Crônica

Looping

Não saber aonde ir, há algum lugar para ir?

Se houver, não há escolha, está definido. Se não houver, o fim é obrigatório.

Um dia serei expulso, não me perguntarão se quero ficar.

Quando decido ir por minha conta, sem saber para onde, também estou errado.

Até morrer é obediência!

Não posso escolher continuar, não posso escolher ir embora pois depois não sei onde vou chegar, se chegar!

Se pecado é querer escolher, submissão é virtude.

O paraíso cobra grilhões, dor e esperança.

Sísifo esteve lá e quis voltar, ninguém tem esse direito. Pagou o preço de uma vida sem sentido!

Precisou conhecer dois mundos para perceber o que nunca percebemos, justamente por acreditar que o sentido sempre está onde não estamos e que, portanto, só podemos imaginar.

Descobriu a cada subida que o sentido é a falta de sentido.

Se faço o que quero, sou escravo do que quero. Se faço o que não quero, sou escravo do que “deve ser feito”.

Se existir mesmo outra estrada, começa onde essa termina. Também não há lugar para chegar. Estradas não conectam nada, levam de uma falta de sentido para outro.

Se não há nada concreto, o que sobra?

A paisagem e a intensidade da eterna despedida da vida sempre inédita; alegria que faz esquecer!

Saber-se viajando. As indicações do caminho só mostram o que não poderemos ver a cada direita ou esquerda escolhida.

Pensar é perceber o que não se sabe.

Se não sei, só posso criar. Mas até isso não é meu!

No fim, começo!

Pérolas

A mesa estava posta, música suave e, é claro, meia luz.

No balcão que fica ao lado da mesa de jantar uma foto do casal na cerimônia de casamento, em preto em branco, com as bordas desgastadas pelo tempo aparecendo rente à moldura. A comemoração das bodas de trinta anos, que como todas é irrepetível, ganha ares de maior importância pelas três décadas, já que números redondos são ciclos e parecem mais importantes que datas ditas quebradas.

No balde de gelo duas garrafas de espumante cara deixava claro a relevância da data e era o símbolo mais significativo da comemoração.

Como de hábito, o marido usava terno mesmo estando em casa, era uma reverência solene, enquanto ela que havia recém chegada do trabalho não teve o tempo necessário para preparar-se como queria, já que precisaria de horas não disponíveis. Nesse nosso tempo, a vida e os costumes mudaram e o jantar pedido pelo delivery é uma concessão inevitável.

Enquanto ela sentava a mesa, se desculpando por não estar vestida como queria, o marido maneou a cabeça e disse que o importante era a comemoração e emendou:

Trinta anos é muito tempo, estamos de parabéns! Para mim, é como se fosse hoje, incrível continuar sentido a mesma coisa por você, amor!

Ela sorri, baixa os olhos e diz com voz meiga que espera ser contrariada:

– Mesmo? Fico feliz de saber que para você nada tenha mudado. Nunca ouvi isso de nossos amigos, parecem que eles veem a passagem do tempo diferente de você, reclamam mais das esposas e vice-versa.

Talvez sejamos a exceção que comprova essa regra! Disse enquanto enchia as taças e admirava o rótulo da bela garrafa.

Durante os muito minutos do jantar consumidos lentamente, as histórias pitorescas do passado, os filhos, viagens e incidentes interessantes preencheram o tempo enquanto a primeira garrafa foi vencida e ouviu-se o espocar da segunda rolha.

Um pouco antes da sobremesa, ela fez um olhar sério, ajeitou-se na cadeia e claramente tomou coragem para dizer algo importante, não havia dúvida para qualquer expectador atento que aquilo tinha sido ensaiado mais de uma vez.

– Amor, preciso te contar uma coisa.

A mudança de tom trouxe seriedade ao rosto do marido, a atmosfera mudou. Os segundos de silêncio que seguiram ficaram pesados, até que ele com voz tremula, perguntou;

Pelo visto é sério!

Ela mantém o olhar e diz com voz baixa:

– Sério ou não é você quem decidirá. É algo que queria te contar faz tempo, na verdade, desde que nos conhecemos, e penso que esse é o momento ideal.

O marido claramente ficou desconfortável, mexeu-se na cadeira, pigarreou e colocou a mão sobre a dela:

Não precisa dizer nada e nem quero ouvir.

Ela arregala os olhos, surpresa.

– Quero fazer uma revelação e você não quer saber?

Novamente ele coloca a mão sobre a dela e com olhar firme e voz baixa diz:

Se for alguma coisa sobre você, que, de alguma forma possa fazer com que tenha que refazer minha ideia sobre a mulher com quem me casei e, por consequência, tenha que reescrever nossa história, não quero!

Ela estava incrédula. Primeiro por nunca o tê-lo visto falar daquela forma, parecia que ele era outra pessoa, seu olhar e até seu rosto pareciam diferentes do homem com quem convivia a trinta anos. Com voz assustada, disse:

– Não entendo, você parece uma outra pessoa, nunca ouvi sua voz nesse tom e seu rosto também está diferente.

Ele, lentamente preenche a taça da esposa, voltando a mostrar seu rosto de sempre e com um leve sorriso com voz professoral ergue a taça:

Exatamente! Da mesma forma que você acaba de dizer que ouviu uma voz nunca ouvida e um rosto diferente, o que você quer me dizer pode me mostrar uma mulher que nunca imaginei existir. Gosto do que imagino que você seja, é disso que gosto desde o primeiro dia.

– Qual o problema de saber mais sobre mim? Não seria mais honesto?

Não, diz ele, seja o que for não seria útil, posso não gostar de como tudo ficará se me contar.

-Então você está dizendo que prefere me imaginar que me conhecer?

Acabei de dizer. Desde o primeiro momento me apaixonei pelo que imaginei que você fosse e durante esses trinta anos fiz de tudo para manter isso intacto. Nossos amigos não conseguiram, talvez até mesmo você não tenha conseguido e isso não é uma crítica, me parece até normal, pelo visto.

– Então esse brinde que vamos fazer é verdadeiro ou falso? Ela tremia a mão.

Totalmente verdadeiro, disse ele, seja para você que ainda gosta de alguém que mudou tanto nesses anos e para mim, que quero continuar a te imaginar como no primeiro dia. Se somos felizes assim, se sentimos essa felicidade é por ser real. Tive um professor de filosofia na escola que dizia que nunca vemos a mesma realidade, que tudo que vemos somos nós mesmos em tudo, seja na vida em geral ou nas pessoas. Eu quero continuar vendo o que sempre vi e que, para mim, é o que escolhi ser verdade.

Ela encosta a taça, ouve-se um tímido som de cristal.

Ele levanta e traz um pacote de presente e diz:

Que possamos estar aqui, juntos por mais trinta anos. Amo você!

O Som do Mundo

Abri a única janela da casinha alugada para o fim de semana. Realmente não precisava outra. Era grande e antiga, e o que se via através dela poderia facilmente ser comparada a uma pintura realista da segunda metade do século XIX. Estava no alto e via-se abaixo uma grande extensão de terra. Ao centro, um pequeno lago rodeado de árvores. Sobre ele uma pequena névoa, característica das manhãs de outono. O sol nascia ao fundo fazendo brilhar o verde da extensa mata, a água ganhava uma prata brilhante na superfície e a névoa parecia algo de outro mundo, um suave algodão que se desmanchava a cada grau da temperatura que subia.

Depois do café, uma rede ao lado da janela convidava para um descanso aquecido. A carinhosa anfitriã trouxe um pote com fruta da época para fazer a espera do almoço passar desapercebida. O livro, companhia da manhã seria sobre Sartre; nossa angústia nas escolhas de quem é determinado pela vida, livre para assumir seus desejos e erros e, é claro, lamentá-los, quando o resultado decepciona.

 O “nada” do Existencialismo encanta com sua orfandade de destinos traçados e ausência de forças superiores a quem recorrer. Ser por si, nada que nos preceda a não ser o que já vivemos. Entre o que já fomos e nossas escolhas, um vazio, normalmente preenchido pelo medo de decidir. Delegar é mais fácil, procuramos seres perfeitos para decidir em um mundo repleto de imperfeições por ser impermanente. Há quem tenha medo, há quem veja um cem número de possibilidades. Ponto de vista e a vista de um ponto…

Além do lago, uma tribo originária entoava cânticos a seus deuses; a água, as árvores, o sol e as montanhas, pedindo proteção e alimento. Estão certos; deuses verdadeiros precisam fazer parte da vida de forma real. Sem água, sem o sol e a terra para cultivar não existiríamos. Mas os civilizados preferem deuses que, parece, não se importam  que a natureza pereça, são egóicos se colocando acima dela. O homem desvinculado se vê como não pertencente a esse mundo, deve ser por isso que espera por outro, pobre criança!

Ali era um outro lugar, como se apartado da realidade que, a poucos quilômetros dali se adentrava quando se chega à rodovia. O tempo se arrastava, os índios chegaram e conversavam lentamente, pausas longas para se pensar no que se pensa. A natureza nunca teve pressa, a pressa é nossa, afinal morremos!

Se a vida fosse assim, com pausas longas, Sartre precisaria procurar a angústia em outro lugar. Sei que não seria difícil de encontrar, mas não estaria na ânsia de produzir cada vez mais para ser cada vez menos. Nos falta tempo para esse “ser”, andamos rápido demais e viver vira uma planilha de Excel, uma viagem de trem bala onde as paisagens da estrada são como manchas na janela.

 Os índios tiraram o dia para explicar como vivem há tantos séculos. Disseram, que só pegam na natureza o que precisam, nada mais, nenhum acúmulo. Seu conceito de abundância é muito diferente e faz mais sentido. Já nós, precisamos do que não precisamos, quanto mais temos do que não precisamos mais sucesso temos. A necessidade do autoconhecimento nasce na falta de tempo para observar o que estamos fazendo, no automático que vivemos.

Ali, dava tempo para tudo.

De repente, aquele mundo foi invadido!

O vizinho da propriedade ao lado ligou uma roçadeira.

 O som do motor rasgou o tempo como as antigas professoras faziam com as folhas dos ditados mal feitos. Não sei se era perto ou longe, mas no silêncio tanto faz. Grama bonita precisa de motor e gasolina, como a beleza de artifícios cada vez mais sofisticados. As quase silenciosas tesouras de cortar grama foram substituídas por máquinas que, como o homem, produzem cada vez mais em menos tempo. Ali, o som estridente fez lembrar que não há como fugir do mundo, assim como só a doença para nos fazer perceber como abandonamos o essencial, aquilo que não gera lucro, mas vida! Se o corpo tem sabedoria própria, voltada para viver mais, ele nos faz parar quando perdemos o centro. Deitar a força para diminuir a velocidade, voltar a andar com tempo de olhar o que tem em volta.

O Cacique disse que sua tribo se origina no ano 1200, chegaram bem antes. Seus anciões passam sem esforço dos cem anos de vida. Suas crianças são filhos e filhas de todos, comunidade, respeito pela vida, natureza e tempo.

Sartre teria uma boa conversa com o Cacique, faria várias anotações e, ao voltar para sua mesa de bar em Paris, reescreveria sua obra “O Ser e o Nada”, com várias notas de rodapé, dizendo que, se somos assim, é por um excesso, que por definição é sempre desnecessário.

Fiquei com pena de todos nós e do mal que somos capazes de fazer com quem deveríamos aprender mais. Verdade é coisa que não é desse mundo, mas alguns estão mais perto que outros.

Vamos passar, estamos cada vez mais doentes, nos matando de várias formas.

Eles vão continuar para contar, sentados em uma roda de conversa, nossa história com final triste.

Segunda ou Terça-Feira

Era como se seu aniversário sempre caísse em uma segunda ou terça-feira.

Claro que não era verdade, já tinha vivido o suficiente para esse dia ter caído em todas as possibilidades da semana, então era um sentimento, uma metáfora. Nem sabia por que estava pensando nisso, ainda faltavam meses para chegar à data.

Os anos passam e, quando se olha, até e inocência da infância vira uma ignorância necessária para poder lidar com o que virá. Nunca sabemos se temos saudade da alegria ou de não sabermos.

Virou para o lado, não gostava de acordar tão cedo. Deveria levantar-se, ficar entregue a esses pensamentos não leva a nada. Acordado, esqueço isso tudo, de tudo. Santo remédio a rotina!

Ouviu no ônibus alguém se lamentando que tinha descoberto que seu gato estava com câncer e nada poderia ser feito, restavam poucas semanas. A pessoa comentava emocionada que começou a dar mais atenção ainda ao bicho e a impressão é que ele havia ficado melhor, mais animado. Quem não ficaria?

Todos estamos de partida desde que nascemos. Ficou pensando se saber quanto tempo resta era bom ou ruim. Tudo tem dois lados, e isso sim é ruim! O certo seria estarmos sempre nos despedindo, preparados para partir, valorizando tudo com aquele sabor de eternidade. Pensamentos de velório que esvaecem até a missa de sétimo dia.

Virou-se.

Descobriu que um amigo falecido tempos atrás tinha ganho uma rua com seu nome, bela homenagem! Decidiu ir até lá, para conhecer, nunca tinha tido a experiência de ter conhecido alguém que se tornou nome de rua. Ela estreita e curta, mas bem localizada, e ele era uma boa pessoa. Ficou pensando se isso tinha algum simbolismo. Não tinha e isso era uma bobagem. A vida pode ser mesmo uma massinha de modelar, dá para ajeitá-la como acharmos melhor. Tanto faz.

Olhou no celular, ainda faltavam vinte minutos para o despertador tocar.

Ontem não havia comprado pão. Estava cansado e só queria chegar em casa, tomar um banho e esperar, esperar que o sono chegasse para começar tudo de novo. Já havia trabalhado por tanto tempo. Havia, como Sísifo, se acostumado com sua pedra, mas ainda sofria com a montanha. Não era justo, ou era, e a justiça é que sempre foi a grande e oca esperança. Nunca existiu, só mais um placebo, remédio para dor, para curar depois da vida. Café com pão de dois dias que precisa ser esquentado para ganhar valor.

Tinha esquecido que faltavam vinte minutos e olhou de novo, apenas dois se passaram. Queria um pensamento bom que durasse dezoito minutos. Ninguém tem, se tiver não são pensamentos, são lembranças requentadas, como o pão velho, aumentadas para dar cor e brilho. Tudo já foi. Hoje é só mais um dia, a mesma pedra, a mesma subida.

Não é bom acordar cedo, ficamos sonhando, entristecidos pela vida que não aconteceu, e já nem dá mais tempo. Fantasias que só desanimam, vida que fica perfeita por ser só imaginada.

Ao lado, alguém acorda, olha o relógio e dá “bom dia”, como se, hoje, amanhã e depois fosse a mesma coisa. Um dia a pedra fica no chão, para sempre.

Sonhamos que ganharemos na loteria sem termos apostado, da mesma forma que fazemos revoluções na vida enquanto o despertador não toca.

Enquanto ia para o trabalho, decidiu que hoje não ia ver as notícias no celular, iria ouvir música, pequena revolução. Como que alguém poderia começar seu dia de trabalho sem saber as últimas notícias da política econômica, se a China decidiu alguma coisa tão longe que possa me afetar horas depois?

Hoje não, hoje é música, só as que gosto! No elevador, enquanto subia ao vigésimo andar de sua montanha, uma sensação de culpa sobreveio. Tinha família e contas para pagar. Como um profissional chega sem saber as últimas notícias?

Quanto a porta do elevador abriu, mais uma vez, escolheu a pílula azul.

Quem sabe amanhã?

O outro Eu

– Qual seu nome?

– Isso não importa!

– Como assim? Você não quer dizer seu nome?

– Quem eu sou não importa. Vou fazer uma confidência: Eu, eu mesmo, nunca fiz nada de importante. Na verdade, faço uns rolos aqui e ali, ninguém dá muita bola, é muita gente. É que agora surgiu uma chance de ser alguém com poder. Mas não tem como ser eu mesmo, já que, sendo o que sou não conseguiria, entende?

– Não consigo entender, todos tem um nome. Por que você não quer dizer seu nome?

– Eu quero ser conhecido como o oposto “dele”.

– Dele quem?

– Do “outro”.

– Entendi, agora entendo. Como você não é ninguém, sendo o oposto do outro, ganha uma identidade que, sendo você não seria possível, já que, na verdade, ser você mesmo não teria como dar certo. Muito bom, você teve uma grande ideia, parabéns!

– Na verdade essa ideia nem foi minha. Não sou bom de ideias.

– Foi de quem?

– De um pessoal aí, que está mexendo os “pauzinhos”, entende?

– Mas você acha que consegue, nunca ser você, serão alguns anos?

– Quem teve a ideia me explicou que, sendo sempre o contrário do outro, todo mundo fica a favor ou contra ele. Nesse meio tempo a gente coloca o plano em prática.

– Que plano?

– Na verdade nem eu sei, mas o “pessoal” sabe, entende?

– Mas, e se der tudo errado?

– Se der errado, como não sou eu, sempre terá outro para ser o oposto “dele”. Hora a gente perde e hora ganha. Que nem Palmeiras e Corinthians ou Vasco e Flamengo.

– Mas, se você não se sair bem, o que é provável, já que não tem uma identidade, você não ajudará o “outro” a voltar, mais forte?

– Pode ser, mas o pessoal que teve essa ideia diz que vamos aumentar o número de pessoas que são contra ele, e sempre teremos como participar e chance de ganhar de novo, de vez em quando. Claro que se “ele” se sair bem fica mais difícil, mas aí o pessoal pensa em alguma coisa.

– O pessoal das ideias?

– Eles mesmos, entende?

– Mas no longo prazo, você nunca será alguém por si mesmo, isso não incomoda?

– Vai valer a pena. Vou viver bem, me divertir, passear bastante e estar de férias quase sempre, tudo por conta.

– Mas as pessoas vão saber!

– Me disseram que posso tornar tudo segredo. Entende?

– Sim, mas preciso colocar seu nome, como posso registrá-lo sem um nome, seu nome?

– Dá para colocar meu nome e “anti ele” como sobrenome?

– Não dá, a lei pede que seja seu nome, salvo que mude no cartório.

Nesse momento, um homem que esteva o tempo todo atrás daquele que não é ele mesmo, sussurra algo no seu ouvido. O candidato pergunta em voz baixa:

– Tem certeza, tô por vocês, não me deixem mal! O homem segura no braço daquele que não é ninguém e fala mais alguma coisa.

O candidato sacode a cabeça positivamente, dá um sorriso tímido e diz:

– Pode colocar só meu nome então, entende?

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