Autoconhecimento

Wanderley e a invisibilidade

Perdi tudo doutor, tudo!

– Me explique melhor, o que é esse “tudo” que você diz que perdeu?

Tudo é tudo! É como se, simplesmente, deixasse de existir. Nem no meu próprio apartamento posso voltar. Precisarei de ajuda até para isso! Sabe, tenho 53 anos e isso tudo é tão irreal, mesmo para mim que já vivi meio século... Não basta nem dizer que eu sou eu. Acabei de vir do banco e a moça que me cuida da minha conta há muitos anos não pode me ajudar. Eu disse: Você sabe que eu sou eu! Ela respondeu que sabia, mas que não bastava, mesmo sabendo que eu era eu.

   O terapeuta respeitou o silêncio, parecia que estava diante de uma grave crise de identidade. Revolveu não fazer mais perguntas e esperar. O cliente, ainda com o olhar vazio, estava tentando colocar isso tudo dentro da vida real.  Depois de alguns segundos, fitou os olhos do terapeuta e prosseguiu:

– Estou com fome. São 18 horas agora e estou só com o café da manhã que tomei em casa. Ainda terei que voltar a pé, mas que bom que o senhor me atendeu doutor. É tudo tão sem sentido.

– Você não almoçou, por quê?

Não tinha como pagar.

– Não tinha dinheiro?

Claro que tinha, como tenho para estar aqui.

O terapeuta não podia adiar novas perguntas, estava também ele sem entender o que estava acontecendo. Como profissional, não poderia deixar o cliente sair do consultório sem alguma melhora ou entendimento.

– Tudo que você falou até agora está confuso. O que ocorreu no banco, de não poder entrar em seu apartamento, o fato de não ter almoçado mesmo tendo dinheiro e estar agora com fome. Seja mais específico em me dizer o que está acontecendo. Você não sabe quem é, perdeu a memória?

– Claro que sei quem sou e muito bem! Mas é como não existisse para a mundo desde hoje pela manhã. Descobri que não basta simplesmente existir, já não é mais suficiente.

– Mas o que, afinal, o que aconteceu hoje pela manhã que lhe trouxe tanto incômodo e a fazer essas reflexões existenciais. Pelo visto, você gosta de filosofia?

Não doutor, nunca me interessei por filosofia. Sempre achei que sabia quem era e até achava esse negócio de autoconhecimento bobagem. Todo mundo sabe quem é!

O terapeuta preferiu não adentrar ao tema. O tempo estava passando e não era hora de explicar o que Sócrates queria com suas perguntas. Precisariam de uma sessão só para isso e ele ainda não tinha compreendido nada sobre o que estava atormentando aquele homem. Então, decidiu dizer:

– Podemos então deixar o assunto da filosofia para outro dia, caso você resolva voltar. Quero que me diga o que houve para que possa atentar ajudá-lo.

Eu perdi, doutor, simplesmente perdi! Sempre fui um cara esquecido. Sempre temi esquecer as coisas desde a escola. Sabia que com dez anos já tinha uma agenda? Minha mãe dizia que era estabanado e sempre teria problemas. Ela tinha razão. Mães sempre sabem não é doutor?

– Sim, mas, por favor, o que aconteceu, o que o senhor diz que perdeu quando disse que tinha deixado de existir?

O cliente olhou para baixo, parecia exausto.

Descobri que não sou o Wanderley que sempre pensava que era. Não adianta ser o Wanderley, não basta!

– Por que não basta Wanderley?

– De nada adianta ser o Wanderley, ter um apartamento, uma conta no banco. Mesmo agora, ser quem sou de nada vai adiantar.

– Por que Wanderley?

Perdi um papel doutor, sempre estava na minha carteira e, simplesmente, perdi.

– O que tinha nesse papel Wanderley?

Wanderley notou assustado que gotas de suor brotavam da testa do terapeuta.

Perdi o papel onde anoto todas as minhas senhas, todas estavam lá. Não pude tirar dinheiro do banco, não lembrava da senha dos cartões, de nenhum deles para pagar o almoço, também não lembro da senha do aplicativo para chamar o Uber para voltar para casa. Também não sei de cabeça a senha da porta do prédio onde moro. Sou estabanado, muito estabanado! De que adianta ser Wanderley, sem as senhas? Tem senhas de quatro, seis, oito números. Outras que tem letras e números, letras maiúsculas e minúsculas. Tudo pede senhas “fortes” e essas são tão difíceis de lembrar, precisam de números, letras, caracteres, impossível lembrar, não consigo! E nenhuma deixa colocar a data de nascimento, que seria a mais fácil para mim, já que nunca esqueço o dia que nasci. Essa ninguém esquece, não é doutor?

Wanderley não percebeu, mas o terapeuta já não estava mais ouvindo.

– Doutor, o senhor acha que com essa tecnologia toda, daqui a pouco também teremos números minúsculos?

O terapeuta estava, agora, ele, atônito!

Doutor, doutor…

– Sim Wanderley, voltando do transe que estava, fale.

Posso pagar a consulta quando achar o papel ou refizer as senhas?

Eternidade, para quê?

“O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel”.

                                              Platão

“Nós somos cidadãos da eternidade”.

                                           Fiódor Dostoiévski

Foi com a chegada do cristianismo que surgiu no ocidente a ideia de permanência da identidade após a morte. Na época, o que se acreditava, era que, ou éramos compostos de átomos e vazio (ler artigo “Demócrito, o quântico”), ou que nossa alma retornava ao mundo das ideias sugerido por Platão de onde viemos para esse mundo de formas e imperfeições.

Querer continuar a “viver”, mais que um desejo ou medo de desaparecer sempre foi resultado dos nossos apegos a coisas e pessoas que, por comporem nossa identidade, são a razão de existirmos. Em outras palavras, somos nossas relações. Continuar nossos relacionamentos em outro mundo nada mais é do que querer continuar a ser quem somos. Chega ser engraçado que pessoas com vidas sofridas e cheias de problemas de toda ordem, não querem ser outra pessoa nessa próxima vida. Sofrimento e dor também geram pego.

Na dúvida, como bem diz Saramago em seu ótimo livro “Todos os nomes”, escrevemos nomes em lápides, quase indestrutíveis a passagem do tempo. Tudo com objetivo de sermos, pelo menos, uma lembrança que teima em continuar.

Em muitos outros textos, lembrei que esse tipo de interesse em vidas futuras, tem um efeito colateral irrecuperável que é a perda de foco, interesse e vontade de melhorarmos ou vivermos melhor essa vida presente, inquestionavelmente verdadeira. Adiar planos ou realizações, também explica um pouco de preguiça e vontade de arredar algumas pedras pesadas, que preferimos atribuir ao carma ou outra fantasia. Mas, quando isso é uma escolha consciente, longe de ser um problema, é um exercício de decisão, de saber por que dissemos um sim ou um não. Fazer da vida, algo que estamos longe de entender pela sua complexidade, algo tão simples como sofrer agora e ter créditos depois, beira um pouco de irresponsabilidade existencial, mas o medo sempre é o pano de fundo desse triste enredo.

Se a vida são os encontros e troca de afetos, busca de crescimento, pensar, agir e ser diferente, então Viver é um ato subversivo em essência, já que a previsibilidade é o que se busca para que o rebanho não se disperse. Como bem disse Foucault, sempre teremos um padre, psiquiatra ou delegado para dar conta de nos trazer de novo para a obediência.

O ineditismo da vida, movida pelo verdadeiro desejo (ver texto anterior “Spinoza e o desejo”), não necessita que se precise viver novamente. Afinal, quer queiramos ou não, sempre que nos relacionamos com a vida, e isso acontece sempre, estamos alterando a realidade com a nossa presença. Seja o que fazemos, dizemos ou nos verem ou imaginarem, provocamos transformações na realidade que repercutirão eternamente, já que o mundo não será o mesmo depois de nós. Como todos, chegamos “in media rés”, ou seja, no meio do que já existe, que assumimos como verdadeiro e seguimos dali em frente com o tempero da nossa existência.

Ninguém passa em branco, mesmo que faça o melhor esforço para tal, já que sempre despertará, pelo menos, curiosidade sobre o motivo dessa pessoa ser tão ausente do mundo e, alguém sempre poderá achar que isso é uma boa política. Assim, mesmo a interpretação que as pessoas fazem de nós, que pode estar longe da realidade, já uma herança que deixamos. Somos então capazes de influenciar o mundo não só pelo que somos, mas pelo que se imagina que somos.

Nossas ações, aquilo que fizemos, vivemos, nos alegramos e mesmo o que nos entristece constrói essa jornada e, de alguma forma, a verdadeira eternidade (além dos genes) serão esses ecos que deixamos no mundo e nas pessoas voluntariamente ou não.

Quando passamos por ruas de cidades onde não moramos, quantos nomes e vidas que, de alguma forma, mudaram aquele lugar que a cidade se preocupou em não esquecer? Onde moramos, alguns são famosos e sabemos sua origem, e outros nem tanto. Muitas vezes, passamos pela rua que leva um nome que nos é indiferente, não temos ideia do que aquela pessoa fez que afetou esse lugar. A eternidade está em todos os lados! Já estamos nela, já que tudo que existiu antes, existe e existirá será o resultado da ação de pessoas. Na verdade, ninguém nunca morreu, já que sua marca, seja qual foi, ficou.

Nos preocupamos demais, perdemos tempo demais em querer saber se viveremos novamente, sobre a vida que já vivemos antes dessa e deixamos de perceber a realidade. Praticamos rituais e fazendo ações que buscam garantir essa possibilidade tão incerta em troca de avançarmos naquilo que é o mais verdadeiro de tudo.

Adoramos o mistério e o invisível, já que são ótimas telas onde podemos projetar o motivo de nossos medos e adiamentos. Queremos controlar o incontrolável, prever o imprevisível, subindo contra a força desse rio gigantesco chamado vida, quando poderíamos aproveitar a correnteza, fazendo sim nosso percurso, assinando a autoria da nossa existência naquilo que nos é possível. Para isso, simplesmente parar de brigar, de lutar uma luta que nem percebemos que estamos sós no ringue e que conseguimos, ainda assim, perder, nocauteados pela tristeza e a ansiedade. De uma lado, a tristeza, de sempre esperarmos que a vida deveria ser diferente, de outro, o medo que aconteça o que tememos, justamente por nunca ser como esperamos. Esse é o círculo vicioso do sofrimento.

A eternidade nunca foi um tempo contínuo, mas a ausência do que chamamos “tempo”, diferença entre o nascer e o morrer de cada um. Como bem diz o poeta Mário Quintana, a eternidade é um relógio sem ponteiros. Quando estamos “vivos”, exercitando nosso desejo, sendo causa de si mesmo, não lembramos do tempo, do passado ou futuro, já que tempo e vida são coisas muito diferentes.

Ser eterno é obrigatório por fazer parte do mundo, buscar permanecer além da vida já é desnecessário. Cuide das marcas que sua existência deixa, elas ficarão de qualquer jeito.

E depois?

Não importa!

Spinoza e o Desejo

“Compreendo pelo nome de desejo, todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com seu variável estado, que não raramente são opostos entre si, em que o homem é arrastado por todos os lados, não sabendo para onde se dirigir”.

                                                                 Spinoza, Ética, III

“…o desejo é o pensar que sobe do coração, ansiando pela vida que lhe falta”.

                                                                  Marilena Chaui

Para começar, busquemos a origem da palavra “desejo”. “Desidero” deriva de “sidero” que é relativo aos astros ou estrelas. Desidero, então, seria ignorar ou deixar de ver as estrelas. Ora, se eram elas, as estrelas, que guiavam os navegantes na antiguidade, deixar de vê-las, é ficar à deriva, por conta da sorte ou da fortuna, termo que significa estar entregue ao acaso, valendo o mesmo raciocínio para as estrelas enquanto informações do destino, tarefa da astrologia. Assim, desejo é estar sendo dominado por forças externas, justamente por estar perdido no caminho que se deve seguir.

Desejo enquanto falta, teve sua definição mais famosa nos escritos de Platão, especificamente no “Banquete”. Ali, o amor é pelo que não temos, que nos falta, por isso com sensação de vazio, carência. Mitologicamente associado a figura de Eros, ou do amor erótico. Como já escrevi em textos anteriores, essa forma de desejar ou amar, é sempre baseada na carência e nunca termina, visto que o conceito de desejar está ligado a não ter. Como uma consequência, se o que me fará feliz é o que me falta, o que tenho, sabidamente não satisfaz ou não tem mais valor.

Mas não só Platão tem esse enfoque. Em outro clássico do pensamento filosófico, Thomas Hobbes escreve no Leviatã: “Do que os homens desejam, se diz também que amam, e que odeiam as coisas pelas quais sentem aversão. De modo que desejo e amor são a mesma coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência do objeto e quando se fala de amor, geralmente, se quer indicar a presença do mesmo”. Sempre é importante ressaltar que esse desejo não é específico dos sentimentos, mas dos bens, ideias e relacionamentos de todas as esferas.

 Já nas relações afetivas, de forma direta, desejo é bem definido pela antiga frase, que Marilena Chaui traz em seu livro, bibliografia desse texto, onde diz: “Forma de nossa relação originária com o outro, o desejo é a relação peculiar porque, afinal, não desejamos propriamente o outro, mas desejamos ser para ele objeto de desejo. Desejamos ser desejados, donde a célebre definição: o desejo é desejo do desejo do outro”.

Para Aristóteles, desejo é o movimento em busca da perfeição, de um sentido, de um lugar no “Kosmo”. Faltou a Aristóteles, uma informação indisponível em sua época; o Kosmo não é finito nem ordenado como imaginava, a realidade é oposta. Assim, o desejo tem seu fim no aumento da potência do homem, não em encaixá-lo em uma máquina perfeita. O homem, mesmo em constante relação é um universo em si, não uma peça!

Spinoza, então, revê o conceito de desejo e causa uma verdadeira subversão, afirmando que desejo é nossa natureza, nossa essência. Particularmente, sempre resisti a essa ideia de que temos uma “essência”. Como simpatizante do existencialismo, penso que, fora a genética, da qual não escapamos, seja pela altura, o nariz de um jeito ou de outro ou até mesmo a certeza pelo avô e pelo pai, que a calvície será inescapável, somos o que a vida fez conosco e da interpretação que damos a o que nos acontece. Spinoza abriu um clarão na minha percepção, trazendo para o conceito de essência todo sentido. Logo, se desejo é natureza ou essência, não é falta, sempre fez parte, está dentro! Se o desejo do pássaro é voar, do cão de latir, do gato de miar e do limoeiro de produzir limões, nosso desejo é ser mais do que somos. Não desejo o que não tenho mas desejo “ser” cada vez mais!

Desejo pela falta é impotência e servidão, já que está a quem de nossa possibilidade, sendo o homem desejante pela falta claramente controlado por forças externas, controle esse que nunca terá fim, já que o homem é alguém a quem sempre haverá algo a ser preenchido, independente da obtenção de desejos, pois sua natureza é a carência, o vazio da incompletude. É assim que pensavam os Estoicos e os Budistas quando diziam que a saúde é não desejar. Não desejar o desejo da falta é mesmo uma libertação!

Para Spinoza, desejo é uma força, da qual o homem se vale para criar realidades, se expandir, tornar-se outro, por provocar encontros com o mundo que lhe tragam cada vez mais alegria, afeto que em sua filosofia, aumenta a vontade de viver, em ações positivas para si que também alteram o mundo a sua volta. Em outras palavras, se relacionar com a vida de forma positiva, onde a troca com o mundo nos faça mais e melhores. Assim, desejo é interior, não movido externamente. O desejo não será suprido externamente, mas internamente e isso faz toda diferença. Desejo pela falta faz rodar a economia, riqueza, produção e, obviamente, angústia. Desejo gerado pela expansão, gera alegria, liberdade e vida, cada vez mais vida!

Desejo é nossa natureza de nos esforçarmos para o que julgamos útil à nossa conservação e expansão, com o fim de preservar nosso corpo e mente em estado cada vez mais elevado. Assim, não agimos por vontade, como afirma Schopenhauer, mas pela necessidade de nossa natureza desejante de mais alegria, que, posteriormente Nietzsche chamará de “Vontade de potência”. O desejo é a causa eficiente (vindo de nossa natureza), de nossas ações, já que a vida é uma infinita troca de afetos entre o homem e o mundo (cada vez maior e com mais força de nos afetar pela tecnologia), representada por outros corpos, pelas forças naturais e de outras formas de vida. Quer queiramos ou não, estamos em constante relação com o mundo e essa “contabilidade” precisa ser positiva.

Sob esse ponto de vista revolucionário, desejar não é estar dependente de nada, mas é sinônimo de saúde, já que desejamos mais força, expansão e alegria. Spinoza não distingue em sua filosofia nenhuma separação, seja entre a mente e o corpo ou entre o corpo e o mundo, tudo e uma só realidade, em constante busca de conservação e de mais vida, onde nada acontece sem uma causa, sendo portanto, tudo necessário, não podendo nada ser diferente do que é. Assim, não existe culpa, nem livre arbítrio, só existe a vida em essência com suas forças de preservação e expansão. De uma arvore, passando por qualquer ser vivo, tudo no mundo busca “ser” sua natureza, desejando ser mais forte, perseverar e conservar-se!

Para pensar, não precisamos parar de desejar, já que é o desejo que faz pensar. Quando o desejo tem origem em nossa própria natureza, somos livres para Spinoza, se sua origem é externa, como manda nossa cultura, somos escravos, prisioneiros da ignorância.

Quando conceitua “Virtude”, Spinoza afirma que é “desejar por nossa própria natureza”, com objetivo de aumentar nossa potência, ou vontade de viver. Com o exercício da virtude, até o próprio conceito de “paixão” muda. Se, normalmente ela é definida como algo que nos domina, nesse caso é uma parte de nós, nos impulsionando cada vez mais para a alegria, vivendo de maneira a estarmos de acordo com a vida, em sintonia com o mundo que o desejo cria, em uma conciliação com a realidade que Spinoza chamará de “beatitude”.

A ideia de desejo spinozana será fundamental para muitas reflexões de Freud e fará parte de muitos dos conceitos estruturais da psicanálise, como o recalque, ira, inveja e outros. Da mesma forma, a contenção da força interna do desejo é parte indispensável para entender o conceito junguiano de “sombra”, por exemplo.

Obviamente que a sociedade, precisa, para a convivência pacífica, ter mecanismos de controle e punição. O desejo em si, como já ressaltei é uma força de expansão ou crescimento, e sua impossibilidade de manifestação sadia pode provocar seu deslocamento para ações danosas contra si e contra outras pessoas. Justamente por isso que, em textos anteriores, disse que a sociedade é sempre um “organismo” prestes a explodir, já que sua natureza é a contenção, já que impõe limites para todos os indivíduos.

Se você acompanha o blog, poderá dizer que já falei muitas vezes de desejo em outros textos onde essa ideia fazia parte do contexto que ali era tratado. Se hoje trato mais especificamente do assunto e, provavelmente, o farei em futuras oportunidades, é por pensar que, se você entender o que é desejo e isso passar a fazer parte da sua vida e ações, talvez não haja mais nada para entender ou aprender.

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Desejo, paixão e ação na ética de Spinoza – Marilena Chaui, Cia das Letras.

O Leviatã – Thomas Hobbes, domínio público

 

Aprenderemos?

                                “Hoje mamãe morreu, ou talvez ontem, não sei…”

                                               Albert Camus – O estrangeiro

Não importa quando aconteça, algumas situações, sempre são “hoje” pelo tanto que nos mudam. Depois que acontece, não faz diferença, estão sempre em nós.

Alguns cientistas e pensadores (sim, tem gente que pensa), dizem que nunca mais seremos os mesmos. Os mortos estão sendo contados, em alguns lugares se comemora que estejam morrendo menos a cada dia e, em outros, nem começaram a morrer como mostram as possibilidades. Imagens de corpos dividindo espaço em corredores de hospitais com aqueles que ainda lutam, milhares de profissionais de saúde que tombaram em seu campo de batalha, países onde os mortos apodrecem na rua…

Mas ainda são só imagens, para onde ainda se morre pouco, onde os mortos não estão no rol dos “amigos” e, muito menos em velórios onde a presença é obrigatória. Só ainda quem morre, em muitos lugares, são os outros, números de estatísticas, aliás, palavra que significa “ciência do estado”. São rostos desconhecidos e desesperos que estamos longe de compartilhar. Como alguém bem disse nas redes sociais, são apenas números, ainda não são nomes.

Temos duas formas básicas de aprender; uma delas é chamada de “direta”, é epidérmica, normalmente o aprendizado está ligado a dor. A outra é chamada “indireta”, usada por bem menos gente, já que essa leva em conta a observação inteligente de que o que acontece com o outro, pode também acontecer comigo. Vejo a dor, imagino sentindo-a e isso basta. A aprendizagem direta é sempre usada por quem se imagina especial, diferente dos outros. Pessoas assim não são otimistas ou confiantes, são idiotas!

Digo isso por não ter certeza se aproveitaremos uma oportunidade de mudar nossos conceitos de como vivemos juntos, cada vez mais gente em um planeta que, independente de qualquer pandemia, já está doente faz tempo. Temos governantes que acreditam que seu deus, seja ele quem for, vai prover sua criação, não deixando que nada grave aconteça, como uma salvaguarda divina. São eles que entendem que produção e riqueza valem qualquer sacrifício, seja do ar, das águas, do empobrecimento do solo e, obviamente, de vidas humanas, farto recurso de sete bilhões de pessoas, a maioria ignorante suficiente para elegê-los.

Para alguns países nada é mais importante que a vida, são lugares onde sua população é educada, que tiveram uma história de sofrimento e grandes perdas, como guerras, por exemplo. Lá não se discute o que é mais importante, isso até as samambaias sabem. Nos outros lugares, ainda se questiona se alguns milhares de mortos valem mais a pena que o crescimento do PIB. Como, aliás, disse uma samambaia falante no começo, onde tudo era um “exagero”: – Nos EUA morrem cinco mil pessoas engasgadas por ano, parar a economia por um número pequeno de mortes, não vale a pena.

 Dias depois, o número de mortos em um dia equivalia a um ano de engasgados e a samambaia mudou de assunto.

No momento em que escrevo, o número de mortos passa de 164.000 e os infectados somam mais de 2.360.000 segundo as estatísticas*, que merecem todas as ressalvas ao lembrarmos sua origem. O preço da mudança, e espero estar muito equivocado, precisará de muito mais mortos, que a dor chegue perto o suficiente de cada um de nós para que mudemos de conceito e rumo.

É a primeira vez que o mundo globalizado divide uma dor, o medo e a privação dos movimentos. Tanta coisa bonita aconteceu nos lugares mais sofridos, a solidariedade misturada ao desespero de pessoas serem deixadas para morrer por falta de equipamentos, celulares sendo usados para gravar e enviar à última mensagem e imagem. Depois cinzas, sem sequer uma despedida e muita dor compartilhada.

Para esses lugares, um novo mundo já existe e muitos “valores” estão sendo revistos e, com certeza, nada será como antes. Tomara que eles tenham força suficiente para convencer aqueles que, por terem mais tempo a seu favor, conseguiram salvar mais gente, apesar dos esforços de muitos em contrário.

O Prefeito de Milão se desculpou publicamente por não ter levado à sério a gripe e foi contabilizando milhares de mortos e imagino o que esse homem carregará consigo até seu último dia, junto com seu slogan: Milão não pode parar! Já outros que também subestimaram, não perderam a pose e talvez durmam bem, pois, para eles, pessoas não contam e, até usaram mediocremente  o mesmo slogan. Incrível!

Enquanto as imagens e números chegam de todos as cantos sempre filtrados, pois como sabemos, em qualquer guerra a primeira vítima sempre é a verdade, outros onde as mortes são ainda poucas em números, continuam pensando que a vida humana é irrelevante e seus seguidores agem à favor do vírus, como se fossem especiais e tudo que acontecesse mundo à fora fosse uma bobagem, uma irrelevância. O mais irônico são manifestações a favor da volta a normalidade usando máscaras. Claro que eles não estarão no transporte público e no contato direto no trabalho. Eles querem que seu resultado não seja atrapalhado, afinal funcionários baratos em um país subdesenvolvido estão sempre sobrando.

Sêneca, como bom estoico, disse que a riqueza não era boa nem ruim, já que observava que muitos ricos eram infelizes, e, se ela fosse boa traria felicidade para eles. Muitos ricos, e isso inclui empresas, mostraram que a riqueza lhes deu oportunidades de mostrar sua preocupação e deixaram claro através de ações o valor da vida humana. Outros, estão preocupados com suas perdas, esquecendo que a vida vai continuar e que talvez esse novo mundo que tomara venha, será cheio de oportunidades, como sempre! Nos cabe é não esquecer quem esteve do mesmo lado!

Aqueles que superarem o problema terão a responsabilidade de fazer esse novo mundo e ele pode começar com pequenas ações que devem ser precedidas de uma pergunta: Isso que estou fazendo, do jeito que estou fazendo é uma mensagem desse novo jeito de viver?

Cabe-nos, por fim, saber a quem ouvir e em quem confiar. É sempre bom sermos obedientes ativos, pessoas que buscam informação de qualidade e decidem se o que lhes está sendo imposto é correto. Os obedientes passivos, só obedecem sem questionar o que é sempre um risco em uma época em que samambaias falam.

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*Jornal Estado de Minas edição de 19/04/2020

Um tempo sem dias

Que dia é hoje?

– Não sei, por quê?

Todo dia tem um nome, não tem?

– Tem horas que não precisa.

Como assim?

– Se eles são iguais, não há motivos para ter nomes diferentes.

Por que tem dias com e sem nome?

– Porque tem dias em que somos diferentes e os dias tem nome e outros em que somos iguais.

Mas não somos todos iguais?

– Pensamos que não, por isso que os dias têm nomes diferentes.

Dia então é só um dia?

– Tem dia em que se faz coisas em outros não.

Mas hoje, esse dia tem nome?

– Já disse que não, hoje é dia de sermos iguais.

Quem decide isso?

– Depende, às vezes é o tempo com o vento ou a chuva, em outros momentos é um ou outro deus. Mas, como agora, quem decide é quem não podemos ver com nossos olhos de tão pequeno que é.

Pelo visto, nunca somos nós que decidimos que dia é hoje?

– Nunca foi, gostamos de pensar que somos nós.

Por quê?

– Porque não conseguimos lidar com a ideia de que nunca decidimos nada.

Amanhã vai ser que dia?

– Quem sabe?

É difícil viver assim!

– Vivemos sempre assim, nunca foi diferente.

Você disse que quem decide que o dia de hoje não tem nome é alguém que nossos olhos não veem. Se não vemos, como sabemos?

– Sentindo dor, falta de ar e medo. Muito medo!

Do que temos medo?

– Do que não conhecemos.

E o que conhecemos?

– Nada, nem a nós mesmos.

Se você estiver certo, se não conhecemos a nós mesmos não há nada que possamos saber o que realmente é?

– Não.

Então somos iguais no medo, todos temos medo?

– Sim, por isso os dias não precisam de nomes.

Como viver assim?

– Descobrindo, através do que sentimos, percebemos e entendemos.

Mas, se cada um sente de um jeito, então nada existe para todos?

– Não.

 

Silêncio

 

Os dias vão voltar a ter nomes?

– Vão.

Quando?

– Quando voltarmos a achar que sabemos quem somos e para onde estamos indo.

E depois?

– Vamos esperar que uma coisa, qualquer coisa, volte a mostrar que dar nome aos dias é um erro.

Dias então não existem?

– Quem sabe?

Que dia foi ontem?

– Amanhã.

 

 

 

 

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