maio 2016

A Receita de Epicuro (2a parte)

“Tu, que não és senhor do teu amanhã, não adies o momento de gozar o prazer possível! Consumimos nossa vida a esperar e morremos empenhados nessa espera do prazer”.

                                                                                                                 Epicuro

Epicuro

Epicuro é um daqueles filósofos que precisa de justiça. Não é difícil perceber que uma leitura apressada de suas ideias pudesse, inevitavelmente, trazer-lhe a fama de hedonista no pior sentido. Porém, seus ensinamentos aparentemente simples trazem uma grande subjetividade impressa na sua “farmácia” para alma nos seus quatro princípios do tetrapharmakon, que discutiremos a seguir.

Epicuro percebeu que nossos sofrimentos são, na maioria das vezes, uma expectativa ou pré-ocupação da mente que sempre nos mostra os piores quadros no horizonte. Parecido com Sêneca, sua ética buscava ensinar a evitar ou suportar a dor, o medo e o sofrimento que estão sempre à espreita. Dedicou seu pensamento procurando entender justamente desse temor que nos caracteriza, baseado em esperarmos sempre o pior, além, obviamente, do medo provocado pelo mistério da morte.

Ao definir felicidade (eudaimonia) como a ausência de sofrimento físico e perturbações da alma, Epicuro está longe de relacionar seu conceito de felicidade com alguma coisa que se aproxime do que conhecemos por êxtase ou euforia. Sua recomendação de que o autoconhecimento, no que se refere ao entendimento sobre nossa natureza, como funcionam os desejos e o que são realmente os prazeres, mostra que a filosofia enquanto reflexão sobre o ser humano nos explica porque acumulou durante séculos o trabalho que hoje está nos domínios da psicologia.

E, talvez pela psicologia ter virado uma ciência (formando padrões, querendo que só um jeito seja certo ou saudável), tenha criado a oportunidade da filosofia voltar a fazer parte das opções sobre a escolha de caminhos para mudanças ou entendimento sobre os sofrimentos, com sua nova roupagem de clínica.

Dessa forma, seja pelo exposto acima, seja pelo entendimento e vivência na vida prática dos seus quatro remédios, o homem veria seus problemas tornarem-se de fato o que eram, ou seja, nada além de pseudoproblemas, diante da ótica que Epicuro oferece.

Sua tetrapharmakon, ou seus quatro remédios são:

  • Não há nada a temer quanto aos deuses (ou, os deuses não devem ser temidos).

Aqui, passamos a entender o motivo de Epicursismo ter perdido força na idade média, com o fortalecimento do cristianismo, que prega o contrário. Passamos a ter um deus a quem devemos prestar contas e que pode nos punir durante se não seguimos seus mandamentos que enviou pelo seu representante na ocasião.

Você já pensou o que mudaria na sua vida, se soubesse que não tem um deus te vigiando?

A vida é aqui, vivida por humanos! Essa ideia de que exista algum deus, que nos cuida, pune e diz (?) o que devemos fazer para sermos bons e merecermos o paraíso, mais do que uma maneira de controle e dominação, mantém o homem em um estado de infantilidade, onde o pai humano, quando descoberto em sua limitação e fraqueza, precisa ser substituído por outro, onipotente e perfeito. Por trás, está a informação de não somos capazes de nada por nós, o bom que nos ocorre é sempre uma “graça”, que nos foi concedida pela benevolência divina. Se, quando estamos bem dizemos que isso é “graças a Deus”, imagino que quando estamos mal também tenha a mesma razão. Ou é ou não é!

Epicuro aqui, nos chama a responsabilidade de forma suave, para quem percebesse as entrelinhas, não foi tão direto quanto Nietzsche que, para não se deter em delongas, já matou deus de uma vez.  Epicuro admitia a existência dos deuses, mas dizia que eles viviam em um mundo distante, separado do mundo dos homens e que não deveríamos teme-los, já que isso dificultaria ou impediria a felicidade. Parecia prever os mandamentos que viriam logo depois.  Condutas que as várias religiões criaram que, se forem seguidas, tornar a vida sofrida, cheia de culpa, pela purificação como uma pré-condição de acesso a um paraíso futuro, quase como descrito por Marx; todos juntos, iguais, sem poder ser diferente em nada, sem meritocracia, eterno, etc. A vida pregada pelas religiões é de abstenção, contrição e penalizações constantes. Dizer que os deuses moram longe e que não se importam muito conosco, assim como nós que nos importamos pouco pelo mundo das formigas, foi politicamente correto e muito bem-humorado.

  • Não há necessidade de temer a morte (ou, a morte não deve causar apreensão).

A máxima atribuída a Epicuro “ Não devemos temer a morte, pois quando estou ela não está, e quando ela estiver eu não estarei mais”, mostra o motivo de sua filosofia estar atrelada aos sentidos. Afinal, ter medo da morte nada mais é do que outra falsa fonte de preocupações. Se tudo que existe é corpóreo e todas as dores são corpóreas, não temos que nos preocupar com a morte, que nos coloca em uma situação em que nosso corpo não reage, se deteriora, não nos possibilitando sentir prazer ou dor.

Racionalmente Epicuro está correto, mas falta-lhe aqui o que todas as pessoas buscam em uma religião: que tenha uma boa resposta para o mistério da morte, ou seja, o que vem depois e sua justificativa. Óbvio que o filósofo não tinha o interesse de criar uma religião, mas diante da insegurança, mesmo as pessoas mais inteligentes tendem a procurar uma “mão forte” ou algum consolo que lhe ofereça uma lógica mínima; que ofereça um “depois” para essa vida finita. O segundo remédio para ser aceito precisa dessa entrega diante do “não saber”. Precisaremos morrer para sabermos, mas os estados da mente sempre pedem segurança e alguma resposta. Introjetar o conceito, por outro lado, trará como consequência um aumento da responsabilidade de aceitar essa vida como única e buscar a eudaimonia para fazê-la valer à pena.

Epicuro percebeu claramente que precisamos viver bem aqui, o resto são especulações e, como diz o ditado popular: “Não se troca o certo pelo duvidoso”.

  • A felicidade é possível (ou, o bem é facilmente obtido)

Para Epicuro, a eudaimonia engloba em conceito maior do que simplesmente felicidade, já que inclui o desenvolvimento pessoal e a possibilidade de crescimento e progresso da alma e das virtudes. O conceito epicurista é também ético, já que para os antigos gregos isso incluía o respeito ao cultivo e uso das virtudes para caminhar rumo ao bem comum. Mas a grande percepção que teve foi a ligação do conceito de felicidade aos desejos.

Ora, desejar tem em si duas importantes questões a serem analisadas: o primeiro ponto é que só podemos desejar aquilo que não temos, e o segundo é o projetivo, afinal se desejo algo é por imaginar que esse algo me fará feliz, ou me trará alegria, ou diminuirá minha eventual dor ou insatisfação.

A partir do momento que passo a ter o objeto de desejo, imediatamente paro de deseja-lo e isso me fará em pouco tempo, buscar um novo desejo e assim indefinidamente. A classificação que Epicuro fez dos desejos traz um importante ensinamento, já que o que considera “natural e necessário” nada mais é do que o mínimo para a sobrevivência, como nutrição, sono proteção e abrigo.

Já os desejos ditos “naturais” são coisas simples, pequenas variações dos prazeres, busca do agradável, como simplesmente comer um pouco a mais. Fica claro que para Epicuro, ser feliz é estar em paz, sem as perturbações do espírito (ataraxia) e a ausência de dor corporal (aponia).

Quando classifica riqueza, glória, status e reconhecimento como desejos “frívolos e artificiais”, antecipa quase como um vidente nossa sociedade contemporânea, onde a mídia ensina que para ser atingida a felicidade torna-se necessário que os desejos frívolos e artificiais sejam obtidos, o que impulsiona o ciclo dos desejos para o infinito.

Oferece uma constatação que, apesar de óbvia, motiva a busca espiritual das pessoas que se filiam religiões institucionais. A imortalidade é considerada um desejo “frívolo e irrealizável”, justamente por não ser possível. Particularmente, gosto da visão estoica, onde a imortalidade é a nova estruturação dos nossos átomos depois da morte. Poderemos “reencarnar” em uma planta ou relva que nascerá do adubamento da terra pelos nossos restos mortais. A verdadeira e possível eternidade é o que deixamos no mundo, nas nossas relações. O homem não aceita morrer e desaparecer. Essa angústia parece não ter fim e  o que existe depois da morte nunca nos será permitido saber. Cada um escolhe a teoria que mais o conforta.

  • Podemos escapar da dor (ou, o terrível facilmente chegará ao fim).

          No seu quarto remédio, Epicuro nos fala de um conceito, em meu entender, importantíssimo, que é a impermanência. É fundamental entender que existe uma alternância entre bem e mal, e que um só é possível pela existência do outro. Quando essa alternância não ocorre, aquele que persiste se torna padrão. Em outras palavras: bons e maus momentos são normais e se alternam. Quando se está sempre mal, o problema é da pessoa, não da vida em si, e isso também vale para o bem estar prolongado.

             Assim, Epicuro mostra que tudo se alterna em ciclos naturais e que dentro do bem está potencialmente a existência do mal e vice-versa, como também disse Lao Tsé. Um só é possível pelo outro e os dois explicam a vida. Aqui, temos o encontro com Heráclito (sobre quem falei mais no livro “61824 palavras sobre o final feliz que ninguém achou”), a quem Aristóteles chamava de “estranho”. Se, para o pai da lógica “A” é uma coisa e “B” é outra, Heráclito dizia que “A” e “B” são manifestações de uma coisa única. Epicuro teve essa mesma compreensão e sua recomendação é nunca esquecer que bem e mal são como ondas que vem e vão. A compreensão profunda desse conceito é ataraxia, ou seja, elimina as perturbações da alma.

Assim, a filosofia de Epicuro é de grande importância, já que seus remédios são claros, racionais e, se bem compreendidos, trarão uma visão clara do que nos perturba e, por perturbar, precisam de um novo olhar que ele oferece para a diminuição e compreensão do sofrimento.

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Para saber mais:

GHIRALDELLI JUNIOR, P. Helenismo e o início da filosofia cristã. In:____. A aventura da filosofia de Parmênides a Nietzsche. Barueri: Manole, 2010.

 

OSHO. A Harmonia oculta. Discursos sobre os fragmentos de Heráclito. Cultrix, 2004.

 

POLESI, R. Era Helênica: epicurismo e estoicismo. In:_______. Ética antiga e medieval. Curitiba: Intersaberes 2014.

 

 

O Olhar

Hoje decidiu olhar atentamente para a estátua. Já tinha pensado nisso muitas vezes, mas a vantagem de querer encontrar uma estátua é saber que ela sempre estará lá. Mas, como tudo tem ressalvas, as que ficam são só as dos heróis. Os políticos, mesmo de pedra, são retirados quando descobrimos seus reais motivos. Quando Lênin caiu na praça vermelha, na Perestroika Russa, mostrou que nenhum político está seguro, mesmo depois de morto.

O movimento naquela hora era pequeno, todos estavam almoçando. Temia que seu encontro com a estátua fosse mal interpretado, mesmo que não fosse falar nada em voz alta. Seria demais esperar que não o achassem louco, conversando com uma figura de pedra.

Passou a mão no rosto dele, como se querendo fazer contato com a história, ou trazendo a figura inerte à vida, como fez Michelangelo com seu Moisés. Mas esse não era tão real, não parecia conter vida. Ficou pensando em como uma reprodução podia ser assim; sem significado. Afinal, esse era o rosto de um personagem famoso.

Ao observar melhor, viu que os olhos eram inexpressivos, não havia pupila neles, só um espaço em “branco” sob as sobrancelhas. Era por isso que não parecia uma pessoa!

Nos pés, o nome, as datas e seu mérito: herói de guerra.

As praças estão cheias deles e mostram nossa incapacidade enquanto civilização. O crescimento, os ideais e a história ainda se constroem sobre cadáveres. Parece que foi casado, era o que dizia a biografia na Wikipédia. Imaginando como era a vida dele, se perguntou: Será que chegava em casa, depois das batalhas vitoriosas, colocava os filhos no colo, dizia da saudade da esposa e se permitia descansar em cima da sua glória, feita de pais e filhos que nunca mais voltariam?

Barba espessa e longa, cenho franzido; cara de mau.

Não dava mesmo para decifrá-lo, saber o que pensava.

Que criança teria sido, o que era a vida para ele?

Vez por outra, passava um transeunte e olhava a cena com curiosidade. Alguns poderiam até estar pensando: o que tanto olha, será um parente distante, com mesmo sobrenome?

Já não se importava mais. Estava absorto em entender aquele homem.

Precisava dos olhos para decifrá-lo e eles não estavam lá.

Seja uma estátua, uma foto ou mesmo uma pessoa, ninguém consegue enganar com seu olhar. Podemos até ter algum controle da informação que queremos transmitir, como queremos que nos vejam, mas se alguém olhar nos nossos olhos seremos descobertos. Uns dizem que são as “janelas da alma” e se forem estão sempre abertas, mostrando todo o interior.

Deve ser por isso que, durante alguma discussão, ficamos irritados quando não nos olham nos olhos. Nosso interlocutor quer nos esconder a verdade, parece que não importam as palavras, queremos as janelas. Não queremos que nos contem o que há lá dentro, queremos ver!

Óculos de sol é a roupa dos olhos, esconde nosso pudor emocional, como faz o tecido com o corpo.

Esse homem de pedra não tem vida por não ter olhos. Esse vazio torna-o um cadáver.

Deve ser por isso que as estátuas não têm pupilas. Feitas por encomenda, o artista não conhecia a alma do homenageado, como poderia por vida nele, desnudá-lo em suas verdades interiores?

Resolveu ir embora. Sua visita não tinha sido bem sucedida. Continuaria curioso sobre aquele personagem. Até uma foto 3×4 nos fala mais que uma grande estátua ou busto, que é a valorização da cabeça, da razão sem emoção. Os olhos estão lá, sempre vazios.

Alguns poetas, eternizados em algumas cidades, como Mario Quintana em Porto Alegre ou Drummond no Rio de Janeiro estão lá de corpo inteiro, e sorrindo. Não me lembro de algum herói de guerra que sorri, não poderia mesmo, sua glória é a destruição e não há muita graça nisso.

Na época daquele homem, não havia fotografia, só o que sobrou daquela vida foi um nome e um par de olhos vazios em uma pedra.

Prosa e Verso

Prosa e Verso foi o melhor nome que o idealizador do bar pode conceber. Sua ideia foi criar uma ilha no centro da grande cidade, onde, ao adentrar a porta, o cliente mudaria de mundo. Lá fora, a agitação do trânsito, pessoas correndo atrás sabe-se lá de que? Na portaria, onde antigamente os cavalheiros deixariam seus chapéus e as damas seus casacos de pele, um pequeno armário com várias pequenas portas com chaves e um convite: “Deixe aqui seu celular e se conecte na conversa ou nos seus pensamentos”. A ideia foi bem aceita e, depois de algum tempo, levar o celular para as mesas parecia tão deselegante quanto fumar.

Mas não era só isso. A alma do lugar era a poesia e a boa música ambiente. O que se ouvia era o melhor dos clássicos, versões requintadas de sucessos e a voz das divas, grandes cantores e algumas versões arranhadas dos velhos LP’s. Mas a grande sacada era a poesia, verdadeira paixão do dono. As mesas para mais de uma pessoa eram de vidro e a cada semana era trocado o poema que ficava abaixo, como que adornando as conversas. O vidro redondo girava e todos tinham a oportunidade de ler o poema da semana. Nas mesas de dois lugares, poesias que falavam de amor e amizade. Nas de quatro e seis, os temas eram a convivência, a vida e a alegria. Mas o dono se preocupou com quem viria só, a espera de conectar consigo ou relaxar enquanto põe as ideias em ordem. As mesas de um lugar ficavam com a cadeira de costas para as outras mesas e para a circulação. Apenas um abajur, deixava o centro da mesa (essas eram de madeira), e o poema ficava na parede em frente à mesa. Uma pequena luz indireta iluminava o texto e mesmo que não quisesse, não teria como não ler. Caso a preocupação fosse grande, uma ou duas estrofes poderiam, quem sabe, trazer alguma inspiração. A ideia foi, sem dúvida, uma versão elegante dos papeizinhos com mensagens positivas que escolhemos enquanto esperamos nas salas de espera da vida.

 Um dos clientes bem-humorados disse que o bar, com suas mesas individuais, era a igreja do século XXI, onde o padre era substituído pela poesia e a bebida.

Os poemas das mesinhas de um só lugar falavam de solidão, de relacionamento findos e de momentos de mudança. Na semana passada, a mesa 6, tinha um poema de Clarice Lispector:

Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada de novas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais”.

Carlos foi um dos primeiros a chegar naquela quarta-feira, logo depois das 18hs, quando o “Prosa” abre. Já tinha vindo outras vezes com colegas para fazer Happy Hour, mas hoje queria ficar sozinho.
Sentia-se angustiado, a pressão do trabalho estava insuportável. A crise, tinha virado motivo de a empresa exigir cada vez mais, com a ameaça velada do desemprego assombrando cada reunião de cobrança de resultados. Já tinha virado rotina, depois de chegar em casa, ficar pensando como seria se tivesse um outro trabalho, ou como seria se pudesse trabalhar no que realmente gosta.
Em um desses dias, enquanto pensava  em voz alta, a esposa, parecendo impaciente, sentenciou:
– Tudo bem, mas afinal; o que você realmente gosta?
Não soube responder, e de lá para cá, tem procurado em si mesmo a resposta. Enquanto pensava e olhava para o “nada” o poema foi saindo da visão desfocada e a estrofe que parecia tinha sido escrita para ele, ficou como um outdoor:

“ No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei. ”

Pensou que sua vida tinha sido, em certo sentido, uma grande mentira até agora. Se pudesse responder a pergunta que a esposa fizera, talvez já estivesse trabalhando no que gosta, usaria uma roupa diferente e, com um sorriso iluminando o pensamento seguinte, chegou a falar sozinho:
– Não sei se teria me casado com você!
Quem se casou? Quem escolheu esse trabalho? Quem pensou no nome do filho?
Como seria minha vida se eu soubesse quem era desde o começo?
Se Deus existisse mesmo, deveríamos saber o que nos faz feliz desde sempre, mas para isso precisaríamos não nos sentirmos culpados em desobedecer, em teimar contra pessoas, que, em nome de um tipo de “amor” possessivo nos indicaram o que era melhor para nós. É assim que a infelicidade passa de geração em geração, mas é aquela história: vai que no próximo mundo, na próxima vida…
Ainda era jovem de certa forma, mas ter uma família deixa a liberdade mais estreita, arriscar passa a ser conjugado no futuro do subjuntivo. A vida já não era mais dele, era o que lhe disseram quando se tornou pai.
Pediu uma caneta ao garçom, anotou a estrofe do poema, pagou a conta e saiu para ir para casa, perdido de quem nunca tinha sido até agora.

Mal a mesa tinha sido limpa, o copo de whisky recolhido que Maira chegou. Habitué dos lugares solitários, escolhia a mesa pelo poema, mas hoje o “Prosa” estava lotado e não tinha escolha. Se considerava mística e, para ela, tudo tinha uma mensagem que bastaria ter olhos para ver, segundo sua própria filosofia. Assim, o fato de só ter aquela mesa vaga, tinha como significado que o poema da parede era uma mensagem importante, uma coincidência divina.
Pediu a taça de espumante com um sorriso que esbanjava simpatia. Tirou os óculos da bolsa e suspirou buscando concentração para ler o poema. Quando viu que era de Clarice Lispector, lembrou que já tinha ouvido falar, mas nunca tinha lido nada escrito por ela. Apoiou a rosto na mão e começou a ler. Um calafrio percorreu todo seu corpo quando se deparou com a frase:

“ Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro. “

Era o que ela precisava ouvir!
Sua dúvida acabara de receber a “mensagem” que precisava! Iria amanhã mesmo vender o carro, pedir demissão e fazer aquela viagem de um ano para a Índia, com a qual havia sonhado meses atrás. Desde que acordou, na manhã seguinte, estava impressionada com o realismo do sonho. Passou os dias seguintes pesquisando sobre essa viagem que, tinha certeza, mudaria sua vida.
Sua amiga mais conservadora, tinha alertado que esse sonho tinha a ver com o filme que ela assistira e que ela não era a Julia Roberts,  que estaria fazendo uma loucura. Sugeriu que avaliasse com muito cuidado essa ideia de ir embora. Em um ano, tudo pode mudar. Quem garante que arrumaria emprego quando voltasse? Não daria para ter a vida a que se acostumou dando aulas de yoga, mesmo que tivesse aprendido na Índia.

A lembrança das palavras da amiga foi muito menor que a emoção. Bateu uma foto da estrofe do poema e mandou pelo Whattsapp para a amiga com a mensagem:
“Viu! Eu sabia! Olha a inspiração que recebi! ”

Pagou a conta sem sequer ter tomado um gole da bebida e saiu como se tivesse ganho na loteria. O garçom, acostumado com o que acontecia nas mesas individuais, não estranhou.
No dia seguinte, era o dia da semana de trocar todos os poemas e essa tarefa era do dono. Enquanto ele colocava os novos poemas nas mesas e na parede, o garçom mais antigo sempre pensava o que poderia mudar,  se os poemas fossem trocados nas terças ao invés das quintas.

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