Autoconhecimento

O Grande Tirano *

“É livre aquele que age segundo a essência racional de sua natureza, portanto, aquele cuja razão é a causa interna e total das regras, normas e leis da ação que realiza”.

                                         Marilena Chaui – Contra a servidão voluntária

Quando Étienne de La Boétie (1530 – 1563), escreveu seu clássico sempre obrigatório, e, atualíssimo “Discurso sobre a servidão voluntária” questionava o motivo dos homens (que tem a liberdade por natureza, segundo ele), se deixarem dominar por um tirano, apenas um homem que, por aceitação de milhares na época e hoje milhões os subjuga. Nas suas palavras; “nascemos livres e servos de ninguém, sendo incompreensível que possamos trocar esse bem que é a liberdade por esse mal que é a escravidão”.  

A questão que La Boétie propõe é porque tantas pessoas se dispõe a servir a um só homem se nada os obriga a isso? Como apenas um homem pode dispor de vidas corpos e desejos de tantos que se submeterem à sua vontade passivamente? A conclusão é simples; deixamo-nos dominar por nos sentirmos mais seguros em entregar nosso destino a alguém do que assumi-lo. O tirano, para manter seu poder, como afirma La Boétie tem milhares de olhos, ouvidos, braços e pernas. Sozinho, ele não teria como ter tanto poder e não conseguiria mantê-lo. Esse corpo vasto do tirano é composto por esses que, querendo se beneficiar da proteção e favores do poder, cumprem a função de ser esse “corpo” que mantém sua força para governar e impor suas vontades sobre os demais. Como ele mesmo afirma no Discurso: “Dá-se tudo ao soberano na esperança de converter-se em soberano também”. Em outras palavras, também queremos o poder, e a capacidade de impor nossa vontade aos demais.

Qual saída ele propõe para derrubar o tirano? Simples, não o obedecer!

Se seu poder vem da obediência em busca de proteção e favores, deixá-lo só é derrubá-lo sem precisar nenhuma guerra civil. Ele esvairá, pois não terá mais os milhares de olhos, braçõs e pernas que necessita para governar, ficará só e nu.

Quinhentos aos depois do texto de La Boétie os tiranos continuam na moda, só que hoje eles são mais de “fachada”, são marionetes manipuladas pelo Grande Tirano que se chama modelo cultural ou o jeito que pensamos a vida e, consequentemente, a vivemos. Isso não é por acaso e nunca será. Olhando para a história os tiranos antigos tinham mais charme e, muita inteligência, pois naquele tempo precisava ter força para chegar ao poder e mantê-lo, porque a traição sempre ronda o tirano, afinal, nunca esqueça; ele está cercado de pessoas como ele.

 Atualmente, os personagens que cumprem esse papel de “salvador” do mundo, guardiões dos valores tradicionais, coincidentemente (é só observar a história), sempre se apoiam sob dois pilares que lhes dão sustentação; a força militar e religiões de grande apelo popular, aquelas de obediência cega, fundadas no medo e na culpa. As armas, deus ou jesus (as minúsculas são propositais), cumprem a função dos milhares de olhos e braços dos tiranos de séculos atrás. Nada muda, nada se cria, só se copia e maquia.

Os tiranos atuais não precisam de nada especial, nem de inteligência, são “laranjas”, ignorantes, megalomaníacos ou simplesmente, idiotas, funcionários da Grande Política que é a maneira como vivemos, já citado anteriormente.

O Tirano pós-moderno diz que sempre temos que ser produtivos, não há tempo a perder com a ociosidade. A vida é uma competição onde só os mais preparados podem vencer e isso já começa abortando a infância, com crianças com agenda cheia e se preparando para provas de competência que virão muitos anos depois de serem colocadas em uma cadeira aos sete anos durante, no mínimo, quatro horas por dia. Para ser percebido como um sujeito identitário são necessários cada vez mais acessórios tecnológicos que duram cada vez menos, estar na “moda” nem dá tempo, já mudou antes de algo ser usado três ou quatro vezes e assim por diante.

As regras mudam e cada vez a possibilidade de um descanso digno ao final da vida ou sobrevida, passam pela sorte de um sorteio da loteria (que tem todos os dias e não é por acaso) para poder, finalmente descansar e aproveitar alguma coisa. Na vida útil, produção e consumo. Na velhice, muito poucos recursos para que esse(a) velho(a) improdutivo morra logo e pare de dar despesa ao Estado. Nossa revolução contra o Tirano hoje precisa ser mais sutil, ela se dá na desobediência furtiva, nos momentos em que Ele não está nos observando, como nos horários de folga ou nos finais de semana. Faça de conta que você está produtivo vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, dê isso a ele e você poderá ter seu retrato no funcionário destaque do mês. O Tirano adora um “comprometimento” total, ou seja, sua vida é dele!. Quando Ele estiver distraído, se divirta, invista parte do seu dinheiro em coisas que gosta, aproveite! Ele também vive dizendo que você viverá de novo, que seu sofrimento será recompensado, que até você se purifica sendo explorado, finja que acredita nessas tolices.

Faça de conta, mas faça de sua micropolítica o melhor que conseguir, aumentando sua qualidade de vida. Lembre-se que o Tirano não está nem aí para você enquanto ser humano, ele nos vê apenas como objetos de grande máquina de produção e consumo. Somo peças fáceis de substituir, as escolas preparam funcionários desde a revolução industrial. As primeiras que surgiram, são os modelos que existem até hoje começaram ao lado das fábricas para cuidar das crianças enquanto os pais trabalhavam e prepará-las para substituírem seus pais na produção. Seu jeito ainda é muito parecido e nem precisaria mudar muito, já que a ideia é a mesma.

Como escrevi no texto anterior “Amizade”, e, pela primeira vez nesses anos todos vou repetir o parágrafo final:

 A servidão só terminará quando a obediência acabar. O tirano do nosso tempo vive de nos manter ocupados, angustiados, com pouco tempo para perceber que podemos estar contentes.

Aos poucos, obedeça menos. Não será necessária uma grande revolução, basta dar mais valor ao que importa para você. Aos poucos, como promete La Boétie, ele cai, afinal somos seu corpo e mente. Se mudamos, ele morre!

  Conforme já nos ensinou Nietzsche, o humano é alguém que deve eternamente se superar e por quê? Por sermos naturalmente frágeis, vulneráveis, expostos a um mundo muito mais potente. Nossa superação virá de sabermos mais, pensarmos de forma nova e termos experiências que nos transformem e, principalmente, nos alegrem. Quando isso estiver acontecendo, sua liberdade chegou, e aí não será mais preciso um Tirano para dizer qual deve ser seu jeito certo de viver.

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Para saber mais:

Discurso sobre a servidão voluntária – La Boétie – Domínio Público

A Economia libidinal do Fascismo – Vladimir Safatle, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vR2ubjIjwPg

*O presente texto serve de acréscimo ao anterior “A política da impotência” nesse blog.

O outro Eu

– Qual seu nome?

– Isso não importa!

– Como assim? Você não quer dizer seu nome?

– Quem eu sou não importa. Vou fazer uma confidência: Eu, eu mesmo, nunca fiz nada de importante. Na verdade, faço uns rolos aqui e ali, ninguém dá muita bola, é muita gente. É que agora surgiu uma chance de ser alguém com poder. Mas não tem como ser eu mesmo, já que, sendo o que sou não conseguiria, entende?

– Não consigo entender, todos tem um nome. Por que você não quer dizer seu nome?

– Eu quero ser conhecido como o oposto “dele”.

– Dele quem?

– Do “outro”.

– Entendi, agora entendo. Como você não é ninguém, sendo o oposto do outro, ganha uma identidade que, sendo você não seria possível, já que, na verdade, ser você mesmo não teria como dar certo. Muito bom, você teve uma grande ideia, parabéns!

– Na verdade essa ideia nem foi minha. Não sou bom de ideias.

– Foi de quem?

– De um pessoal aí, que está mexendo os “pauzinhos”, entende?

– Mas você acha que consegue, nunca ser você, serão alguns anos?

– Quem teve a ideia me explicou que, sendo sempre o contrário do outro, todo mundo fica a favor ou contra ele. Nesse meio tempo a gente coloca o plano em prática.

– Que plano?

– Na verdade nem eu sei, mas o “pessoal” sabe, entende?

– Mas, e se der tudo errado?

– Se der errado, como não sou eu, sempre terá outro para ser o oposto “dele”. Hora a gente perde e hora ganha. Que nem Palmeiras e Corinthians ou Vasco e Flamengo.

– Mas, se você não se sair bem, o que é provável, já que não tem uma identidade, você não ajudará o “outro” a voltar, mais forte?

– Pode ser, mas o pessoal que teve essa ideia diz que vamos aumentar o número de pessoas que são contra ele, e sempre teremos como participar e chance de ganhar de novo, de vez em quando. Claro que se “ele” se sair bem fica mais difícil, mas aí o pessoal pensa em alguma coisa.

– O pessoal das ideias?

– Eles mesmos, entende?

– Mas no longo prazo, você nunca será alguém por si mesmo, isso não incomoda?

– Vai valer a pena. Vou viver bem, me divertir, passear bastante e estar de férias quase sempre, tudo por conta.

– Mas as pessoas vão saber!

– Me disseram que posso tornar tudo segredo. Entende?

– Sim, mas preciso colocar seu nome, como posso registrá-lo sem um nome, seu nome?

– Dá para colocar meu nome e “anti ele” como sobrenome?

– Não dá, a lei pede que seja seu nome, salvo que mude no cartório.

Nesse momento, um homem que esteva o tempo todo atrás daquele que não é ele mesmo, sussurra algo no seu ouvido. O candidato pergunta em voz baixa:

– Tem certeza, tô por vocês, não me deixem mal! O homem segura no braço daquele que não é ninguém e fala mais alguma coisa.

O candidato sacode a cabeça positivamente, dá um sorriso tímido e diz:

– Pode colocar só meu nome então, entende?

AMIZADE

“O que faz um amigo confiar noutro é a consciência de sua integridade: suas garantias são a boa natureza, a fé e a constância”

“Não pode haver amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça; e, quando os perversos se reúnem, formam um complô, não um grupo de companheiros. Não têm afeto um pelo outro, mas medo; não são amigos, mas cúmplices”

La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

“Por mais raro que seja,

Ou mais antigo,

Só um vinho é deveras excelente:

Aquele que tu bebes calmamente

Com o teu mais velho

E silencioso amigo…”

Mário Quintana, do sabor das coisas

A condição da amizade é a semelhança, exclusiva entre seres humanos. Como diz Marilena Chaui em seu livro sobre “Discurso da servidão voluntária” de Étienne de La Boétie; “Virtude essencialmente humana, a amizade não pode existir em Deus, no rei e no tirano”.

Quando se refere ao tirano, a amizade não é possível já que ele busca seu próprio bem e não os dos outros, faltando ao respeito, marca natural entre amigos. Com Deus, sua impossibilidade é pela distância ou desproporção do homem para seu criador. Assim, a isonomia, condição fundamental para a amizade não está presente, afinal, Deus não precisa do homem, mas o homem, sempre carente e impotente diante do mundo que o cerca, precisa de Deus, cada vez mais. Quanto ao Rei, historicamente a amizade é impossível, por sua condição o elevar acima dos súditos, e mesmo que ele faça o bem, em nenhum momento haverá similaridade entre ele o súdito, estando, mais uma vez, ausente a isonomia entre os pares. Sofre o Rei, por não ter amigos (todos estão abaixo), e não poder ser Deus.

O caro leitor(a) poderá perguntar: “O que isso muda minha vida”?

A resposta é; reflita se você se submete a alguma tirania, coloca alguém em algum pedestal ou parece ou quer ser uma espécie de deus?

Se a resposta for não, o texto poderá ser útil para refletir sobre o que é ou pode ser uma amizade. Se for sim, avalie esse conceito e sua eventual submissão ou prepotência, que o leva a solidão da ausência de um verdadeiro amigo.

Qual a importância da amizade?

Se Deus tudo criou, existindo, portanto, antes de tudo, só ele se conhece verdadeiramente, ou usando uma expressão de Espinoza; é causa de si. Já os homens, precisam da mediação do outro, da comparação, afinidade ou antagonismo para tomar ciência de quem são. Como diz Aristóteles, “o amigo é um outro nós mesmos”. Assim, para homem mortal, são os amigos que suprem nossas carências de entendimentos, emoções e sonhos. Nessa relação de troca entre iguais é que uma espécie de autossuficiência divina pode ser metaforicamente alcançada. Dessa forma, não é possível o autoconhecimento sem o outro. É pelo outro que nos descobrimos!

A igualdade entre os amigos elimina a competição e não há hierarquia, motivo natural de afastamento por colocar o interesse e o poder como obstáculo a amizade verdadeira. Estar à vontade, não ter medo de dizer o que pensa ou sente, o amigo é uma espécie de “eu” que nos ouve, ou um espelho empático que pode, sem receio, deixar mostrarmos traços que não queremos ver em nós sem constrangimento. Diante de um amigo, nada temos a perder e ganhamos sempre a possibilidade de sermos verdadeiros, momento cada vez mais raro em um mundo competitivo, onde o medo é o combustível disponível pela sociedade para buscarmos o que necessitamos. Ninguém tem medo diante de si, ou do amigo. Em outras palavras, se sentirmos medo ou receio da expressar nossos pensamentos, não estamos diante de um amigo, mas de alguém que ainda não mostra a nós mesmos em seu espelho. A amizade relaxa, fora dela, a tensão. É fácil perceber!

Falar de si é sempre transferir ao ouvinte o que temos de mais valioso, o que está por trás dos nossos personagens cotidianos, que sempre estão se movendo necessariamente atrás de seus objetivos. Não existe medida para valorar o momento que nos desnuda, que nos torna humanos, frágeis e sonhadores. A Amizade é uma obra de arte delicada, produzida a duas ou mais mentes, próximas, mas nunca iguais. Essa diferença é que nos permite nos conhecermos, não só ao nos ouvirmos, mas vendo no reflexo diante de nós como nos sentimos pelo que pensamos e ansiamos.

A amizade supera as relações afetivas, já que essas, temperadas pelo desejo, apego e interesses diversos, ferem um dos primeiros estatutos da amizade; nada a temer, nada a perder! Os enamorados prometem relações sinceras e transparentes, impossível quando são dois desejos.

Amigo, artigo cada vez mais raro, em um mundo onde queremos mais (nem sabemos direito o quê), ação natural de afastamento. Temos tanta pressa           que não percebemos o que vai ficando pelo caminho. Lembranças juvenis do tempo em que éramos iguais aos amigos, uniformizados na escola, compartilhando o sofrimento pela disciplina imposta pelos pais com sonhos comuns. Não havia medo, não havia futuro, não havia doença. Contávamos sonhos com músicas que cantávamos juntos com bebida barata em dias em glamour não era preciso. Saudade dos tempos da amizade, ou como muito mais profundamente diz a Professora Marilena:

“A primeira vista, a amizade parece confinar-se ao momento em que a natureza, operando sozinha, cria e conserva os companheiros numa espécie de natural sociabilidade e, ao finda sua obra, com o advento as sociedade política, só restam alguns que guardam na lembrança o instante anterior, como se, no presente, a amizade fosse apenas memória do que precedeu a desnaturação”.

A palavra Philia, de origem grega que designa “amizade”, tem origem em isótes philótes, que significa o tratado de paz entre homens e grupos que sanciona a prestação de contas recíprocas, estar quites, ninguém tirou nada de ninguém ou ninguém deve nada. Difícil!

Em sua filosofia Espinoza atribui especial valor a amizade, quando afirma que só é possível entre homens livres, e que a amizade é condição da “alegria”, afeto que aumenta nossa potência de agir ou seja, nos traz mais vontade de viver;

E é impossível que o homem não seja parte da natureza e que não siga a ordem comum desta. Se, entretanto, vive entre indivíduos tais que combinam com sua natureza, a sua potência de agir será, por isso mesmo, estimulada e reforçada. Se, contrariamente, vive entre indivíduos tais que em nada combinam com sua natureza, dificilmente poderá ajustar-se a eles sem uma grande mudança de si mesmo”.

Isso não quer significar que pessoas diferentes não sejam estimulantes, nos ajudando a perceber quem somos hoje, nos instigando a pensar de forma diferente e descobrir que precisamos de novas ideias sobre nós mesmos. Amigos novos, são sempre possíveis. São as amizades que nos atualizam sobre quem somos. As antigas, mantém aquilo de nós que permanece ou ainda não está totalmente entendido e, portanto, pronto para mudar. Amigos alegram, nos ajudam a esquecer e a lembrar quem somos, já fomos ou queremos ser.

Amizades passam quando a vida afasta por suas estradas imprevisíveis ou quando “perdemos contato”, deixamos de ser semelhantes e a isonomia acaba. Isso faz parte em um mundo impermanente e tão imprevisível. Ficam na memória boa do vivido, não há que lamentar.

Amizades são raras, difíceis de encontrar em uma vida que nos dá menos tempo para cuidar de si. Precisamos de cada vez mais coisas, correr mais!

La Boétie em seu clássico texto, não entende como nos deixamos tiranizar, como transferimos tanto poder para alguém nos diminuindo, obedecendo cegamente a quem quer só seu bem à custa do nosso. Hoje o tirano está disfarçado, não tem mais um corpo como no tempo em que o texto foi escrito (1548). Hoje é uma ideia, um sistema cultural. Seu conselho é prático e simples; esse tirano só existe por obedecermos.

A servidão só terminará quando a obediência acabar. O tirano do nosso tempo vive de nos manter ocupados, angustiados, com pouco tempo para perceber que podemos estar contentes.

Aos poucos, obedeça menos. Não será necessária uma grande revolução, basta dar mais valor ao que importa para você. Aos poucos, como promete La Boétie, ele cai, afinal somos seu corpo e mente. Se mudamos, ele morre!

Uma verdadeira amizade é uma desobediência, uma revolução!

Quem se conhece, não se permite dominar, para isso cultive suas amizades!

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Para saber mais:

Contra a servidão voluntária – Marilena Chaui

Ética a Nicômaco – Aristóteles

Ética – Espinosa

Sintomas

É minha primeira vez, nunca fiz terapia antes. Por onde começamos doutor?

– Por onde você achar melhor, não temos um roteiro, obrigatoriamente.

Bom, estou aqui por estar me sentindo estranho. Por um lado, não tenho do que me queixar. Minhas coisas estão em ordem, está tudo bem com a família e nos negócios, mas percebo um desconforto difícil de explicar.

– Começou a se sentir assim quando? Perguntou o terapeuta.

Não consigo precisar, é uma sensação, vaga, indefinível. Como tenho ouvido falar muito dessa questão de sentido, propósito e autoconhecimento, pensei ser meu caso. Pensando em sua pergunta, tem algum tempo, talvez um ou dois anos que posso detectar que percebo isso.

– Você está com quantos anos, perguntou o terapeuta enquanto fazia anotações.

Fiz quarenta e quatro no começo do ano. Isso tem a ver com a idade?

– Não necessariamente, disse em tom enigmático, enquanto ainda anotava.

Não entendi. Como assim “não necessariamente”?

O terapeuta não respondeu.

Entendi, quer me fazer pensar, por isso não responde. Pensei que poderia ter a ver com meia idade. Mas não é só comigo, pelo visto. Esses assuntos estão na moda, pode ser uma questão desse momento que estamos vivendo.

– O sentido da vida e o autoconhecimento estão na moda desde Sócrates, disse o terapeuta olhando para o teto, em tom de divagação.

Mas não me lembro disso nos anos anteriores, pelo visto estava ocupado demais para perceber.

O terapeuta sorriu com o canto da boca.

Você está dizendo que isso tem a ver com estar com mais tempo livre? Quem está muito ocupado não pensa no sentido da vida ou em um propósito? Será que o autoconhecimento é fruto da “oficina do diabo” como dizia minha mãe?

Novamente o terapeuta faz silêncio.

Essas grandes questões são para quem tem tempo? Mas eu conheço gente super ocupada que se preocupa com isso. Querem saber se sua vida está certa? Se estão vivendo como devem?

– Você acha que tem um jeito certo de viver então?

Pensei em vir buscar respostas nessa sessão e só ouço perguntas! Se soubesse não estaria aqui!

 A irritação do paciente era evidente.

– Minha função é, na maioria das vezes, fazer perguntas. Se tivesse as respostas, seria um político ou religioso. Eles têm um jeito “certo”, você não acha?

Mais uma pergunta… Concordo com isso, mas não existe um jeito de viver que satisfaça a todos?

– Se fossemos todos iguais, poderia.

Entendo, então não tem um jeito certo. Verdade, as religiões têm e a sociedade também por nos tratar como iguais. Deve ser no sentido de nos controlar, só pode! Não tinha pensado desse jeito antes. Se fosse assim, não teria tanta gente tomando remédios psiquiátricos, não é? Esse jeito único pode adoecer as pessoas, afinal elas não podem viver de um jeito que seria só delas. É isso?

– Boa reflexão, disse o terapeuta. É uma boa possibilidade essa que você trouxe.

Então, chego à conclusão de que minha insatisfação pode ser eu estar vivendo a vida que querem que eu viva, não a que gostaria de viver, é isso?

– Como seria a vida que gostaria de viver?

Não sei, nunca pensei nisso antes. Agora entendo.

– Entende o quê?

Não vivi, fui “vivido” por crenças que não escolhi. Como nunca pensei em outras formas, esse jeito era o único que poderia ser.

– E por que não pensou em outras formas?

Olhando para baixo, em profunda reflexão:

Porque eu fui conquistando os resultados desse tipo de vida e estava embutido nessa crença que se isso acontecesse me sentira feliz. Se tivesse dado tudo errado, essa questão de buscar o autoconhecimento teria vindo antes? O sentido da vida e tudo mais ganha importância quando não temos resultados ou já temos e descobrimos que está faltando alguma coisa? Só se busca isso para preencher uma vida que se percebe sem sentido, quando se está sofrendo? Não é uma busca voluntária então, é uma ação que só visa trazer vantagens. Mas o que é felicidade então?

– Dentro desse seu raciocínio da diferença entre as pessoas, essa ideia do que seja “felicidade” também não existe, já que cada um pode ter a sua, sendo do jeito que é.

O terapeuta cruzou as pernas e se recostou na poltrona, como se pudesse descansar, já que seu trabalho estava feito!

Entendi, entendi. Você diz que eu vivi uma ilusão esse tempo todo?

– Não disse isso, mas você disse.

Sim, eu sei. Foi tudo errado?

– Foi?

Tudo não, tem coisas legais que aconteceram. Mas me sinto estranho, como se tivesse sido enganado apesar das coisas boas. A escola deveria ter me ajudado a entender. É por isso que andei lendo que querem terminar com o ensino de filosofia e sociologia?

O terapeuta não respondeu.

Você acha que devo voltar, fazer mais sessões?

– Você é quem sabe. Terapia é uma escolha voluntária, uma das poucas.

Engraçado, saio daqui pior e mais confuso que quando cheguei, mas me sinto melhor. Sim, quero voltar, cavar mais fundo nesse assunto.

Enquanto se levantava da cadeira, o terapeuta disse em tom irônico:

-Estar confuso não é ruim. Significa que aquilo que estava “certo”, já não está mais pela reflexão feita. Pense no seguinte; se não existem pessoas iguais, também mudamos o tempo todo, sendo assim, como algo poderia estar “certo” para todos, sem mudar?

Agora quem ficou em silencio foi cliente, pensativo, exposto a última reflexão do dia.

Ao sair do consultório, virou-se e fez sua última pergunta:

Doutor, quem me indicou o senhor disse que você é “esquerdista”, é verdade?

O terapeuta sorriu e fechou a porta.

A Política da Impotência

“O Poder necessita de corpos tristes. O Poder necessita de tristeza porque consegue dominá-la. A Alegria, portanto, é a resistência porque ela não se rende”.

                                                                                        Gilles Deleuze

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Uma vida triste, impotente com pouca alegria não é uma circunstância, sorte ou azar, mas uma política, uma forma de controle. Não existe efeito sem causa, e a tristeza como modo de vida foi uma das mais inteligentes formas de dominação já criadas e mantidas, justamente por se retroalimentar.

Tornar o sofrimento uma purificação ou vantagem futura, desmerecer a vida real em troca de outras mais perfeitas e utópicas, programar a justiça para outra instância não terrena, tornar a exploração um investimento em paraísos etc. A política da tristeza é o maior estelionato já criado em nome da política de rebanho, além de movimentar a roda sempre sedenta do capital.

Tudo começa pelo aprisionamento do desejo, como já tratado em textos anteriores. Torná-lo uma carência constante que nunca pode ser suprida pelo desvio de sua natureza que é a nossa necessidade de evolução que tem a alegria e liberdade como condição, em troca de promessas e símbolos de sucesso com duração cada vez mais efêmera. Depois, investir no medo da não obtenção desses símbolos, da perda de respeito e deterioração da identidade pelo olhar social, criando uma angústia e necessidade de controle dessa mesma angústia, obviamente ficcional, desfocando o olhar de quem deveria querer ser mais forte e conhecedor com novas possibilidades para quem está constantemente com medo e triste.

Existir é desviar-se do que está pronto, como lembra Deleuze.

Nosso desejo nos pede que se torne ação na vida, esse é o “propósito”, viver quem somos em ações concretas e diárias. Quando isso não acontece, o propósito se torna uma vida focada fora de si, no outro. Como levar potência para alguém se estou sem essa potência? Nosso desejo busca essa liberdade de viver quem somos e a política da impotência diz que a realização é fazer a vida do outro melhor, como uma compensação a minha falta de alegria na minha própria vida.

Desejo é criar realidade e isso não se parcela sem jutos no cartão.

Essa tristeza busca ser “solucionada” por mais objetos e compulsões que alimentam a máquina, fazendo-a girar cada vez mais rápido e com alta lucratividade. Bancos e laboratórios farmacêuticos lucram cada vez mais; os primeiros financiando os valores para adquirir os “remédios” que o mercado oferece, e o segundo, com medicamentos de manutenção constante dessa tristeza em níveis suportáveis. Tudo isso justificado pela superstição de uma vida futura mais abundante de paz, sendo resiliente, é só saber aguentar, esperar e conviver com a impotência, garantia de uma pulseira para a área Vip do paraíso.

Para quem não se conforma ou não aguenta, um delegado, padre ou médico, para lembrar que essa política é para iguais, não para indivíduos, como diz Foucault. Esse sistema de domínio não tolera pessoas livres e isso já é assim a séculos. Historicamente, esses “desordeiros” normalmente são eliminados, viram história para serem admirados muito tempo depois de suas mortes. Sobre isso, fiz um vídeo em meu canal no You Tube chamado “O que é ser normal”, que convido a assistir.

No modo ativo de viver, a diferença (individualidade) é sua base, no passivo, é anulada em troca do comum.

É importante estar sempre feliz, confiante, jovem a qualquer custo, competitivo e é claro, empoderado. Buscar empoderamento, por exemplo, nada mais é do que uma constatação de fraqueza no presente e da incapacidade de entendê-la como um modo de vida. Uma sociedade impotente, obviamente, sonha com empoderamento!

Com nosso desejo capturado, passamos a viver à custa de idealizações, salvação e da necessidade do empoderamento. Buscamos o reconhecimento através de redes sociais para sair do óbvio ostracismo por sermos iguais, sem identidade, portanto. Daí, para necessitar de salvação é um passo curto. Caberá a qualquer messias ser potente por nós. Passar a viver na imaginação e na esperança é a receita de continuação da tristeza e da falta de força de criar situações por ato livre. Imaginação e esperança é a combinação de quem já não tem saída, quem tem sua força natural suprimida.

Quando Nietzsche define o “sacerdote” mostra que ele inverte os valores, criando uma ficção como ideal, ele oferecerá um meio para o ressentido “sobreviver”, tornando-se parte de um rebanho que ele cuidará, que estará “salvo”. Mergulhados na tristeza e impotência, o Estado precisa nos proteger na pessoa do tirano de plantão.

Não somos o que se passa conosco, é isso que essa política quer fazer acreditar.

Liberdade é devir, é um vir a ser dos encontros que escolhemos ter com o mundo, onde nosso desejo de alegria se concretize. O previsível, sonho de quem teme, precisa dessa falta se vir a ser, dessa ausência de perspectiva e de um futuro que repete o passado e presente. Não existe uma vida sem tristeza, mas a contabilidade precisa ser positiva. Quando o suicídio se torna uma escalada geométrica é a constatação de um saldo devedor na vida, alguém duvida?

Quantas vezes nos pegamos delirando em um ideal? Medicado ou não, todo delírio mostra um potencial criativo submerso, sendo, portanto, uma realidade virtual. Toda virtualidade é resultado de um concreto frustrante, assim como idealismo é uma desqualificação do que acontece.

Como diz Deleuze, ao desejo nada falta. Essa cultura platônica da carência que dá base a essa política de impotência e subordinação. Quando o mundo fica maior pela informação, quando a tristeza é compartilhada em rede e o medo aumenta, só desejamos parar de sofrer.

Isso nunca acontecerá, até que o que se ensine nas escolas, por exemplo, não seja a manutenção dessa cultura, mas o reforço da diferença e dos potenciais criativos de cada um.  A luta conta a massificação do igual, da uniformidade, defendendo que a diferença é a gênese que cada um precisa experienciar em si e no outro é uma das muitas revoluções necessárias para um futuro com mais alegrias e menos necessidade de compensações e salvação.

Não diga mais “é assim mesmo”, “fazer o quê” ou “vamos confiar”. A vida não precisa ser assim! Faça a pergunta “nietzschiana”: a quem interessa?

Comece a conspirar, aqui e ali na micropolítica da sua própria existência. Faça pequenas revoluções e vá ganhando confiança em escolhas mais livres.

A soma das mudanças é que derrubará a política da impotência!

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Inspiração:

 Anti Édipo , Capitalismo e esquizofrenia – Deleuze e Guattari

Além do bem o do Mal – Nietzsche

Vigiar e Punir – Michel Foucault

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