Wanderley e a invisibilidade
– Perdi tudo doutor, tudo!
– Me explique melhor, o que é esse “tudo” que você diz que perdeu?
– Tudo é tudo! É como se, simplesmente, deixasse de existir. Nem no meu próprio apartamento posso voltar. Precisarei de ajuda até para isso! Sabe, tenho 53 anos e isso tudo é tão irreal, mesmo para mim que já vivi meio século... Não basta nem dizer que eu sou eu. Acabei de vir do banco e a moça que me cuida da minha conta há muitos anos não pode me ajudar. Eu disse: Você sabe que eu sou eu! Ela respondeu que sabia, mas que não bastava, mesmo sabendo que eu era eu.
O terapeuta respeitou o silêncio, parecia que estava diante de uma grave crise de identidade. Revolveu não fazer mais perguntas e esperar. O cliente, ainda com o olhar vazio, estava tentando colocar isso tudo dentro da vida real. Depois de alguns segundos, fitou os olhos do terapeuta e prosseguiu:
– Estou com fome. São 18 horas agora e estou só com o café da manhã que tomei em casa. Ainda terei que voltar a pé, mas que bom que o senhor me atendeu doutor. É tudo tão sem sentido.
– Você não almoçou, por quê?
– Não tinha como pagar.
– Não tinha dinheiro?
– Claro que tinha, como tenho para estar aqui.
O terapeuta não podia adiar novas perguntas, estava também ele sem entender o que estava acontecendo. Como profissional, não poderia deixar o cliente sair do consultório sem alguma melhora ou entendimento.
– Tudo que você falou até agora está confuso. O que ocorreu no banco, de não poder entrar em seu apartamento, o fato de não ter almoçado mesmo tendo dinheiro e estar agora com fome. Seja mais específico em me dizer o que está acontecendo. Você não sabe quem é, perdeu a memória?
– Claro que sei quem sou e muito bem! Mas é como não existisse para a mundo desde hoje pela manhã. Descobri que não basta simplesmente existir, já não é mais suficiente.
– Mas o que, afinal, o que aconteceu hoje pela manhã que lhe trouxe tanto incômodo e a fazer essas reflexões existenciais. Pelo visto, você gosta de filosofia?
– Não doutor, nunca me interessei por filosofia. Sempre achei que sabia quem era e até achava esse negócio de autoconhecimento bobagem. Todo mundo sabe quem é!
O terapeuta preferiu não adentrar ao tema. O tempo estava passando e não era hora de explicar o que Sócrates queria com suas perguntas. Precisariam de uma sessão só para isso e ele ainda não tinha compreendido nada sobre o que estava atormentando aquele homem. Então, decidiu dizer:
– Podemos então deixar o assunto da filosofia para outro dia, caso você resolva voltar. Quero que me diga o que houve para que possa atentar ajudá-lo.
– Eu perdi, doutor, simplesmente perdi! Sempre fui um cara esquecido. Sempre temi esquecer as coisas desde a escola. Sabia que com dez anos já tinha uma agenda? Minha mãe dizia que era estabanado e sempre teria problemas. Ela tinha razão. Mães sempre sabem não é doutor?
– Sim, mas, por favor, o que aconteceu, o que o senhor diz que perdeu quando disse que tinha deixado de existir?
O cliente olhou para baixo, parecia exausto.
– Descobri que não sou o Wanderley que sempre pensava que era. Não adianta ser o Wanderley, não basta!
– Por que não basta Wanderley?
– De nada adianta ser o Wanderley, ter um apartamento, uma conta no banco. Mesmo agora, ser quem sou de nada vai adiantar.
– Por que Wanderley?
– Perdi um papel doutor, sempre estava na minha carteira e, simplesmente, perdi.
– O que tinha nesse papel Wanderley?
Wanderley notou assustado que gotas de suor brotavam da testa do terapeuta.
– Perdi o papel onde anoto todas as minhas senhas, todas estavam lá. Não pude tirar dinheiro do banco, não lembrava da senha dos cartões, de nenhum deles para pagar o almoço, também não lembro da senha do aplicativo para chamar o Uber para voltar para casa. Também não sei de cabeça a senha da porta do prédio onde moro. Sou estabanado, muito estabanado! De que adianta ser Wanderley, sem as senhas? Tem senhas de quatro, seis, oito números. Outras que tem letras e números, letras maiúsculas e minúsculas. Tudo pede senhas “fortes” e essas são tão difíceis de lembrar, precisam de números, letras, caracteres, impossível lembrar, não consigo! E nenhuma deixa colocar a data de nascimento, que seria a mais fácil para mim, já que nunca esqueço o dia que nasci. Essa ninguém esquece, não é doutor?
Wanderley não percebeu, mas o terapeuta já não estava mais ouvindo.
– Doutor, o senhor acha que com essa tecnologia toda, daqui a pouco também teremos números minúsculos?
O terapeuta estava, agora, ele, atônito!
– Doutor, doutor…
– Sim Wanderley, voltando do transe que estava, fale.
– Posso pagar a consulta quando achar o papel ou refizer as senhas?