo, que valesse para sempre.

– Vô, vai me dizer que o senhor sabe grego?

– Sei, também estudei Latim, e escrevi nesse idioma. Além da Bíblia, também disse que Moisés não escreveu o Pentateuco.

– Que massa vô! Não sabia que o senhor sabia essas línguas antigas! O que é o Pentateuco?

– Um conjunto de cinco livros atribuídos a Moisés que fazem parte do Antigo Testamento. Tem palavras lá que não existiam na época em que ele viveu, assim não poderia ter sido escrito por ele. Infelizmente, religiões deixam as pessoas cegas, isso as impedem de usar a razão. Paixões são assim. Enfim, são livros escritos por pessoas, alterados pelo tempo que não deveriam ser vistos como sagrados.

– Paixão não tem a ver com sentimento vô?

– Não, paixão é tudo aquilo que te domina e te impede de ser racional.

– Imagino a confusão! O senhor foi corajoso!

– A palavra certo seria livre, não seria eu se não exprimisse meu pensamento. Sempre tive amigos por perto, poucos é verdade. Eles gostavam de minhas ideias, diziam que ficava mais fácil perceber a vida através delas.

– Então o senhor foi excomungado por ter dito isso da Bíblia?

– Também, mas o que foi que causou impacto é como eu vejo Deus. Não falei sobre isso de forma leviana ou só com objetivo de causar polêmica. Li e observei muito antes de chegar às minhas conclusões, mas não fui entendido, disseram que era ateu.

– Mas ateu é quem diz que Deus não existe. Se o senhor vê Deus de outro jeito então não pode ser ateu?

– Em tese sim, mas para essas pessoas eu estava dizendo que o Deus deles não existia. Não importa se sua visão for de um Deus com outra forma. Ninguém gosta de perceber que aquilo em que acredita, sobre onde assenta sua fé e que ajuda a ter controle sobre si e o ajuda a entender sua realidade possa ser uma mentira. No âmbito da fé, ninguém sabe nada, por isso que precisa acreditar. Lembre meu querido neto; quando uma ideia nos possui, não pensamos sobre ela, precisamos que aquilo seja verdade, afinal somos essa ideia. Ninguém gosta de perder-se, perder uma crença é ficar nu, de certa forma.

O jovem estava em transe, uma mistura de encantamento e descoberta. Seus olhos estavam vidrados. Só pensava o tempo que perdeu jogando no celular que poderia usar para ter conversado com seu avô.

– Então vô, o que é Deus para você?

O velho suspirou, estava feliz em poder conversar sobre isso com seu neto. Sua esposa havia ficado a seu lado, mas nunca havia aceitado ele ter criado tantos problemas com suas ideias. Ela apenas chorava e silenciava. Sua filha, influenciada pela mãe ficou alheia, nunca quis saber o que o pai pensava  e ele não lutou contra. Já tinha sofrido o suficiente e entendia a esposa querer poupar a filha das suas “maluquices”. Filosofar é sempre uma solidão voluntária, ou como dizia Lucrécio, é aprender a morrer.

– Primeiro, não quero convencer você de nada meu neto. Mesmo que estejamos conversando, não é necessário que concordes comigo. São apenas minhas ideias, nada mais.

– Tranquilo vô. Gostei do que você disse sobre a Bíblia e esse outro livro, faz todo o sentido. Como o que alguém escreveu a muitos séculos possa ser usado sem filtro? Vivemos em outro mundo, é óbvio! Mas me conta, e Deus?

Baruch se ajeitou na cadeira e fez um longo suspiro, daqueles que nos avisam que estamos diante de algo demorado, além de ser um assunto que lhe custou tão caro!

– Para começar, meu querido neto, é importante que você se proponha a esquecer tudo que pensa sobre Deus. Em nossa cultura é cristã, Deus é visto como “alguém”, que lhe diz qual sua conduta correta, que pode agraciá-lo ou puni-lo, que apareceu para alguns transmitindo suas leis, alguém com quem você pode se comunicar, como se fosse uma pessoa, que está em algum outro lugar etc.

– Mas vô, Deus não é isso? Minha outra vó, disse que estamos em Deus.

– Não, Deus não pode “estar”, ele “É” tudo. Se ele pode estar, pode também não estar e não vejo como isso possa ser possível.

 O velho sorriu vendo o rosto de surpresa do neto.

– Fala logo vô, agora fiquei muito curioso.

– O que chamo de “Deus” é uma substância única, que existe em si, que não tem causa externa, logo, sendo causa de si mesma. É infinita em atributos em potência de existir. Tudo que existe, eu, você, as árvores, o ar, tudo aquilo que chamo de “natureza” são modos ou expressões dessa infinita potência que é Deus. Não está em algum lugar, não é alguém com quem possamos conversar, que se alegra ou se entristece de nossas ações. Digo que é imanente, que está em tudo, É tudo! Tudo que existe é uma expressão dessa substância primeira.

– Vô, que complexo! Se entendi, é como se essa “substância” fosse, por exemplo, uma massa de modelar e tudo que existe é feito dessa massa? Cada coisa é uma coisa, mas a massa é a mesma?

– Seu exemplo é ótimo! Cada modo de usar essa massa é um dos componentes do que chamo “Natureza”, que tem seu jeito, seu tipo de vida etc. Vale para tudo que existe!

– Se somos uma expressão de Deus, que é uma substância infinita, porque somos finitos, por que morremos?

– “Morremos” por sermos uma expressão de Deus que pode ser limitada por outra coisa. Somos limitados a nosso corpo, pelo espaço, por influências externas e não somos causa de nós mesmos. Somos “causados” externamente. Por exemplo, fui causado pelo meus pais, posso ficar triste, doente ou alegre por causas externas a mim. Nós pensamos, justamente por sermos finitos e não sabermos de tudo, já que a soma de todos os modos ou atributos de Deus é muito maior que nós, individualmente. Quanto a morrer, não penso morremos na acepção da palavra. O que acontece, como essa substância é perfeita e infinita, ela não poderia perder partes de si. O que chamamos de morte, nada mais é que uma nova maneira que essa parte da substância que somos nós se rearranja na natureza. Se somos enterrados, nos decompomos, se cremados, nos tornamos cinza e fumaça. Assim, nada nunca se perde da substância infinita, só muda de estado, de forma e possibilidades. Nossa mente, sim ela morre, por ser uma ideia, uma forma da substância que somos se expressar. A outra é pelo que chamo de extensão ou corpo. Criamos ideias pela mente e as transformamos em ações pelo corpo. Quando nos decompomos em outras formas de expressão de Deus (o que chamamos de morte), essa nova maneira não tem mente e corpo. Se você observar, morremos sempre por causas externas, não fossem elas, mais fortes que nós em determinado momento, nunca morreríamos.

O jovem estava atônito. Essa maneira de ver Deus era tão diferente de tudo que tinha aprendido que precisava desmontar tudo para poder compreender melhor o que seu avô estava dizendo. Por outro lado, essa é uma visão fascinante, nova e libertadora! Depois de alguns segundos disse sorrindo:

– Agora entendi por que foi excluído.

–  Fui excomungado, excomungado.

–  Sim vô, excomungado. Sua maneira de ver invalida o Deus da maioria das pessoas desse mundo. Se for assim, se entendi direito, não existe milagre então?

– Claro que não!  Pense, como uma substância perfeita precisaria interferir em si mesma? A perfeição seria imperfeita se o milagre fosse necessário!  Na verdade, o que chamamos de milagre são apenas coisas que não entendemos como são causadas. Milagre é sinônimo de ignorância das causas.

– Então tudo só pode ser do jeito que é?

– Sim, se somos expressões dessa substância infinita chamada Deus, limitados e causados externamente, tudo que acontece só pode ser do jeito que é, nunca de outro. Para ser de outro, as causas deveriam ser outras, entende?

– Então a culpa não existe vô?

– Culpa seria poder fazer de um jeito diferente, para isso precisaríamos ser diferentes do que somos a cada momento. Tudo que fazemos é só o que podemos fazer naquele instante. Os efeitos sobre nós das nossas ações e da própria vida, vão nos mudando. Essa pessoa que vamos ser depois, só poderá agir sendo quem é, levando em conta os efeitos do que fez, trazendo causas novas as suas ações. Por isso que dizemos que não faríamos tal coisa novamente, isso só acontece por termos sido afetados ou mudados pela ação anterior, seja ela nossa ou de algo que a vida nos afetou e transformou em nossa mente (pensamento) e corpo a agir de um jeito novo.

O jovem estava com lágrimas nos olhos. Olhou pela janela e viu que já anoitecia. Tinha perdido a noção do tempo. Estava sentindo um transbordamento, uma espécie de prazer por ser agora alguém que via tudo por um ângulo maior.

– E rezar?

– Como vejo Deus, ele não é alguém que te possa escutar, ele não precisa de templos e promessas e não dá ou tira nada de ninguém. Ele é a própria vida que se expressa a cada momento dentro da natureza de cada ser, do vento, da terra, montanhas, trovões, dos animais e assim por diante. O mais difícil, penso, é mudarmos a ideia de um Deus que não esteja em algum lugar, sendo parecido conosco, só que eterno. A “eternidade” de Deus só existe por morrermos. Tudo que existe é Deus em suas várias e infinitas formas de se expressar, desde antes do ser humano existir nesse planeta.

O neto ficou olhando para o chão. As palavras do avô o estavam transformando rapidamente em alguém muito diferente do que era quando essa conversa começou.

-Tem mais vô?

– Também falei sobre os afetos, sobre liberdade, desejo e política.

– Onde estão seus livros vô?

– Com meus amigos. O dia em que minha substância se rearranjar, meus amigos vão publicar e só assim saberão meu nome. Daí ninguém poderá fazer mais nada contra mim.

– Queria ler, saber mais. Tudo isso é tão claro, tão mais possível! Tudo que pensava antes da nossa conversa é como se fosse uma história infantil.

– Você lerá, assim como muitos!

– Posso voltar depois, outro dia? Quero saber sobre o resto.

– Claro! É sempre bom conversar!

O jovem abraçou seu avô e não conseguiu conter a emoção. Era um misto de culpa por ter perdido tanto tempo e alegria por estar diante de um pensamento tão diferente. Seu avô, falou no seu ouvido, como se estivesse lendo seus pensamentos:

– Lembre, tudo só pode ser do jeito que é. Nunca se culpe! Culpa, medo e ignorância servem apenas como forma de poder, de controle! Um dia, falaremos sobre desejo, mas posso adiantar que nosso principal desejo é governar a própria vida e não que ela seja governada por outro. Para que alguém governe sobre nós, precisamos estar com medo, tristes, ignorantes e impotentes e não termos nenhuma liberdade, consequentemente.

– O que é ser livre?

– Conhecer pela causa e agir de acordo com a razão, ser governado por si mesmo. Depois, explico melhor, já é tarde.

Ao chegar na porta do quarto, virou-se e perguntou:

– Vô, como vai se chamar o livro?

– Estou pensando em “Ética”, o que acha?

Sintomas

É minha primeira vez, nunca fiz terapia antes. Por onde começamos doutor?

– Por onde você achar melhor, não temos um roteiro, obrigatoriamente.

Bom, estou aqui por estar me sentindo estranho. Por um lado, não tenho do que me queixar. Minhas coisas estão em ordem, está tudo bem com a família e nos negócios, mas percebo um desconforto difícil de explicar.

– Começou a se sentir assim quando? Perguntou o terapeuta.

Não consigo precisar, é uma sensação, vaga, indefinível. Como tenho ouvido falar muito dessa questão de sentido, propósito e autoconhecimento, pensei ser meu caso. Pensando em sua pergunta, tem algum tempo, talvez um ou dois anos que posso detectar que percebo isso.

– Você está com quantos anos, perguntou o terapeuta enquanto fazia anotações.

Fiz quarenta e quatro no começo do ano. Isso tem a ver com a idade?

– Não necessariamente, disse em tom enigmático, enquanto ainda anotava.

Não entendi. Como assim “não necessariamente”?

O terapeuta não respondeu.

Entendi, quer me fazer pensar, por isso não responde. Pensei que poderia ter a ver com meia idade. Mas não é só comigo, pelo visto. Esses assuntos estão na moda, pode ser uma questão desse momento que estamos vivendo.

– O sentido da vida e o autoconhecimento estão na moda desde Sócrates, disse o terapeuta olhando para o teto, em tom de divagação.

Mas não me lembro disso nos anos anteriores, pelo visto estava ocupado demais para perceber.

O terapeuta sorriu com o canto da boca.

Você está dizendo que isso tem a ver com estar com mais tempo livre? Quem está muito ocupado não pensa no sentido da vida ou em um propósito? Será que o autoconhecimento é fruto da “oficina do diabo” como dizia minha mãe?

Novamente o terapeuta faz silêncio.

Essas grandes questões são para quem tem tempo? Mas eu conheço gente super ocupada que se preocupa com isso. Querem saber se sua vida está certa? Se estão vivendo como devem?

– Você acha que tem um jeito certo de viver então?

Pensei em vir buscar respostas nessa sessão e só ouço perguntas! Se soubesse não estaria aqui!

 A irritação do paciente era evidente.

– Minha função é, na maioria das vezes, fazer perguntas. Se tivesse as respostas, seria um político ou religioso. Eles têm um jeito “certo”, você não acha?

Mais uma pergunta… Concordo com isso, mas não existe um jeito de viver que satisfaça a todos?

– Se fossemos todos iguais, poderia.

Entendo, então não tem um jeito certo. Verdade, as religiões têm e a sociedade também por nos tratar como iguais. Deve ser no sentido de nos controlar, só pode! Não tinha pensado desse jeito antes. Se fosse assim, não teria tanta gente tomando remédios psiquiátricos, não é? Esse jeito único pode adoecer as pessoas, afinal elas não podem viver de um jeito que seria só delas. É isso?

– Boa reflexão, disse o terapeuta. É uma boa possibilidade essa que você trouxe.

Então, chego à conclusão de que minha insatisfação pode ser eu estar vivendo a vida que querem que eu viva, não a que gostaria de viver, é isso?

– Como seria a vida que gostaria de viver?

Não sei, nunca pensei nisso antes. Agora entendo.

– Entende o quê?

Não vivi, fui “vivido” por crenças que não escolhi. Como nunca pensei em outras formas, esse jeito era o único que poderia ser.

– E por que não pensou em outras formas?

Olhando para baixo, em profunda reflexão:

Porque eu fui conquistando os resultados desse tipo de vida e estava embutido nessa crença que se isso acontecesse me sentira feliz. Se tivesse dado tudo errado, essa questão de buscar o autoconhecimento teria vindo antes? O sentido da vida e tudo mais ganha importância quando não temos resultados ou já temos e descobrimos que está faltando alguma coisa? Só se busca isso para preencher uma vida que se percebe sem sentido, quando se está sofrendo? Não é uma busca voluntária então, é uma ação que só visa trazer vantagens. Mas o que é felicidade então?

– Dentro desse seu raciocínio da diferença entre as pessoas, essa ideia do que seja “felicidade” também não existe, já que cada um pode ter a sua, sendo do jeito que é.

O terapeuta cruzou as pernas e se recostou na poltrona, como se pudesse descansar, já que seu trabalho estava feito!

Entendi, entendi. Você diz que eu vivi uma ilusão esse tempo todo?

– Não disse isso, mas você disse.

Sim, eu sei. Foi tudo errado?

– Foi?

Tudo não, tem coisas legais que aconteceram. Mas me sinto estranho, como se tivesse sido enganado apesar das coisas boas. A escola deveria ter me ajudado a entender. É por isso que andei lendo que querem terminar com o ensino de filosofia e sociologia?

O terapeuta não respondeu.

Você acha que devo voltar, fazer mais sessões?

– Você é quem sabe. Terapia é uma escolha voluntária, uma das poucas.

Engraçado, saio daqui pior e mais confuso que quando cheguei, mas me sinto melhor. Sim, quero voltar, cavar mais fundo nesse assunto.

Enquanto se levantava da cadeira, o terapeuta disse em tom irônico:

-Estar confuso não é ruim. Significa que aquilo que estava “certo”, já não está mais pela reflexão feita. Pense no seguinte; se não existem pessoas iguais, também mudamos o tempo todo, sendo assim, como algo poderia estar “certo” para todos, sem mudar?

Agora quem ficou em silencio foi cliente, pensativo, exposto a última reflexão do dia.

Ao sair do consultório, virou-se e fez sua última pergunta:

Doutor, quem me indicou o senhor disse que você é “esquerdista”, é verdade?

O terapeuta sorriu e fechou a porta.

Sobraram os olhos

Por onde ando, só vejo olhos.

Ruas, comércios, restaurantes e até em carros.

Mudanças inesperadas que vem à tona pelo que está coberto.

Sobraram os olhos.

Máscaras multicoloridas, algumas com símbolos, outras com imagens passam a fazer parte da vestimenta, como o relógio e o celular. Da ala conservadora, talvez ainda resistindo à mudança, máscaras brancas, básicas, como a multidão que pensa que não serão mais necessárias em breve.

De que servem as carteiras de identificação quando os olhos não bastam? Baixar a máscara é necessário para provarmos quem somos. Os olhos nos tornam irreconhecíveis, contam menos. Se íris são únicas e em filmes de ficção e demarcam identidade para entrar em salas secretas, ainda não valem para a vida real.

Máscaras favorecem a falar sozinho em segredo mesmo diante dos outros. Os espelhos da alma agora precisam aprender a falar, será a primeira impressão. O sorriso de “bom dia” já não é mais visto nem ouvido, só pode ser constatado pelo olho semicerrado enquanto passamos uns pelos outros.

Dizem que os olhos não mentem, talvez por nos determos nas palavras, no tom e em outras mudanças no rosto. Agora, precisarão aprender a mentir, não dá para viver sem isso com tantas regras. Rosto coberto vira mistério, matéria exclusiva da imaginação, sempre criativa e preenchida de expectativas. Em breve ouviremos: como aqueles olhos me enganaram ou surpreenderam! Parece que olhos nunca deram conta de convencer.

 Agora, sobraram só eles.

O mercado se apressa em tornar a máscara artigo de elegância e distinção entre os mais e menos favorecidos. Tecidos especiais, porta máscaras assinados por design famoso vira artigo de cobiça. Agora, deixar somente os olhos à mostra é coisa de profissional. Que mensagem sua máscara transmite?

Olhos procuram fora as razões da dor interna e, é claro, suas soluções. Quem nos estuda sabe disso e os comerciais nos oferecem o que precisamos todo instante, em até dez vezes.

Olhos nasceram para fora, para o mundo. Para olhar dentro, precisamos fechá-los, para sentir o aroma, sabor e o que não se explica também.

Nos olhos femininos, sobrancelhas perfeitas para adorná-los, artifícios da maquiagem para parecerem maiores e valorizar sua cor. O que antes poderia ser um recurso a mais, tornou-se único, cartão de visita de uma história e, de quem sabe, um futuro.

Máscaras e tudo que cobrem favorece a interpretação. É o momento de imaginar e sermos imaginados mesmo por quem nos conhece, alijados momentaneamente do que antes compunha um conjunto.

Lembra do dia que nos conhecemos?

Saudade daquela época!

Pena que o tempo não volta!

Frases de quem imaginava e o tempo tratou de mostrar que nada atende as fantasias que criamos para o mundo ser de outro jeito. Daquele jeito que onde tudo termina bem, ou da maior das ilusões; que nunca termina!

O poeta mexicano Octavio Paz diz que “enquanto estamos vivos, não podemos escapar de máscaras e nomes. Somos inseparáveis de nossas ficções – nossas feições”. Assim a pergunta se impõe: seríamos os mesmos se não vissem nosso rosto? Será que com apenas olhos à mostra, seremos diferentes?

Usamos máscaras ou escondemos o rosto desde sempre, seja para um elegante carnaval em Veneza, no teatro grego onde se chamavam “persona”, sete séculos antes de cristo para cobrir o rosto dos mortos no Egito, na China para afastar os maus espíritos ou em rituais religiosos para cumprirem seu papel de impressionar. Precisamos historicamente esconder ou transformar o rosto para quem sabe conseguir o que queremos, nem que seja sermos bem recebidos no outro mundo.

Diz a ciência que as lágrimas nunca são iguais. Alegria e tristeza têm fórmulas diferentes para a vida que insiste em nos surpreender e a mostrar como estamos interligados e capazes de, mesmo sem querer, fazer todo mundo chorar quase junto, seja a dor que se vive ou que só de imaginar, arrepia de medo.

Viver de um outro jeito, talvez. Para isso, um novo olhar!

Sobraram os olhos.

Um tempo sem dias

Que dia é hoje?

– Não sei, por quê?

Todo dia tem um nome, não tem?

– Tem horas que não precisa.

Como assim?

– Se eles são iguais, não há motivos para ter nomes diferentes.

Por que tem dias com e sem nome?

– Porque tem dias em que somos diferentes e os dias tem nome e outros em que somos iguais.

Mas não somos todos iguais?

– Pensamos que não, por isso que os dias têm nomes diferentes.

Dia então é só um dia?

– Tem dia em que se faz coisas em outros não.

Mas hoje, esse dia tem nome?

– Já disse que não, hoje é dia de sermos iguais.

Quem decide isso?

– Depende, às vezes é o tempo com o vento ou a chuva, em outros momentos é um ou outro deus. Mas, como agora, quem decide é quem não podemos ver com nossos olhos de tão pequeno que é.

Pelo visto, nunca somos nós que decidimos que dia é hoje?

– Nunca foi, gostamos de pensar que somos nós.

Por quê?

– Porque não conseguimos lidar com a ideia de que nunca decidimos nada.

Amanhã vai ser que dia?

– Quem sabe?

É difícil viver assim!

– Vivemos sempre assim, nunca foi diferente.

Você disse que quem decide que o dia de hoje não tem nome é alguém que nossos olhos não veem. Se não vemos, como sabemos?

– Sentindo dor, falta de ar e medo. Muito medo!

Do que temos medo?

– Do que não conhecemos.

E o que conhecemos?

– Nada, nem a nós mesmos.

Se você estiver certo, se não conhecemos a nós mesmos não há nada que possamos saber o que realmente é?

– Não.

Então somos iguais no medo, todos temos medo?

– Sim, por isso os dias não precisam de nomes.

Como viver assim?

– Descobrindo, através do que sentimos, percebemos e entendemos.

Mas, se cada um sente de um jeito, então nada existe para todos?

– Não.

 

Silêncio

 

Os dias vão voltar a ter nomes?

– Vão.

Quando?

– Quando voltarmos a achar que sabemos quem somos e para onde estamos indo.

E depois?

– Vamos esperar que uma coisa, qualquer coisa, volte a mostrar que dar nome aos dias é um erro.

Dias então não existem?

– Quem sabe?

Que dia foi ontem?

– Amanhã.

 

 

 

 

Perguntas de natal

– Pai…

Fala filho!

– É natal daqui a uns dias, não é?

Sim, é.

– Natal é o quê mesmo, pai?

É a data do nascimento de Jesus, nasceu dia 25.

– Pai, então natal é uma festa de aniversário?

É, mais ou menos.

– Mas como o aniversariante não vem a gente fica com os presentes, é isso?

O pai largou suas anotações e voltou-se para o filho, era como a pergunta do menino o tirasse do “piloto automático”.

É, mas de onde veio tanta curiosidade?

– Sei lá, fiz essas perguntas para a professora, mas ela disse que não tinha tempo para responder.

– Foi só isso que você perguntou?

– Não, também perguntei se, quando Jesus era vivo, ele comemorava o aniversário dele do mesmo jeito que a gente faz. Dando presentes uns para os outros, com árvore de natal e Papai Noel.

E o que ela respondeu?

– Foi aí que ela disse que estava sem tempo. Você sabe pai?

Não. Nunca tinha pensado nisso. Na verdade, eu também estou enrolado aqui com essas contas. Poderíamos conversar depois?

– Queria saber mais uma ou duas coisas…

 Sem saída e diante da curiosidade do filho, o pai arriscou-se:

O que mais você quer saber?

-Todo mundo comemora o natal?

Não, só os católicos.

– Quem é católico?

–  São aquelas pessoas que vão na missa, oram e respeitam as regras da religião.

– Mas pai, você e a mãe, vão a missa? Nunca percebi.

Na verdade filho, somos católicos “não” praticantes.

– Então dá para ser católico sem ir à missa e fazer essas outras coisas? Se pode, então qual a diferença entre os que vão e os outros?

Visivelmente arrependido de ter se proposto a responder, a voz do pai ganhou uma nota de impaciência.

Não é a mesma coisa, mas é parecido.

– Jesus também pedia presentes para Papai Noel?

Não, na época não tinha Papai Noel, ele veio depois.

Para quem Jesus pedia presentes então?

Sei lá, nem sei se pedia. Talvez naquela época não se davam presentes.

– Então se Jesus não ganhava presentes, se não tinha Papai Noel para pedir, de onde veio o que fazemos todo ano?

Boa pergunta! Talvez o presente seja uma maneira de mostrar para a pessoa que gostamos dela.

– Mas pai, você não gosta da tia e ano passado deu presente para ela.

Tirei no “amigo secreto”, não tive escolha.

– Então você passou a gostar dela, já que deu presente?

Filho, as coisas não são tão simples. No natal, nos lembramos que devemos gostar de todos, principalmente da nossa família. É o que se espera dos cristãos.

– Mesmo os não praticantes?

Visivelmente confuso e contrariado o pai tenta encerrar a conversa:

– Mais alguma pergunta?

– Pai, todo ano a gente come a mesma coisa no natal, faz parte do aniversário?

É uma tradição, só isso.

– Pai, se é festa de aniversário, tem presentes, refrigerante e doce não é para ser legal?

Claro que é legal filho, você não acha?

– Sei lá, a vovó sempre chora e a mamãe também.

– É que seu avô já morreu, elas têm saudades.

– Eu pensei que era por causa de Jesus.

Não, já nos acostumamos com a morte de Jesus, mas não do seu avô, como parece.

Deu-se conta de estar tendo uma conversa de igual para igual com seu filho de nove anos.

– Pai, no meu aniversário esse ano, não teve as mesmas coisas que os aniversários anteriores. Tipo, esse ano não teve pula-pula nem veio aquele palhaço brincar com as crianças. Por que o aniversário de Jesus é sempre igual?

– Dá para comer outra coisa? Será que Jesus se importaria de comêssemos outra coisa no aniversário dele?

O pai abriu um sorriso, vencido.

– Acho que não, você tem razão filho, é mesmo sempre a mesma coisa. De mais a mais, Jesus perdoou tanta coisa!  Confesso que nunca pensei nisso. Sei lá, acho que não precisa ser igual.

– Pai, vamos comer pizza então?

Pizza? No natal?

– Não pode, Jesus não iria gostar?

O pai coçou o a barba. Em uma fração de segundo, percebeu-se sentindo culpa só por mudar o cardápio. Quantas culpas!  Qual o problema?

Já falou com sua mãe sobre isso?

-Já, ela deu uma risada e disse para falar com você.

O pai levantou-se e foi falar com a esposa. Encontrou-a o quarto, pintando as unhas.

– Amor, nesse ano vai ter pizza na ceia de natal.

A mulher arregalou os olhos:

– Você enlouqueceu? Seu filho tem nove anos, até entendo, mas você? O que vou dizer para a minha mãe, para seu irmão e seus pais que passarão a noite conosco? Pizza?

Ele cerrou os olhos e falou com uma firmeza que há tempo ela não via:

Nem eu, você, meus pais, sua mãe, meu irmão e a esposa dele, vamos a missa, ninguém reza e a sexta feira santa só serve como feriadão e comer bacalhau. Será pizza, porque não tem obrigação de fazer sempre a mesma coisa. De mais a mais, católico “praticante” não existe e, se Jesus conhecesse pizza, talvez tenha sido o que ele comeria!

– Mas eu gosto de arrumar a mesa…

Aproveitando, eu não gosto daqueles guardanapos vermelhos, daquela tristeza, do choro, parece uma festa constrangida. E mais; estou de saco cheio de comer peru até o dia vinte e oito.

– Mas não será pecado? Disse a mulher com sua última cartada.

Pecado é ser triste fingindo ser alegre, é sentir-se culpado por coisas que não fez é ter medo de coisas que nem sequer existem. É tristeza que se comemora? E mais, ano que vem seremos só nos três em casa!

– Por quê?

– Porque eu não gosto da minha cunhada e estou de saco cheio de fazer a mesma coisa que meu pai e meu avô faziam e já não tem graça faz tempo, nem sei quanto tempo!

Depois de sair do quarto, encontrou o filho na sala.

Filho, esse ano será pizza, muita pizza!

Ao ver o sorriso do filho, teve vontade de chorar. Talvez, ele não conseguia lembrar, um dia ele teve vontade de fazer essas perguntas e tantas outras. Não fazia que porque tinha medo, medo que hoje o filho libertou.

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