Conto

Segunda ou Terça-Feira

Era como se seu aniversário sempre caísse em uma segunda ou terça-feira.

Claro que não era verdade, já tinha vivido o suficiente para esse dia ter caído em todas as possibilidades da semana, então era um sentimento, uma metáfora. Nem sabia por que estava pensando nisso, ainda faltavam meses para chegar à data.

Os anos passam e, quando se olha, até e inocência da infância vira uma ignorância necessária para poder lidar com o que virá. Nunca sabemos se temos saudade da alegria ou de não sabermos.

Virou para o lado, não gostava de acordar tão cedo. Deveria levantar-se, ficar entregue a esses pensamentos não leva a nada. Acordado, esqueço isso tudo, de tudo. Santo remédio a rotina!

Ouviu no ônibus alguém se lamentando que tinha descoberto que seu gato estava com câncer e nada poderia ser feito, restavam poucas semanas. A pessoa comentava emocionada que começou a dar mais atenção ainda ao bicho e a impressão é que ele havia ficado melhor, mais animado. Quem não ficaria?

Todos estamos de partida desde que nascemos. Ficou pensando se saber quanto tempo resta era bom ou ruim. Tudo tem dois lados, e isso sim é ruim! O certo seria estarmos sempre nos despedindo, preparados para partir, valorizando tudo com aquele sabor de eternidade. Pensamentos de velório que esvaecem até a missa de sétimo dia.

Virou-se.

Descobriu que um amigo falecido tempos atrás tinha ganho uma rua com seu nome, bela homenagem! Decidiu ir até lá, para conhecer, nunca tinha tido a experiência de ter conhecido alguém que se tornou nome de rua. Ela estreita e curta, mas bem localizada, e ele era uma boa pessoa. Ficou pensando se isso tinha algum simbolismo. Não tinha e isso era uma bobagem. A vida pode ser mesmo uma massinha de modelar, dá para ajeitá-la como acharmos melhor. Tanto faz.

Olhou no celular, ainda faltavam vinte minutos para o despertador tocar.

Ontem não havia comprado pão. Estava cansado e só queria chegar em casa, tomar um banho e esperar, esperar que o sono chegasse para começar tudo de novo. Já havia trabalhado por tanto tempo. Havia, como Sísifo, se acostumado com sua pedra, mas ainda sofria com a montanha. Não era justo, ou era, e a justiça é que sempre foi a grande e oca esperança. Nunca existiu, só mais um placebo, remédio para dor, para curar depois da vida. Café com pão de dois dias que precisa ser esquentado para ganhar valor.

Tinha esquecido que faltavam vinte minutos e olhou de novo, apenas dois se passaram. Queria um pensamento bom que durasse dezoito minutos. Ninguém tem, se tiver não são pensamentos, são lembranças requentadas, como o pão velho, aumentadas para dar cor e brilho. Tudo já foi. Hoje é só mais um dia, a mesma pedra, a mesma subida.

Não é bom acordar cedo, ficamos sonhando, entristecidos pela vida que não aconteceu, e já nem dá mais tempo. Fantasias que só desanimam, vida que fica perfeita por ser só imaginada.

Ao lado, alguém acorda, olha o relógio e dá “bom dia”, como se, hoje, amanhã e depois fosse a mesma coisa. Um dia a pedra fica no chão, para sempre.

Sonhamos que ganharemos na loteria sem termos apostado, da mesma forma que fazemos revoluções na vida enquanto o despertador não toca.

Enquanto ia para o trabalho, decidiu que hoje não ia ver as notícias no celular, iria ouvir música, pequena revolução. Como que alguém poderia começar seu dia de trabalho sem saber as últimas notícias da política econômica, se a China decidiu alguma coisa tão longe que possa me afetar horas depois?

Hoje não, hoje é música, só as que gosto! No elevador, enquanto subia ao vigésimo andar de sua montanha, uma sensação de culpa sobreveio. Tinha família e contas para pagar. Como um profissional chega sem saber as últimas notícias?

Quanto a porta do elevador abriu, mais uma vez, escolheu a pílula azul.

Quem sabe amanhã?

Vô Baruch

Vô Baruch sempre foi muito reservado. Falava pouco, da mesma forma que seus amigos eram raros. Gostava de escrever cartas e dizia que era do tempo em que era um desrespeito para o destinatário escrever de outro jeito que não fosse a mão.

Já estava velho, com problemas no pulmão por ter trabalhado muito tempo polindo lentes para óculos, já que as máquinas que fazem esse serviço chegaram tarde demais para ele. Estava viúvo a algum tempo e vivia de suas leituras de clássicos da filosofia. Dizia que gostaria de ter conhecido Descartes, que o admirava, mas também discordava em algumas coisas importantes. Escreveria cartas longas para ele se pudesse, mas nem sempre a vida nos coloca todos juntos. Falava pouco de seu passado, e isso sempre intrigou seu neto mais velho. Quando perguntava do passado do avô, sempre desconversavam, até que, quando fez 18 anos, sua mãe contou o que tinha ocorrido.

Fascinado pela história, o neto o procurou em uma tarde de domingo, onde o tempo sempre se arrasta. Além disso, a idade do avô não era garantia de que outras oportunidades surgiriam.

– Vô, andei conversando com a mãe. Sempre que perguntava de você, como tinha sido sua vida me enrolavam. Quando fiz dezoito anos, semana passada, pressionei e ela me contou uma história que achei muito louca. Ela me disse que o senhor foi expulso, excluído ou coisa parecida da sua religião. É verdade?

– A palavra certa é excomungado meu neto. Excomungado!

– Que significa vô?

– Que ninguém da minha família ou da congregação poderia conversar comigo, falar meu nome, ou ler meus livros. Todos deveriam agir como se eu não existisse.

– Você escreveu livros?

– Sim, mas não com meu nome. Depois que morrer, aí saberão que fui eu.

– Por quê?

– Para que nossa família não fosse prejudicada ou perseguida. Alguns amigos sofreram por gostarem das minas ideias.

– O que o senhor fez vô?

– Pensei diferente, só isso.

– Como assim, diferente?

– Vejo a vida, como somos, as religiões e Deus de uma maneira que incomoda as pessoas.

O jovem estava curioso! Nunca poderia ter imaginado que aquele sempre silencioso velhinho tivesse uma vida tão agitada. Finalmente entendia o motivo de nada contarem quando perguntava. Agora, a curiosidade era saber que ideias eram essas.

– Vô, me conta, me conta tudo!

O brilho nos olhos do neto encantou o velho Baruch. Alguém finalmente disponível para pensar diferente, ser afetado por ideias que poderiam aumentar sua capacidade de entender e, como consequência, de viver. Abertura para passar de um estado de ignorância para conhecimento, enfim, a liberdade!

– O que quer saber?

– Vamos começar pela Bíblia, o que o senhor disse que deu problema?

– Só falei que era um livro de normas de conduta da época, que nada havia de “revelação” ali. Como tudo, deveria ser lido dentro do contexto histórico em que foi escrito. De preferência, lido no idioma original. Traduções podem ser perigosas, ainda mais depois de tantas edições. Deveríamos lê-la como faria um historiador, não como algo que ultrapassasse seu tempo, que valesse para sempre.

– Vô, vai me dizer que o senhor sabe grego?

– Sei, também estudei Latim, e escrevi nesse idioma. Além da Bíblia, também disse que Moisés não escreveu o Pentateuco.

– Que massa vô! Não sabia que o senhor sabia essas línguas antigas! O que é o Pentateuco?

– Um conjunto de cinco livros atribuídos a Moisés que fazem parte do Antigo Testamento. Tem palavras lá que não existiam na época em que ele viveu, assim não poderia ter sido escrito por ele. Infelizmente, religiões deixam as pessoas cegas, isso as impedem de usar a razão. Paixões são assim. Enfim, são livros escritos por pessoas, alterados pelo tempo que não deveriam ser vistos como sagrados.

– Paixão não tem a ver com sentimento vô?

– Não, paixão é tudo aquilo que te domina e te impede de ser racional.

– Imagino a confusão! O senhor foi corajoso!

– A palavra certo seria livre, não seria eu se não exprimisse meu pensamento. Sempre tive amigos por perto, poucos é verdade. Eles gostavam de minhas ideias, diziam que ficava mais fácil perceber a vida através delas.

– Então o senhor foi excomungado por ter dito isso da Bíblia?

– Também, mas o que foi que causou impacto é como eu vejo Deus. Não falei sobre isso de forma leviana ou só com objetivo de causar polêmica. Li e observei muito antes de chegar às minhas conclusões, mas não fui entendido, disseram que era ateu.

– Mas ateu é quem diz que Deus não existe. Se o senhor vê Deus de outro jeito então não pode ser ateu?

– Em tese sim, mas para essas pessoas eu estava dizendo que o Deus deles não existia. Não importa se sua visão for de um Deus com outra forma. Ninguém gosta de perceber que aquilo em que acredita, sobre onde assenta sua fé e que ajuda a ter controle sobre si e o ajuda a entender sua realidade possa ser uma mentira. No âmbito da fé, ninguém sabe nada, por isso que precisa acreditar. Lembre meu querido neto; quando uma ideia nos possui, não pensamos sobre ela, precisamos que aquilo seja verdade, afinal somos essa ideia. Ninguém gosta de perder-se, perder uma crença é ficar nu, de certa forma.

O jovem estava em transe, uma mistura de encantamento e descoberta. Seus olhos estavam vidrados. Só pensava o tempo que perdeu jogando no celular que poderia usar para ter conversado com seu avô.

– Então vô, o que é Deus para você?

O velho suspirou, estava feliz em poder conversar sobre isso com seu neto. Sua esposa havia ficado a seu lado, mas nunca havia aceitado ele ter criado tantos problemas com suas ideias. Ela apenas chorava e silenciava. Sua filha, influenciada pela mãe ficou alheia, nunca quis saber o que o pai pensava  e ele não lutou contra. Já tinha sofrido o suficiente e entendia a esposa querer poupar a filha das suas “maluquices”. Filosofar é sempre uma solidão voluntária, ou como dizia Lucrécio, é aprender a morrer.

– Primeiro, não quero convencer você de nada meu neto. Mesmo que estejamos conversando, não é necessário que concordes comigo. São apenas minhas ideias, nada mais.

– Tranquilo vô. Gostei do que você disse sobre a Bíblia e esse outro livro, faz todo o sentido. Como o que alguém escreveu a muitos séculos possa ser usado sem filtro? Vivemos em outro mundo, é óbvio! Mas me conta, e Deus?

Baruch se ajeitou na cadeira e fez um longo suspiro, daqueles que nos avisam que estamos diante de algo demorado, além de ser um assunto que lhe custou tão caro!

– Para começar, meu querido neto, é importante que você se proponha a esquecer tudo que pensa sobre Deus. Em nossa cultura é cristã, Deus é visto como “alguém”, que lhe diz qual sua conduta correta, que pode agraciá-lo ou puni-lo, que apareceu para alguns transmitindo suas leis, alguém com quem você pode se comunicar, como se fosse uma pessoa, que está em algum outro lugar etc.

– Mas vô, Deus não é isso? Minha outra vó, disse que estamos em Deus.

– Não, Deus não pode “estar”, ele “É” tudo. Se ele pode estar, pode também não estar e não vejo como isso possa ser possível.

 O velho sorriu vendo o rosto de surpresa do neto.

– Fala logo vô, agora fiquei muito curioso.

– O que chamo de “Deus” é uma substância única, que existe em si, que não tem causa externa, logo, sendo causa de si mesma. É infinita em atributos em potência de existir. Tudo que existe, eu, você, as árvores, o ar, tudo aquilo que chamo de “natureza” são modos ou expressões dessa infinita potência que é Deus. Não está em algum lugar, não é alguém com quem possamos conversar, que se alegra ou se entristece de nossas ações. Digo que é imanente, que está em tudo, É tudo! Tudo que existe é uma expressão dessa substância primeira.

– Vô, que complexo! Se entendi, é como se essa “substância” fosse, por exemplo, uma massa de modelar e tudo que existe é feito dessa massa? Cada coisa é uma coisa, mas a massa é a mesma?

– Seu exemplo é ótimo! Cada modo de usar essa massa é um dos componentes do que chamo “Natureza”, que tem seu jeito, seu tipo de vida etc. Vale para tudo que existe!

– Se somos uma expressão de Deus, que é uma substância infinita, porque somos finitos, por que morremos?

– “Morremos” por sermos uma expressão de Deus que pode ser limitada por outra coisa. Somos limitados a nosso corpo, pelo espaço, por influências externas e não somos causa de nós mesmos. Somos “causados” externamente. Por exemplo, fui causado pelo meus pais, posso ficar triste, doente ou alegre por causas externas a mim. Nós pensamos, justamente por sermos finitos e não sabermos de tudo, já que a soma de todos os modos ou atributos de Deus é muito maior que nós, individualmente. Quanto a morrer, não penso morremos na acepção da palavra. O que acontece, como essa substância é perfeita e infinita, ela não poderia perder partes de si. O que chamamos de morte, nada mais é que uma nova maneira que essa parte da substância que somos nós se rearranja na natureza. Se somos enterrados, nos decompomos, se cremados, nos tornamos cinza e fumaça. Assim, nada nunca se perde da substância infinita, só muda de estado, de forma e possibilidades. Nossa mente, sim ela morre, por ser uma ideia, uma forma da substância que somos se expressar. A outra é pelo que chamo de extensão ou corpo. Criamos ideias pela mente e as transformamos em ações pelo corpo. Quando nos decompomos em outras formas de expressão de Deus (o que chamamos de morte), essa nova maneira não tem mente e corpo. Se você observar, morremos sempre por causas externas, não fossem elas, mais fortes que nós em determinado momento, nunca morreríamos.

O jovem estava atônito. Essa maneira de ver Deus era tão diferente de tudo que tinha aprendido que precisava desmontar tudo para poder compreender melhor o que seu avô estava dizendo. Por outro lado, essa é uma visão fascinante, nova e libertadora! Depois de alguns segundos disse sorrindo:

– Agora entendi por que foi excluído.

–  Fui excomungado, excomungado.

–  Sim vô, excomungado. Sua maneira de ver invalida o Deus da maioria das pessoas desse mundo. Se for assim, se entendi direito, não existe milagre então?

– Claro que não!  Pense, como uma substância perfeita precisaria interferir em si mesma? A perfeição seria imperfeita se o milagre fosse necessário!  Na verdade, o que chamamos de milagre são apenas coisas que não entendemos como são causadas. Milagre é sinônimo de ignorância das causas.

– Então tudo só pode ser do jeito que é?

– Sim, se somos expressões dessa substância infinita chamada Deus, limitados e causados externamente, tudo que acontece só pode ser do jeito que é, nunca de outro. Para ser de outro, as causas deveriam ser outras, entende?

– Então a culpa não existe vô?

– Culpa seria poder fazer de um jeito diferente, para isso precisaríamos ser diferentes do que somos a cada momento. Tudo que fazemos é só o que podemos fazer naquele instante. Os efeitos sobre nós das nossas ações e da própria vida, vão nos mudando. Essa pessoa que vamos ser depois, só poderá agir sendo quem é, levando em conta os efeitos do que fez, trazendo causas novas as suas ações. Por isso que dizemos que não faríamos tal coisa novamente, isso só acontece por termos sido afetados ou mudados pela ação anterior, seja ela nossa ou de algo que a vida nos afetou e transformou em nossa mente (pensamento) e corpo a agir de um jeito novo.

O jovem estava com lágrimas nos olhos. Olhou pela janela e viu que já anoitecia. Tinha perdido a noção do tempo. Estava sentindo um transbordamento, uma espécie de prazer por ser agora alguém que via tudo por um ângulo maior.

– E rezar?

– Como vejo Deus, ele não é alguém que te possa escutar, ele não precisa de templos e promessas e não dá ou tira nada de ninguém. Ele é a própria vida que se expressa a cada momento dentro da natureza de cada ser, do vento, da terra, montanhas, trovões, dos animais e assim por diante. O mais difícil, penso, é mudarmos a ideia de um Deus que não esteja em algum lugar, sendo parecido conosco, só que eterno. A “eternidade” de Deus só existe por morrermos. Tudo que existe é Deus em suas várias e infinitas formas de se expressar, desde antes do ser humano existir nesse planeta.

O neto ficou olhando para o chão. As palavras do avô o estavam transformando rapidamente em alguém muito diferente do que era quando essa conversa começou.

-Tem mais vô?

– Também falei sobre os afetos, sobre liberdade, desejo e política.

– Onde estão seus livros vô?

– Com meus amigos. O dia em que minha substância se rearranjar, meus amigos vão publicar e só assim saberão meu nome. Daí ninguém poderá fazer mais nada contra mim.

– Queria ler, saber mais. Tudo isso é tão claro, tão mais possível! Tudo que pensava antes da nossa conversa é como se fosse uma história infantil.

– Você lerá, assim como muitos!

– Posso voltar depois, outro dia? Quero saber sobre o resto.

– Claro! É sempre bom conversar!

O jovem abraçou seu avô e não conseguiu conter a emoção. Era um misto de culpa por ter perdido tanto tempo e alegria por estar diante de um pensamento tão diferente. Seu avô, falou no seu ouvido, como se estivesse lendo seus pensamentos:

– Lembre, tudo só pode ser do jeito que é. Nunca se culpe! Culpa, medo e ignorância servem apenas como forma de poder, de controle! Um dia, falaremos sobre desejo, mas posso adiantar que nosso principal desejo é governar a própria vida e não que ela seja governada por outro. Para que alguém governe sobre nós, precisamos estar com medo, tristes, ignorantes e impotentes e não termos nenhuma liberdade, consequentemente.

– O que é ser livre?

– Conhecer pela causa e agir de acordo com a razão, ser governado por si mesmo. Depois, explico melhor, já é tarde.

Ao chegar na porta do quarto, virou-se e perguntou:

– Vô, como vai se chamar o livro?

– Estou pensando em “Ética”, o que acha?

Wanderley e a invisibilidade

Perdi tudo doutor, tudo!

– Me explique melhor, o que é esse “tudo” que você diz que perdeu?

Tudo é tudo! É como se, simplesmente, deixasse de existir. Nem no meu próprio apartamento posso voltar. Precisarei de ajuda até para isso! Sabe, tenho 53 anos e isso tudo é tão irreal, mesmo para mim que já vivi meio século... Não basta nem dizer que eu sou eu. Acabei de vir do banco e a moça que me cuida da minha conta há muitos anos não pode me ajudar. Eu disse: Você sabe que eu sou eu! Ela respondeu que sabia, mas que não bastava, mesmo sabendo que eu era eu.

   O terapeuta respeitou o silêncio, parecia que estava diante de uma grave crise de identidade. Revolveu não fazer mais perguntas e esperar. O cliente, ainda com o olhar vazio, estava tentando colocar isso tudo dentro da vida real.  Depois de alguns segundos, fitou os olhos do terapeuta e prosseguiu:

– Estou com fome. São 18 horas agora e estou só com o café da manhã que tomei em casa. Ainda terei que voltar a pé, mas que bom que o senhor me atendeu doutor. É tudo tão sem sentido.

– Você não almoçou, por quê?

Não tinha como pagar.

– Não tinha dinheiro?

Claro que tinha, como tenho para estar aqui.

O terapeuta não podia adiar novas perguntas, estava também ele sem entender o que estava acontecendo. Como profissional, não poderia deixar o cliente sair do consultório sem alguma melhora ou entendimento.

– Tudo que você falou até agora está confuso. O que ocorreu no banco, de não poder entrar em seu apartamento, o fato de não ter almoçado mesmo tendo dinheiro e estar agora com fome. Seja mais específico em me dizer o que está acontecendo. Você não sabe quem é, perdeu a memória?

– Claro que sei quem sou e muito bem! Mas é como não existisse para a mundo desde hoje pela manhã. Descobri que não basta simplesmente existir, já não é mais suficiente.

– Mas o que, afinal, o que aconteceu hoje pela manhã que lhe trouxe tanto incômodo e a fazer essas reflexões existenciais. Pelo visto, você gosta de filosofia?

Não doutor, nunca me interessei por filosofia. Sempre achei que sabia quem era e até achava esse negócio de autoconhecimento bobagem. Todo mundo sabe quem é!

O terapeuta preferiu não adentrar ao tema. O tempo estava passando e não era hora de explicar o que Sócrates queria com suas perguntas. Precisariam de uma sessão só para isso e ele ainda não tinha compreendido nada sobre o que estava atormentando aquele homem. Então, decidiu dizer:

– Podemos então deixar o assunto da filosofia para outro dia, caso você resolva voltar. Quero que me diga o que houve para que possa atentar ajudá-lo.

Eu perdi, doutor, simplesmente perdi! Sempre fui um cara esquecido. Sempre temi esquecer as coisas desde a escola. Sabia que com dez anos já tinha uma agenda? Minha mãe dizia que era estabanado e sempre teria problemas. Ela tinha razão. Mães sempre sabem não é doutor?

– Sim, mas, por favor, o que aconteceu, o que o senhor diz que perdeu quando disse que tinha deixado de existir?

O cliente olhou para baixo, parecia exausto.

Descobri que não sou o Wanderley que sempre pensava que era. Não adianta ser o Wanderley, não basta!

– Por que não basta Wanderley?

– De nada adianta ser o Wanderley, ter um apartamento, uma conta no banco. Mesmo agora, ser quem sou de nada vai adiantar.

– Por que Wanderley?

Perdi um papel doutor, sempre estava na minha carteira e, simplesmente, perdi.

– O que tinha nesse papel Wanderley?

Wanderley notou assustado que gotas de suor brotavam da testa do terapeuta.

Perdi o papel onde anoto todas as minhas senhas, todas estavam lá. Não pude tirar dinheiro do banco, não lembrava da senha dos cartões, de nenhum deles para pagar o almoço, também não lembro da senha do aplicativo para chamar o Uber para voltar para casa. Também não sei de cabeça a senha da porta do prédio onde moro. Sou estabanado, muito estabanado! De que adianta ser Wanderley, sem as senhas? Tem senhas de quatro, seis, oito números. Outras que tem letras e números, letras maiúsculas e minúsculas. Tudo pede senhas “fortes” e essas são tão difíceis de lembrar, precisam de números, letras, caracteres, impossível lembrar, não consigo! E nenhuma deixa colocar a data de nascimento, que seria a mais fácil para mim, já que nunca esqueço o dia que nasci. Essa ninguém esquece, não é doutor?

Wanderley não percebeu, mas o terapeuta já não estava mais ouvindo.

– Doutor, o senhor acha que com essa tecnologia toda, daqui a pouco também teremos números minúsculos?

O terapeuta estava, agora, ele, atônito!

Doutor, doutor…

– Sim Wanderley, voltando do transe que estava, fale.

Posso pagar a consulta quando achar o papel ou refizer as senhas?

Valdir e o contrabaixo

“Seu” Valdir sempre foi um cara quieto. Uns diziam que ele era assim por uma reação a vida; dona Noeli falava sem parar e sobrava para ele escutar. Esse foi um mistério que se perdeu e nunca teremos resposta, como outros, dizem até mais importantes, mas que no fundo vivem mesmo de não serem respondidos. Ainda bem que ninguém sabe, quanta gente vive disso; mistérios, não é?
Mas o que importa aqui foi uma conversa que aconteceu quando Valdir Neto, que pelo nome e sobrenome se explica, tirou um tempo para conversar com o avô. “Seu” Valdir, sempre aos domingos após o almoço, sentava na varanda com seu rádio para ouvir o futebol, enquanto os filhos e a mãe conversavam na cozinha, fazendo hora para o café da tarde, com a insubstituível cuca de farofa. Nesse dia, como já anunciado no começo desse parágrafo, o neto que, a partir de agora chamaremos de “Valdirzinho”, na ocasião com 15 anos, fez o que nunca tinha feito; se interessou pela vida do avô. O diálogo que agora se segue, é o relato fiel desse encontro único.
– Oi vô!
– E aí Neto, como estão as coisas?
-Bem.
Nesse momento é importante avisar que Valdirzinho não tinha um assunto específico, nem ele mesmo sabia o motivo de estar ali. Tivemos alguns bons segundos de intervalo, de um lado, “Seu” Valdir curioso pela vinda do neto conversar e de outro o neto procurando um assunto.
-Vô, tem um violão no seu quarto, naquela caixa?
– Não é violão Neto, é contrabaixo.
-Sempre pensei que fosse violão. Nunca vi o senhor tocar.
-Não tenho vontade, faz tempo. Toquei durante um tempo, mas a música não foi o que esperava.
-Tocou sempre sozinho vô?
– No começo sim, depois participei de uma banda.
Nunca Valdirzinho poderia esperar por isso! Sempre viu o avô meio de canto, falando pouco. A imagem dele em um palco foi difícil de criar naquele momento. Mas a curiosidade cresceu e agora, tínhamos muito interesse no garoto pelo avô, fato inédito para os dois.
– Conta vô, como foi isso?
-Tinha uma época, quando comecei a trabalhar que tive vontade e algum dinheiro para aprender um instrumento. Na época, não tinha tanta coisa como hoje. Sobrava tempo. Queria aprender guitarra, mas o professor não tinha uma disponível, só contrabaixo. Disse para ele que achava contrabaixo meio sem graça, nem notava na música quando ouvia. Lembro de ele ter dado uma risada. Me emprestou um LP, disco de vinil.
-Aqueles pretos que vejo nos sebos?
-Isso, é o que se tinha na época. Ele me deu o disco e disse para ouvir e depois voltar lá. Fiquei encantado Neto! Era um disco de um cara chamado Paul Chambers e tinha uma música, nunca esqueço, chamada “Dexterity”. Bom, foi a primeira vez que ouvi jazz, não conhecia. Na hora percebi que o contrabaixo poderia ser importante. No caso do Chambers, era um solista. Desde ali, o jazz com seus improvisos virou a música que gosto, até hoje.
-Nunca vi o senhor ouvindo música vô.
– Sua vó não gosta. Ouço às vezes quando ela não está. Ela diz que música que ninguém canta não tem graça.
-E a banda?
-Então, aprendi rápido, gostei do instrumento. O problema é que não tinha com quem tocar. Naquele tempo, em uma cidade do interior, no final dos anos 60 ninguém gostava de Jazz, só eu e o cara que me ensinou. Um dia uns caras me convidaram para fazer parte de uma banda. Era uma banda de rock, que estava ainda começando na época. Toquei com eles por uns oito ou nove anos. Quando comecei a namorar sua avó sai.
-Foi legal?
-Não muito para mim. Só quem toca sabe a importância do contrabaixo, é mais importante para a banda do que para o público.
-Pegou muita menina vô?
“Seu” Valdir riu alto,
– Éramos em quatro. Quem mais pegava era o vocalista, escolhia uma menina da plateia e cantava para ela. Deu muita briga nos bailes do interior por causa dele, às vezes escolhia uma menina que tinha namorado. Depois era o guitarrista, ele tinha cabelo comprido e tocava com a camisa aberta. Já as meninas mais animadas preferiam o baterista. Ele sempre tirava a camisa durante a apresentação e suava bastante. Eu ficava mais na minha, não aparecia muito e raras vezes acontecia algo para mim. Não tinha solos e ninguém me notava. Eles trocavam os nomes e usavam nomes americanos, era moda. Minha mãe disse que se fizesse isso ela não deixaria mais entrar em casa. Então tinha o “John”, o “Michel”, o “Lucke” e eu, o Valdir. Quando no final do show o vocalista nos apresentava, eu sempre era o ultimo e ninguém quase aplaudia. Destino de contrabaixista que tocava com “americanos” com nome caipira.
O neto riu e dava para perceber que imaginava as cenas. Percebeu um vô que nunca imaginava que existia com histórias interessantes para contar.
-A vó conheceu o senhor tocando?
-Não, conheci sua avó através do irmão dela, fizemos curso de datilografia juntos. Uma vez ela foi numa apresentação. Como ela ia muito na Igreja, disse que não daria certo, o padre falava que rock tinha parte com o “capeta”. Daí eu parei para namorar. Depois fiz contabilidade, trabalhei nisso por quase quarenta anos e estamos aqui.
-Quanta coisa né vô?
-Sabe Neto, às vezes eu acho que foi pouca. Se morasse em outro lugar, se tivesse um grupo de Jazz para tocar. Bem que meu nome poderia ser com “W” e “y”. Não acha? Nem sempre tudo dá certo no final em relação a nossos sonhos. Minha lembrança era me contentar sempre com pouco. Mas no fim, parece que está certo desse jeito, ou não tem um jeito certo.
O assunto acabou com Valdirzinho vendo o avô com um olhar perdido, como se quisesse reescrever esta história.
Hoje, Valdir Neto é empresário e aprendeu a gostar de jazz. Mora em uma boa casa e já tem suas próprias histórias. No “quartinho da bagunça” está o contrabaixo do seu avô, herança que o pai não quis. Vez por outra ele abre a caixa e lembra daquela conversa. Tudo poderia ser diferente na vida e temos quase nenhum controle. Se o avô tivesse uma guitarra e se chamasse Waldyr ele provavelmente não estaria ali.

A Ceia

Todos ainda estavam sentados em torno da mesa.

Como sempre, comida de sobra, com a velha desculpa que será consumida nos dias seguintes. Ao lado da mesa, papeis de presente rasgados depois da revelação do “amigo secreto” estavam amontados em um pequeno monte. Sentia-se um desconforto no ar.

Quando se come mais que o necessário, o corpo precisa se ajustar ao fastio. Uma sensação desagradável e um arrependimento obrigatório, como uma ressaca moral. O preço que o metabolismo cobra é uma certa tristeza, um ânimo rebaixado pelo prazer em excesso. Tudo tende ao equilíbrio, como um elástico, quando solto depois de esticado, fica menor por ter estado grande demais.

O rito já tinha sido cumprido. Oração, brincadeiras que se repetiam e, por fim, antes do jantar, a lembrança dos que já morreram. Alguém havia sugerido inverter a ordem, começando pela tristeza e depois rumar para a alegria. Voto vencido pela tradição que diz que a tristeza é mais importante, precisando, portanto, ficar para o final em respeito aos mortos. Fala-se como se estivessem ali, mas a reação é como se tivessem desaparecido para sempre. Primeiro a morte, depois a vida. Quanto encantamento por uma expectativa!

A matriarca passava os olhos em torno da mesa. Filhos já mais do que maduros, netos adolescentes contando os minutos para poderem ir para outro lugar. Percebia pelos olhares que trocavam. Como isso deve ser maçante para eles, pensava. Ela sabia que, quando morresse, tudo iria acabar. Nenhum dos seus filhos tinha sua determinação para manter a família unida, ou porque não gostavam desse tipo de encontro familiar. Na verdade, ela nunca havia permitido que escolhessem.

 O que a mantinha com força de continuar apesar do corpo cansado e dolorido era o próximo natal. Ver todos juntos, resultado de um encontro fortuito transformado em família ocorrido a sessenta anos atrás. Ninguém estaria ali, se ela não tivesse que se abrigar em uma loja durante um forte temporal. O rapaz simpático do balcão virou pai de seus filhos. Estaria tudo “escrito” ou um mero acaso causado por uma tempestade de verão? Pensou muito sobre isso, depois descobriu que era perda de tempo.

Chegou a pensar em perguntar se todos gostavam dessa reunião na noite do dia 24, mas desistiu. Sabia que diriam que sim, mas não estava com vontade de ver rostos com outras respostas. Melhor esperar estar enganada. Nunca conseguimos nos iludir completamente, mas existe a velha e imortal esperança de que o que está diante dos olhos e da razão seja mentira.

Faltavam crianças. Noite de natal sem elas não é a mesma coisa. O brilho nos olhos pelo esperado presente é um sinal de espanto com a vida que vamos perdendo com tempo. Crianças e velhos curtem mais esses momentos. Os pequenos estão descobrindo um mundo que vai ficando maior a cada dia. Poucas decepções, só as que os pais zelosos não conseguem evitar. Já os mais velhos, curtem tudo com ar de despedida, chegando cada vez mais perto da grande pergunta. Querendo evitar descobrir a resposta, esticando a vida, mesmo com limitações.

O filho mais velho cochilava. A esposa, ao lado, fazia bolinhas de papel com pedaços de guardanapos. Estavam todos esperando que ela levantasse para irem dormir enquanto os netos teclavam nos celulares.

Amanhã estaria sozinha de novo. Desde a morte do marido, percebeu, que a cada ano um dos filhos ficava com ela para o almoço do dia 25. Um revezamento, que a fazia sentir-se um estorvo. Como de costume, as sobras da noite ganhariam vida no almoço do dia seguinte, já em pratos do dia a dia.

No ano novo, um dos outros filhos viria buscá-la para a virada. Depois, uns dias na praia com o encarregado da vez.  Lembrou-se da Santa que passa três  dias em cada casa durante o mês, levando proteção e bênçãos, ficando, a cada visita, mais pesada na gaveta debaixo da minicapela, com mais moedas e menos notas. Sinal dos tempos.

Levantou-se da mesa com dificuldade. Todos “voltaram a vida” e fizeram os pequenos comentários habituais; “já é tarde”, “estava tudo ótimo mãe!” e o mais comum de todos: “Mais um natal se passou…”. Dias de preparativos e combinações para um jantar que misturava alegria, melancolia e constrangimento cada vez em doses mais desproporcionais. Teatro familiar obrigatório, determinado por uma data. Preferia cada vez mais comemorar seu aniversário, nesse dia ela tem certeza que estão felizes por ela ainda estar viva.

Enquanto todos se levantavam, a velha senhora desejou a todos um “Feliz natal” e saiu sem que percebessem seu nó na garganta.

Sentiu um alívio ao deitar e percebeu que estava cada vez mais cansada sem motivo, já que tudo que fazia era viver preocupada com todos e da saudade dos tempos que as crianças corriam pela casa.

As imagens dos seus cinco netos lhe vieram à cabeça e percebeu que chegará uma hora em que eles também estariam contando os dias para o próximo natal.

No ano seguinte, como a velha senhora imaginou, cada filho fez seu natal particular e a noite do dia 24 foi trocada por um almoço dias antes onde nem todos puderam participar.

 Final de ano é sempre tão corrido…

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