A festa pagã

Crônica publicada no jornal FolhaSC em 9 de fevereiro de 2016.

Toda cultura historicamente tem seu carnaval ou algo que chamam de festa pagã, que se fôssemos resumir, seria um tempo para que soltemos nossos “bichos”. A ideia é afrouxar a rigidez social para que as pessoas possam se soltar. Desde sempre, as condutas sociais e morais ficam deixadas de lado nesses dias. Alguns dicionários as definem como festas imorais, onde os preceitos cristãos são contrariados e a bebida, a nudez, palavrões e demais más ações são liberadas.

Décadas atrás, quando havia uma rigidez maior sobre as condutas morais, nos dias do reinado de Momo, a alegria era total, já que, depois desses quatro dias tudo voltava ao normal. As antigas músicas de carnaval contavam as histórias dos boêmios casados que, durante esses dias, saiam de casa e só retornavam na quarte feira de cinzas, com olhares arrependidos e saudosos do convívio familiar. Esse enredo sempre foi uma metáfora, dizendo que nos dias de carnaval, tudo poderia ser aceito ou permitido em nome da alegria.

Uma das festas mais sofisticadas acontece na bela Veneza, onde os foliões ostentam máscaras caríssimas e roupas de séculos atrás em uma tradição que mantém seu fôlego pela elegância e é um daqueles momentos em que a ostentação ganha olhares de admiração. A origem das máscaras provém do antigo teatro grego, onde os atores entravam em cena com uma máscara na mão que tinha o nome de “persona”. Daí vem a palavra “personalidade” que pode ser muito bem entendida como as máscaras que todos precisamos usar para viver em sociedade. Como atores, uma boa dose de fingimento se faz necessária para o convívio com outras pessoas.

Mas por aqui, nos trópicos, o calor nos encaminha para poucas ou já quase nenhuma vestimenta, favorecendo, junto com grande consumo de álcool e outras drogas em geral, uma sexualização que podemos testemunhar atingindo seus limites.

O governo faz campanhas, distribui preservativos em grande escala, porque sabe que os custos das possíveis consequências que vão desde nascimentos pouco planejados à doenças de prognóstico sombrio, ver os custos dos atendimentos, medicamentos e internações estourarem o seu já combalido orçamento.

Nos últimos tempos, pelo relaxamento das condutas sexuais e morais que nossos avós conheceram bem, o carnaval ou sua finalidade já acontece todos os dias do ano. Para quem viu os de “antigamente”, as festas atuais perderam muito da graça. As músicas já não são carnavalescas e só as escolas de samba mantém na tradição do samba enredo um pouco do que foi a origem do carnaval brasileiro. Hoje, até música eletrônica toca nos dias carnaval e se os antigos sambistas saíssem de suas tumbas e vissem o que acontece, voltariam correndo para o cemitério ao se depararem com o axé e o sertanejo embalando a folia.

Mas uma das  únicas coisas que tem se mantido são os blocos de “sujo” ou, em outras palavras, os homens que se vestem de mulher para extravasar sua alegria. Em um mundo que vive sob o pensamento masculino há, pelo menos, quatro mil anos, sabemos que essa conceituação do feminino como errado e frágil, tem causado muita repressão nos homens. Não precisa ser um grande entendedor de psicologia para saber o motivo de tantos homens se maquiarem e exagerarem nos trejeitos, enquanto quase não se vê nenhuma mulher vestida de homem para brincar na folia. Como dizem que todos somos homens e mulheres ao mesmo tempo, parece que se o feminino crescesse de influência, teríamos um pouco mais de paz. Homens gostam de violência e são objetivos demais. Isso pode ser bom para os negócios, mas muito ruim para se viver em paz. Não sei se mulheres declarariam alguma guerra em que seus filhos pudessem morrer em batalhas estúpidas.

Depois da festa, manda o cristianismo que está por trás de toda a cultura ocidental, que se respeite a quaresma. Deveriam ser quarenta dias sem festa ou exageros onde os bichos interiores acalmados pelos excessos que foram permitidos, descansariam em reflexão para a chegada da semana santa. Da liberação dos instintos ao conceito do sacrifício de Cristo, a ideia é encontrarmos mais tempo para sermos bons e corretos em nossos comportamentos até chegar o próximo carnaval. Dos 365 dias do ano, são quatro para o sermos quase bichos e os restantes para buscarmos um lugar no paraíso.

Nietzsche dizia que o ser humano poderia ser comparado a uma corda. De um lado, estariam os instintos que nos aproximam dos animais e é só observar o comportamento sexual dos macacos para entender, e, de outro, podemos atingir a santidade, como alguns conseguiram, poucos é verdade.

Vivemos em constante oscilação, entre esses extremos e parece que isso nunca vai ter fim. Mas se um dia conseguirmos, enquanto civilização um equilíbrio, poderemos, quem sabe, voltar a atirar confete e serpentina como fazem as crianças nos quase já extintos bailes infantis.

 Essa sempre foi a ideia do carnaval, mas as crianças um dia crescem e os problemas da humanidade sempre foram causados por adultos mal resolvidos.

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