A importância do mal

“A única maneira de conservar a saúde é comer o que não se quer, beber o que não se gosta e fazer aquilo que se preferiria não fazer.”

                                                                       Mark Twain

“Se restar em vós a mais leve ideia de certo e errado, então vosso espírito se perderá na confusão”.

Shinjinmei – versículo 22 (Zen)

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Diz a lenda, descrita no antigo testamento como a “segunda criação”, que o primeiro ser humano era chamado Adão. Mas esse Adão era um andrógino, ou seja, não era nem homem nem mulher, ou os dois, como queira. Adão vivia no “paraíso”. Esse paraíso não era um lugar de temperatura amena, com todas as facilidades dadas gratuitamente, como um resort, essa é normalmente a definição de “inferno”. “Paraíso” quer significar que esse Ser estava em perfeita unidade com o Todo, ou seja, tinha o que hoje chamamos de “consciência cósmica” ou “iluminação”.

Um belo dia, Adão resolveu tirar parte de si e essa parte criou vida. Quando Lutero fez a tradução dessa passagem, chamou essa parte de Adão de “costela”. Daí essa parte tornou-se um outro ser, que foi chamado de Eva. Durante esse período enquanto a costela criou vida, o que é dito no texto é de que Adão “adormeceu”.

Adão e Eva continuaram a viver no paraíso e não havia a dualidade, ou seja, não havia qualquer tipo de discriminação, de bem ou mal, ou de certo e errado. A única coisa que representava essa dualidade eram as duas árvores que existiam lá que se chamavam: árvore da vida e a árvore do bem e do mal.

Um belo dia a cobra veio e conversando com Eva (que significava a parte vulnerável nessa metáfora) disse que ela poderia encontrar o discernimento entre o bem e o mal e para isso era só comer o fruto da respectiva árvore. Querendo isso, Adão e Eva, ao provarem desse fruto, passaram a separar as coisas em dois, ou seja, entre certo e errado e bem e mal. Assim, se tornaram duais e por isso não podiam mais viver no “paraíso” e foram expulsos. Na hora da saída, foi-lhes dito que precisariam ganhar seu “sustento” ou sua evolução, que haviam perdido, com o “suor do rosto”. Assim, de lá para cá, estamos buscando encontrar de novo essa unidade perdida e voltarmos ao paraíso e pararmos com todo esse sofrimento que temos, justamente por estarmos sempre divididos entre, por exemplo, o bem e o mal, ou o certo e o errado.

Do lado de cá do planeta esse conceitos nos foram dados pelo Cristianismo e, mesmo quem não é um cristão praticante, foi programado por esses princípios. Então estamos sempre “pecando”, já que o que é dito como “errado” são normas de condutas dadas para as massas, que não funcionam muito bem no individual. Com esse jeito de pensar, ninguém escapa de estar em pecado vez por outra, já que o proibido muitas vezes nem é fazer algo, mas pensar já configura o “crime”. Haja inferno para colocar tanta gente…

Tudo que queremos fazer e que gostamos, normalmente é errado. Quantas vezes o que é certo para nós é errado para os outros? E como não há um meio termo, ou andamos na “linha” dos mandamentos difíceis de cumprir ou a punição será fatal. Com esse jeito de pensar, tudo que é certo ou bem ficou com Deus e tudo que é errado ou mal passou a ser propriedade do Diabo. Se pensarmos bem, veremos que até Deus ficou dividido. Antes Ele era tudo, agora ficou pela metade.

O hinduísmo foi mais feliz e, entre o que se cria (Brahma) e o que se destrói (Shiva), tem um outro que “mantém” (Vishnu). Assim a eterna lei da impermanência, essa sim mais lógica e evolutiva, é mais bem entendida. Tudo está em movimento constante e não há nada que seja “certo” ou “errado”. Para tanto vou dar um simples exemplo: Todos concordam que matar é errado, mas é certo se estivermos em guerra ou se nossa fé estiver sendo atacada por quem não tem a religião que eu tenho (vide os conflitos religiosos que, absurdamente, ainda matam no século XXI).

Todos os nossos desejos, que os temos porque que queremos a felicidade, são amorais na sua essência. Se certo ou errado, vai depender da cultura, da época ou dos interesses vigentes. Como saberemos se algo é realmente o “bem”, sem que tenhamos tido, para nós, a experiência do “mal”?

A frase de Mark Twain que abre esse texto é emblemática e muito verdadeira. Para ser “certo” precisamos negar o tempo todo o que gostamos, o bom ou que nos dá prazer. O negócio mesmo é sofrer e nos “purificarmos”, vivendo a vida mais chata e sem graça possível. Isso pode até manter as pessoas na “linha”, mas muito de seu desenvolvimento precisará vir da rebeldia.

É óbvio que ninguém nega a ética e o respeito ao direito do outro, mas penso que você  entenda o que estou dizendo. Os “vigilantes” do certo/errado certamente terão motivos para distorcer o que digo, alegando que estou pregando a busca desenfreada do prazer. Esse tipo de interpretação é a mesma que condenou, por exemplo, o sexo à “sombra”,o que se tornou o embrião de todos os desvios, perversões e violências que testemunhamos hoje.

Já escrevi em vários artigos que a medida correta é o “caminho do meio”, ou seja, o equilíbrio. Leis só existem para quem não tem essa medida e está dividido entre o certo e o errado, ou entre Deus e o Diabo. Assim, para ser “certo” preciso reprimir o “errado” e o que reprimo, via de regra, pede passagem na consciência. Justamente por isso, quando alguém perde a cabeça e faz uma insanidade é comum dizer que estava “possuído” pelo mal. Na verdade, toda a repressão tem um limite. Se reconheço o mal em mim, posso dominá-lo mais facilmente. É bom nunca esquecer que tudo que reprimimos passa a habitar o inconsciente e isso quer dizer que não temos mais muito controle.

Tudo que estamos testemunhando ultimamente, como os eternos conflitos na Faixa de Gaza, ou a derrubada de um avião com 298 inocentes na Ucrânia nada mais é do que: Estou certo(bem) e quem não pensa assim está errado(mal). Nada melhor para erradicar o “mal” do que cortando pela raiz, no caso matando aqueles que não pensam como eu, ou justificando a morte das pessoas como “fazendo parte” da luta pela erradicação do mal.

Enquanto essa dualidade persistir, a idade das trevas não terá acabado. Diferente da Idade Média, onde a imbecilidade era apenas religiosa, todo nosso desenvolvimento levou à escuridão para a política e a economia.

Precisamos de “leveza” e compreensão. Aceitar o diferente precisa ser algo que não seja imposto por lei, mas por simples entendimento de que cada um pode ter suas escolhas que são “certas” para si.

Essa bobagem de ter um “certo” e “errado” para todos dá nisso. Quando vi as fotos de dezenas de crianças mortas por uma bomba jogada por Israel, ou quando vejo foguetes serem atirados de hora em hora sobre Jerusalém, fico pensando que a infância da humanidade ainda está longe de terminar.

Enquanto dividirmos tudo entre “Bem” e “Mal”, a ignorância, a bestialidade e o fanatismo serão a marca de um ser humano que vive na escuridão. A luz e a escuridão dependem uma da outra para serem entendidas. Enquanto todos os conceitos binários persistirem o mal precisará ser cada vez mais propalado para que se busque o bem.

A escuridão (inconsciência) não existe por si mesma, se não pela ausência de luz (consciência). É como uma gangorra que um dia precisará estar no equilíbrio. Já que se uma parte está no alto, o que está embaixo estará sempre ganhando impulso para subir e a oscilação, que significa sofrimento e ignorância, nunca terminarão.

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Fernando Bastos
9 anos atrás

Mto bons teus textos, Eduardo. sobre este, li algo em Freud (acho que em Futuro de uma ilusão) que a civilização trouxe mtas vantagens ao Homem, mas com ela veio à repressão aos instintos libidinais, que tiveram q ser devidamente recalcados. e esse recalque é q produz tantos neuróticos. penso q a grande questão é: como ser feliz, ser livre, se tenho q respeitar a liberdade do outro?e ainda lidar com tantas proibições , tanta moral q vem de todos os lados.

Luciana de souza
Luciana de souza
10 meses atrás

Sensacional teu texto. Sensacional.

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