dezembro 2017

A Ceia

Todos ainda estavam sentados em torno da mesa.

Como sempre, comida de sobra, com a velha desculpa que será consumida nos dias seguintes. Ao lado da mesa, papeis de presente rasgados depois da revelação do “amigo secreto” estavam amontados em um pequeno monte. Sentia-se um desconforto no ar.

Quando se come mais que o necessário, o corpo precisa se ajustar ao fastio. Uma sensação desagradável e um arrependimento obrigatório, como uma ressaca moral. O preço que o metabolismo cobra é uma certa tristeza, um ânimo rebaixado pelo prazer em excesso. Tudo tende ao equilíbrio, como um elástico, quando solto depois de esticado, fica menor por ter estado grande demais.

O rito já tinha sido cumprido. Oração, brincadeiras que se repetiam e, por fim, antes do jantar, a lembrança dos que já morreram. Alguém havia sugerido inverter a ordem, começando pela tristeza e depois rumar para a alegria. Voto vencido pela tradição que diz que a tristeza é mais importante, precisando, portanto, ficar para o final em respeito aos mortos. Fala-se como se estivessem ali, mas a reação é como se tivessem desaparecido para sempre. Primeiro a morte, depois a vida. Quanto encantamento por uma expectativa!

A matriarca passava os olhos em torno da mesa. Filhos já mais do que maduros, netos adolescentes contando os minutos para poderem ir para outro lugar. Percebia pelos olhares que trocavam. Como isso deve ser maçante para eles, pensava. Ela sabia que, quando morresse, tudo iria acabar. Nenhum dos seus filhos tinha sua determinação para manter a família unida, ou porque não gostavam desse tipo de encontro familiar. Na verdade, ela nunca havia permitido que escolhessem.

 O que a mantinha com força de continuar apesar do corpo cansado e dolorido era o próximo natal. Ver todos juntos, resultado de um encontro fortuito transformado em família ocorrido a sessenta anos atrás. Ninguém estaria ali, se ela não tivesse que se abrigar em uma loja durante um forte temporal. O rapaz simpático do balcão virou pai de seus filhos. Estaria tudo “escrito” ou um mero acaso causado por uma tempestade de verão? Pensou muito sobre isso, depois descobriu que era perda de tempo.

Chegou a pensar em perguntar se todos gostavam dessa reunião na noite do dia 24, mas desistiu. Sabia que diriam que sim, mas não estava com vontade de ver rostos com outras respostas. Melhor esperar estar enganada. Nunca conseguimos nos iludir completamente, mas existe a velha e imortal esperança de que o que está diante dos olhos e da razão seja mentira.

Faltavam crianças. Noite de natal sem elas não é a mesma coisa. O brilho nos olhos pelo esperado presente é um sinal de espanto com a vida que vamos perdendo com tempo. Crianças e velhos curtem mais esses momentos. Os pequenos estão descobrindo um mundo que vai ficando maior a cada dia. Poucas decepções, só as que os pais zelosos não conseguem evitar. Já os mais velhos, curtem tudo com ar de despedida, chegando cada vez mais perto da grande pergunta. Querendo evitar descobrir a resposta, esticando a vida, mesmo com limitações.

O filho mais velho cochilava. A esposa, ao lado, fazia bolinhas de papel com pedaços de guardanapos. Estavam todos esperando que ela levantasse para irem dormir enquanto os netos teclavam nos celulares.

Amanhã estaria sozinha de novo. Desde a morte do marido, percebeu, que a cada ano um dos filhos ficava com ela para o almoço do dia 25. Um revezamento, que a fazia sentir-se um estorvo. Como de costume, as sobras da noite ganhariam vida no almoço do dia seguinte, já em pratos do dia a dia.

No ano novo, um dos outros filhos viria buscá-la para a virada. Depois, uns dias na praia com o encarregado da vez.  Lembrou-se da Santa que passa três  dias em cada casa durante o mês, levando proteção e bênçãos, ficando, a cada visita, mais pesada na gaveta debaixo da minicapela, com mais moedas e menos notas. Sinal dos tempos.

Levantou-se da mesa com dificuldade. Todos “voltaram a vida” e fizeram os pequenos comentários habituais; “já é tarde”, “estava tudo ótimo mãe!” e o mais comum de todos: “Mais um natal se passou…”. Dias de preparativos e combinações para um jantar que misturava alegria, melancolia e constrangimento cada vez em doses mais desproporcionais. Teatro familiar obrigatório, determinado por uma data. Preferia cada vez mais comemorar seu aniversário, nesse dia ela tem certeza que estão felizes por ela ainda estar viva.

Enquanto todos se levantavam, a velha senhora desejou a todos um “Feliz natal” e saiu sem que percebessem seu nó na garganta.

Sentiu um alívio ao deitar e percebeu que estava cada vez mais cansada sem motivo, já que tudo que fazia era viver preocupada com todos e da saudade dos tempos que as crianças corriam pela casa.

As imagens dos seus cinco netos lhe vieram à cabeça e percebeu que chegará uma hora em que eles também estariam contando os dias para o próximo natal.

No ano seguinte, como a velha senhora imaginou, cada filho fez seu natal particular e a noite do dia 24 foi trocada por um almoço dias antes onde nem todos puderam participar.

 Final de ano é sempre tão corrido…

E se for só isso?

“Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!”

                                                                Nietzsche –   Gaia, a ciência § 276

“É impossível enfrentar a realidade o tempo todo sem um mecanismo de fuga.”

                                                                 Freud

                                                                                                                                                 realidade virtual

Não existe crença sem dúvida.

Se, por um lado, temos a esperança de que o que acreditamos seja mesmo verdade, por outro, como toda esperança, existe um temor de que não seja. Crenças são necessárias até certo ponto. Precisamos delas como uma forma de entendermos o mundo e suas contradições. Aliás, as contradições do mundo sempre são um problema só nosso, já que o mundo é como é, e não somos tão relevantes assim para que ele mude por nós.

Independente se acreditamos em duendes, gnomos, fadas, anjos, querubins, alienígenas (de todos o de mais provável e até probabilística certeza de existência) ou qualquer divindade, é através deles que se atribui o saber que usamos para lidarmos com os acontecimentos incontroláveis da vida. Como já citei em artigos anteriores, quando nos deparamos com nossa falibilidade e de tudo que acontece a nossa volta, a sensação de desamparo é inevitável e uma “mão” amiga, mesmo que invisível e muito improvável, já nos dá alguma segurança para tocarmos em frente.

O interessante é que, quanto mais essa crença for cega e leve a pessoa ao radicalismo, mais ela tenta arregimentar seguidores e olha com certo dó quem não segue sua linha. Sempre penso que, quanto mais se precisa de novos seguidores, fora a questão financeira da manutenção da estrutura, está embutida a necessidade de que mais gente também acredite. Isso traz a ideia de que, realmente, as coisas são como creio, afinal, tanta gente acredita junto! Pode parecer impossível, mas se todo mundo também pensa assim…

A questão que coloco é simples: Por quê a vida não pode ser só o que vemos? Qual a necessidade de um grande significado por trás de tudo, seja do desabrochar da flor ou da maldade no mundo? Como disse acima, toda crença carrega o medo de ser falsa. E as mais importantes questões, como o significado da vida, o que virá depois, se teve algum antes e tantas outras só servem para aumentar a ansiedade. Perguntas demais e respostas impossíveis, já que fazem parte do âmbito do “acreditar”.

Quer queiramos ou não, uns mais outros menos, todos deixamos nossa marca no mundo. Estar vivo é fazer parte e nunca sabemos o quanto afetamos o que chamamos realidade. Alguns grandes pensadores nos convidam a aceitar o mundo tal como ele é e alguns outros revolucionários querem mudá-lo. Uns usando violência e poder para ter mais poder. Outros para impor suas ideias baseadas na crença (essa uma das mais absurdas) de que tem a receita correta para termos um mundo melhor que vale para todas as culturas e pessoas. Caso clássico do sistema educacional que ensina a mesma coisa para pessoas diferentes. Como se fôssemos todos iguais, revogando a biologia. Bom para manipular e matar as diferenças, bom para as farmácias, Capital e governos. Ruim para as pessoas. Mas quem mesmo se preocupa com aquilo que não rende poder ou dinheiro?

Com esse sistema de crenças vamos vivendo sem pensar, já que temos as respostas que as crenças nos dão. E a mais comum é a esperança que existe uma “inteligência” ou ‘Alguém”por trás de tudo, que comanda a vida para o bem de todos e aqueles que estão sofrendo é por merecimento ou aprendizagem, só pode! Se alguma coisa está errada, é por não entendermos um desígnio maior, falta de percepção ou burrice nossa. Figuras ilustres da religião nos remetem diretamente à ideia do sofrimento como forma de purificação para o que virá, ou de que, se não cumprirmos as regras seremos duramente punidos pela justiça divina. Aliás, pensando nisso, se houver mesmo outra vida, quando nossos ministros do Supremo morrerem, toda a bandidagem que habita os nove níveis do Inferno de Dante será solta com Habeas Corpus e tornozeleira e, com certeza, virão nos assombrar. Merecemos tudo isso, por termos nascido pecadores e impuros.

Mas aqui vai mais uma crença: tudo por ser só isso que vemos, simples assim!

Talvez a grande receita seja uma “dúvida razoável” e quem vê filmes ou série de advogados americanos sabem do que falo. Pode ser que a sua crença seja verdadeira ou uma grande bobagem. A do seu amigo também. Algumas, principalmente as mais famosas, precisam de um grande esforço imaginativo para serem levadas à sério. Como disse Kant, precisamos afastar a razão para arrumarmos um lugar para nossas crenças.

O que sugiro é duvidar, lembrar que pode não ser como pensamos/acreditamos/esperamos. Como a alternativa “E” das provas; nenhuma das respostas anteriores. Lembra?

O dia que ficarmos só com o que vemos, sem grandes leituras metafísicas, poderá nos bastar. Nesse mundo vivem e morrem pessoas boas e más, diferentes e indiferentes, inteligentes e nem tanto, preocupadas e desligadas, medrosas e os medrosos que enfrentam o medo porque tem medo de sentir medo. Às vezes dá tudo errado, em outras tudo certo, a justiça impera e em outras falha. Talvez atrás da flor tenha só um pássaro que polinizou assim como na enxurrada que mata não há nenhuma fúria, apenas o infeliz encontro de nuvens carregadas que não conseguiram desviar uma da outra.

Eu sei, seria simples demais!

Mas isso pode ser mais provável que muitas dessas histórias que ouvimos desde criança que nos metem medo; seja da bruxa que “pega” as crianças desobedientes, seja a ira de um deus qualquer por você ter repetido o bolo ou ter desejado o namorado da amiga.

Temos uma enorme necessidade de tornar a vida complexa, cheia de mensagens e significados, assim como de entidades a quem entregamos em forma de desejo a obtenção daquilo que não nos sentimos merecedores. Milagres, dádivas, bênçãos, linhas certeiras e outras um pouco tortas com o objetivo de dar um começo e fim lógico para a vida. Mas quem disse que a vida precisa mesmo de alguma lógica?

Qual o problema de ser somente sorte, azar ou a deusa Fortuna com suas manias? Queremos coisas, nos esforçamos para consegui-las e isso poderá vir ou não vir, quem sabe? Só virá se fizermos, mas tem gente que fica rico sem nem ter pensado nisso e as grandes biografias mostram que existem tantas coisas, ventos tão incertos. Angustia por um lado por estarmos de certa forma à deriva, mas por outro, traz um charme inigualável para a vida!

Precisamos e devemos ter sonhos e objetivos e é isso que nos move. Só convém lembrar que todos querem alguma coisa e às vezes precisamos saber esperar e entender que desejos colidem uns com os outros o tempo todo e são tantas variáveis em jogo que não podemos controlar.

A grande verdade, talvez a única que nos une é sermos seres movidos por interesse. Não fizemos nada gratuitamente, nem que seja sentirmo-nos bem por ter feito alguma coisa. Rezamos para um mundo melhor porque isso é bom para nós. Não fizemos o mal porque não queremos que façam conosco e por aí vai. Não há nisso nenhum problema! O problema é nos idealizarmos e ficarmos esperando que a perfeição que nos falta esteja em outro lugar, em um ser que nunca nasce e nem morre. Talvez seja por isso que Ele é tão perfeito, não morre nunca e nem precisa de nada, não tem corpo e nem desejos; enfim, não precisa lutar contra si mesmo como nós, reles mortais.

Somo cheios de defeitos (é isso que nos dizem desde o primeiro dia) e projetamos nossa melhor potencialidade em divindades como muitíssimo bem nos ensinou Feuerbach, livro* que deveria ser obrigatório em qualquer sistema de ensino que promete formar cidadãos críticos e nunca consegue, justamente por evitar que questionem, empurrando crenças da mesma forma que se produz Foie gras.

Uma dúvida consciente sobre todas essas grandes perguntas nos traria uma vida mais voltada ao bem-estar e a tranquilidade. Talvez um dia saibamos as respostas depois de morrer se estivermos percebendo alguma coisa, talvez nunca. Portanto, porque perder tempo com elas? Viver como se as crenças fossem uma verdade absoluta é como construir casas com areia da praia. Tudo baseado no medo de sermos punidos aqui ou em outro mundo, buscando controlar a vida ou simplesmente por não aceitarmos como verdade o que vemos a cada momento e, principalmente,  que somos mais livres e responsáveis do que gostaríamos.

Para aqueles que acompanham os textos do blog, sei que poderão estar pensando que, de certa forma, já falei um pouco sobre isso em reflexões anteriores (O último dia e Perguntas desnecessárias). Verdade, mais pode ser que hoje eu pegue você mais atendo e com disposição para deixar tudo mais simples e real.

realidade

Pode ser que só tenhamos essa vida e sei que isso é muito desanimador. Temos planos para as próximas existências, onde tudo dará certo no final. Mas por outro lado, se ficarmos só com o que temos de verdade nos dará um pouco mais de pressa e fundamentará escolhas e decisões conscientes de que precisamos para viver bem e sair dessa existência, sobre a qual ninguém pode duvidar, pela porta da frente.

Temos que dizer “sim” e “não” e isso nunca é fácil já que seria o que parte de nós gostaria, mas nem sempre é possível no mundo de verdade. Fazer escolhas e conviver com elas é outra maneira de sermos nosso próprio Deus.

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*Ludwig Feuerbach –  A essência do cristianismo

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